Hoje: 22-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Introdução. Quem caminha precisa saber onde está para poder utilizar um mapa. Se desejamos corrigir nosso comportamento e melhorar nossa personalidade, precisamos de alguma referência, precisamos saber primeiro como somos. E é neste particular que eu valorizo a Análise Transacional. Ao criá-la, Eric Berne formulou alguns conceitos e termos novos que nos ajudam a retratar a nós mesmos, a nos situar, a ter uma visão sistematizada de nosso modo habitual de agir. E então, como desejou o próprio Berne, bastará à pessoa sua própria crítica e inteligência para endireitar um pouco, se não completamente, o seu caminho.
Aqueles interessados em conhecer de modo mais completo a teoria da Analise Transacional devem procurar um analista credenciado ou ler a respeito. O espaço desta página não permite ir além de algumas poucas considerações.
Estados do Ego. É coisa da filosofia explicar o comportamento humano e também apontar qual a melhor conduta com vistas ao bem do próprio homem. Empenharam-se nisto Sócrates, Platão e Aristóteles e o fizeram com tanta inteligência que suas doutrinas se tornaram a base, ou importante referência, em qualquer teoria do comportamento posteriormente formulada.
As atividades humanas, segundo Platão, são conduzidas por setores ou partes da alma, cada uma com seus vícios e suas virtudes próprias. Uma parte da alma é concupiscente, outra é moderada e sábia, e outra, irascível. Conquanto estejam todas três no indivíduo, essas partes tornam-se, cada uma, a alma dominante em cada pessoa. A classe dos despreocupados amantes do prazer e do lucro, incluídos aí os comerciantes, têm almas concupiscentes. Os que se dedicam à filosofia (em sua época significava a busca do conhecimento em geral), têm almas racionais, e os que se dedicam às armas, como guardiães, têm almas irascíveis.
Na época contemporânea Sigmund Freud tem ideias muito semelhantes às de Platão. Além de tomar da filosofia a noção de atividade associativa subconsciente, adotou também como divisão da mente humana a divisão platônica da alma, renomeando-as como Id, Ego e Superego.
Eric Berne usa termos diferentes, e fala de conteúdos da memória, os “Estados do Ego”, vinculados a “órgãos” que chama “exteropsique”, “neopsique” e “arqueopsique”. Mas sua ênfase está na importância dos conteúdos e não na ação do próprio órgão. Cada “estado” representa a memória ou “tape” de experiências infantis em toda sua complexidade de pensamentos e emoções. Porque incluem também o modo de ser copiado dos comportamentos de adultos e particularmente dos pais, Berne os agrupa nas categorias Pai, Adulto e Criança.
Os estados do ego Pai contêm o modo de falar, as expressões, as posições radicais ou mansas dos nossos pais e nesses Estados a pessoa se assemelha às figuras paternas. Quando está no estado Pai, a pessoa pode agir do modo como seu próprio pai ou mãe agiriam, ou então simplesmente imitá-los como pessoas, reproduzindo seus gestos, vozes, feições, etc.
Os estados do ego Criança representam resíduos arcaicos, embora ativos, que foram fixados na primeira infância. A Criança do indivíduo pode ser medrosa, assustada pelos pais, ou uma “criança natural”, livre em seus desejos e ações. Para Berne, a Criança é, de muitos modos, a parte mais valiosa da personalidade e pode contribuir para a vida do indivíduo exatamente como uma criança de verdade pode contribuir para a vida da família: com encanto, prazer e criatividade.
Os estados do ego Adulto são autonomamente dirigidos para uma avaliação objetiva da realidade. Uma pessoa madura é capaz de conservar seu Adulto predominando a maior parte do tempo. Vez por outra, no entanto, sua Criança poderá deslocar seu o Adulto, com resultados embaraçosos.
Eric Berne mostra que a pessoa vive em um dos estados do ego, que a sua consciência transita de um para outro “estado” e que, num dado instante, ela “é ” aquele “estado” particular. A tese então é que, em qualquer momento, todo indivíduo que se acha em uma dada reunião social, – um coquetel, por exemplo -, estará exibindo um estado do ego do tipo Pai, Adulto ou Criança, e que as pessoas podem mudar com grande presteza de um estado para outro. Ao fazer o diagnóstico de nossa personalidade o que vamos fazer é principalmente verificar em qual “estado” nós estamos preferencialmente. Estamos sempre no Pai? Estamos sempre na Criança? Contrabalançamos equilibradamente essas duas funções usando nosso Adulto?
Fator biológico. O fator mais influente para as concepções de Berne, sem dúvida foram as experiências de Penfield quem, utilizando estímulos elétricos no córtex, demonstrou que partes definidas do cérebro armazenam as experiências emocionais ou interpretativas do indivíduo, desde a infância, e que todas as experiências vividas ficam gravadas por inteiro e prontas a interferir associativamente na situação presente.
Desde os estudos de Jean-Martin Charcot na Universidade de Paris e no hospital Salpêtrière (1860-1893), se não antes, a própria ciência trabalha com a hipótese de centros e regiões do cérebro responsáveis por certos padrões de comportamento e na primeira metade do século XX Jean Piaget reivindicou a existência de estruturas cerebrais que permitem o pensamento lógico. Isto quer dizer que, se não existem propriamente compartimentos isolados na mente, “ou partes da alma”, devem no entanto existir estruturas cerebrais ou matrizes associativas biológicas para certas categorias de comportamento, como é o caso dos comportamentos instintivos atribuídos por Konrad Lorenz a estruturas específicas no cérebro dos animais.
Então, quando verificamos que, sem nenhuma dificuldade, os comportamentos estudados por Lorenz, – puramente biológicos na sua origem -, poderiam ser também agrupados nas mesmas categorias Pai, Adulto e Criança de que fala Eric Berne na Análise Transacional, somos levados a crer que os estados do ego não são puras experiências ou gravações de memória, mas que tem um substrato herdado.
Isto quer dizer que um indivíduo que tivesse vivido enclausurado toda a sua infância, ainda assim desenvolveria, na vida adulta, muitos dos comportamentos que Berne cita nas categorias Pai, Adulto e Criança, devido a que resultam de funções genéticas e permanentes da mente humana. Então, mesmo que nunca houvesse observado o pai expressar pensamentos lógicos, ou reprovar atitudes alheias, ainda assim comportamentos das três categorias poderiam ser exibidos por uma pessoa, utilizando modelos sociais atuais para expressá-los, que não seriam “memórias” ou “tapes”.
O que falta à Análise Transacional, em meu entender, é dar maior valor à fisiologia das matrizes associativas com que testamos a realidade e nos situamos nela. Aquilo que fazemos orienta-se primeiro por essas matrizes, as quais também influíram em nossas experiências passadas. Levar isto em conta, vai permitir maior objetividade no estudo de nossa personalidade. Este é um dos temas em meus livros “Emotional Man and His Thematic Behavior” (Ed. Thesaurus, edição esgotada) e “Filosofia do Espírito” (Ed. Valcy, edição esgotada).
Importância da educação. O valor dos estados do ego Criança na Análise Transacional é absoluto, uma vez que a pessoa pode ser um adulto possuindo uma Criança tão forte que mesmo o seu ego Pai é uma caricatura, uma visão infantil das responsabilidades e atitudes de um pai, de modo que seu Pai é parte da sua Criança. O seu Adulto pode também não passar de uma Criança esperta, de modo que sua personalidade será imatura em quaisquer circunstâncias. Coerentemente, a Analise Transacional valoriza e enfatiza a importância da educação da criança e a reeducação dos pais.
A principal tarefa com vistas a uma análise de personalidade é, portanto, verificar se, em nossa infância, as pessoas que tomamos como modelos de pai e de adulto eram equilibradas e maduras, ou se eram pessoas que viviam em sua Criança e por isso nos passaram modelos igualmente imaturos. A esse respeito, Eric Berne impressionou-se com as idéias do conhecido psiquiatra inglês Ronald David Laing, e incorporou-as à Análise Transacional.
As análises de esquizofrênicos realizadas por Laing levaram-no à conclusão exposta em seu livro “Política da Família“, de que os pais, – usando instrumentos psicológicos dos quais podem nem se dar conta -, conduzem os filhos ao sucesso ou ao fracasso, a atitudes maduras ou fazem deles pessoas doentes. De todos os instrumentos de pressão paterna, parece que Laing considera os mais eficazes as “Desconsiderações”, – que ferem a criança e fazem com que ela se sinta inferior, imprestável, feia e inútil -, e as “Atribuições”, que é dizer à criança que ela é bonita ou inteligente, e isto fará com que ela se empenhe em fazer o papel de bonita ou inteligente, mesmo que isto lhe custe sua felicidade. Esta técnica, que Laing detalha no citado livro, é exemplificada no livreto A Infância dos Três Porquinhos.
Posições básicas. Na medida que a mente da criança se desenvolve, sua visão do mundo, da vida, do que as pessoas são e do que ela mesma é, o que ela pensa de si mesma e dos seus pais, ou de sua raça, ou da sociedade em geral, vai se consolidando em seu subconsciente, como resultado das atribuições e desconsiderações sofridas. Berne traduz essa posição recalcada no inconsciente fazendo um jogo com a expressão americana “OK”. O indivíduo que tem a seu próprio respeito sentimentos positivos está na posição “Eu sou OK”. Se tem iguais sentimentos a respeito de seu meio, daqueles que o rodeiam, e da sua própria família, a fórmula é ‘”Vocês são OK”, e se está à vontade na sociedade, dirá “Eles são OK”. Essas três visões combinam-se na fórmula muito positiva “Eu sou OK, Vocês são OK, Eles são OK”. A posição negativa oposta é “Eu não sou OK, Vocês não são OK, Eles não são OK”.
Admitindo que o indivíduo tanto pode sentir-se excelente como, ao contrário, ter preconceito contra si próprio, essas fórmulas basicamente expressam valorização e aproximação, ou preconceito e exclusão.
A posição básica da atitude racista é “Eu sou OK, Você é OK, Eles não são OK“. É, com certeza, a posição dos simpatizantes do segregacionismo (“apartaid”) e também a das gangs que queimam mendigos. O preconceito pode ser energicamente recusado pela pessoa discriminada, porém existem aquelas pessoas, e inclusive raças, submissas ou conformadas com o seu fado, cuja posição é “Eu não sou OK, Você não é OK, Eles são OK, em relação, respectivamente, a si mesmas (é humilde), à sua raça ou família (é pobre e ignorante), e à classe dominante (rica ou de origem nobre). Essa posição especialmente paralisante, foi comum aos que nasciam na escravidão, e é comum entre os filhos de famílias estigmatizadas. Nela a pessoa não se sente capaz de ir além de um certo limite, de participar de reuniões sociais, e se presta a obedecer e cuidar dos serviços mais duros e mesmo degradantes, e está inclinada a fazer o jogo “Chute-me” para provar a verdade da sua posição.
Motivação básica. Berne busca ainda identificar qual a motivação básica do comportamento humano, o que é uma questão fundamental em qualquer teoria do comportamento. Neste particular, gostaríamos de confrontar o pensamento de Berne com o de Aristóteles. Este filósofo diz que andou perguntando às pessoas qual lhes parecia ser o motivo das ações humanas e que todas ao final concordaram em que tal motivo é a busca da felicidade. Aristóteles então verifica que a maioria encontra a felicidade nos prazeres, outros na política, outros na excelência perfeita. Berne, com certeza, detém-se na política.
A política, para Aristóteles, representa as honrarias, o poder reconhecido e respeitado. E isto é o que Berne, seguindo René Spitz e Laing, dá como mola mestra do comportamento humano, o reconhecimento. Berne fecha os olhos para a “excelência perfeita” de que fala Aristóteles, a qual transcende ao mero reconhecimento social. Para ele as pessoas buscam um fim no próprio relacionamento, no qual elas dão e recebem reconhecimento.
Essa posição do autor da Análise Transacional tem a sua razão de ser. As experiências com crianças, conduzidas por René Spitz, levaram Berne a pensar que o objetivo das transações sociais é o carinho físico. Spitz havia demonstrado, apenas uma década antes, que crianças deixadas sem o carinho das mães ou de pessoas que as substituam, adoecem e têm seu desenvolvimento intelectual retardado, e estão mais sujeitas a doenças e morte prematura. Crianças que são afagadas por muitas pessoas tendem a ser abertas, confiantes e muito ativas, além de mostrar um grau de desenvolvimento intelectual superior. As pessoas que se sentem “Não OK” são, na opinião de Berne, pessoas que não receberam, quando crianças, carinhos autênticos de seus pais e dos adultos que as rodeavam e isso determina também que vejam a família como “Não OK”, e que os pais dos outros, as famílias dos outros, a casa dos outros é que são “OK”. Creio então que, influenciado por Laing, Berne convenceu-se de que as pessoas aceitam afagos verbais como palavras e provas de reconhecimento, quando na impossibilidade de obtê-los na forma física direta.
Jogos. A pessoa que tem um equilíbrio entre seus estados do ego, e uma posição básica de auto estima, provavelmente terá um comportamento bem ajustado ao meio social. Se este não é o caso, o comportamento irá refletir, de modo repetitivo, a imaturidade, os ressentimentos, os preconceitos do indivíduo. E foi a identificação de comportamentos repetitivos com características de imaturidade, entre os soldados, quando era médico do exército, que levaram Eric Berne à concepção de “Jogos” e de “Papéis” (“Scripts”), descoberta que ele apresenta em seu “best seller” “Jogos da Vida” (Editora Artenova S. A .Rio de Janeiro, 1974).
É difícil em poucas linhas exemplificar “Jogos”, pois que são muitos e constituem a parte mais rica e reveladora da Análise Transacional. São, em síntese, episódios em que as pessoas se envolvem repetidamente, situações que elas armam e que têm sempre o mesmo curso e o mesmo desenlace, e elas fazem isso como um recurso para demonstrar ou que elas são superiores, ou que as demais pessoas não prestam. Por isso os jogos tem características de uma cilada, armada contra alguém que vai sofrer com o seu desfecho, e o perdedor poderá ser o próprio jogador, como é o caso do jogo “Chute-me”, em que o indivíduo está sempre fazendo por onde ser despedido, reprovado na escola, enganado por amigos e termina perguntando: “Por que será que isto sempre acontece comigo?”. Os Jogos são mais facilmente percebidos pelas demais pessoas, que pelo próprio jogador.
Qualquer tipo de jogo tende a atrair outras pessoas a participar dele, pela afinidade entre as posições básicas com a posição do jogador principal. Por isso a maior parte dos jogos exibem três a quatro papéis a serem preenchidos pelos interessados: o da “Vítima” enganada, o do “Perseguidor” que confronta a vítima, e o papel do “Salvador”, alguém que tenta resolver pacificamente a situação entre os dois primeiros. O jogo do Alcóolico é um clássico, neste particular. Nele o perseguidor é a mulher ou a sogra, e o Salvador é geralmente alguém do mesmo sexo do alcoólatra: às vezes o bom doutor da família, que está interessado no paciente e também no seu problema de bebida. Na situação clássica descrita por Berne, o doutor bem sucedido “salva” o alcoólatra do seu vício. Depois que o seu paciente não tomou um único drinque por uns seis meses, eles se congratulam um com o outro. No dia seguinte o paciente é encontrado bêbado na sarjeta.
“Scripts” ou Papéis de Vida. A teoria dos “Scripts” de Eric Berne reivindica que as pessoas fazem planos de vida conscientes na infância ou começo da adolescência o que torna previsível o resto de suas vidas. Berne desenvolveu esse seu conceito com certeza inspirado na teoria de “plano de vida” desenvolvida por Alfred Adler, na virada do século, porém a refinou.
As posições básicas que tem a pessoa e os Jogos que habitualmente faz, por serem de um dado tipo, fazem com que sua vida pareça a de um ator a desempenhar um papel que leva a um resultado final previsível. Um convincente estudo desenvolvendo a ideia de “Scripts” de Berne foi feito por H. Wickoff, seu discípulo. Um dos “papéis” que descreve é o da mulher que ostenta um luxo que é mais de bijuteria que de joias autênticas (mesmo que use joias caras); usa saltos exageradamente altos, roupas exóticas, perfumes raros e intensa maquiagem. Acredita que se veste bem e é estimulada a pensar assim por todos os vendedores de boutique que ela conhece, e são sua principal fonte de afagos. No entanto nunca está satisfeita, sente-se continuamente abaixo das artistas de cinema e modelos que admira. O melhor momento do seu dia é no interior das lojas sofisticadas, quando pode comprar o que deseja. Repetidamente prova a validade do “Script” ao ser ignorada pelas pessoas quando não atua em seu número de “boneca de luxo”. O fascínio por roupas e adereços é tão grande que, mesmo rica, sente-se tentada a cometer roubos nas lojas, e agride o marido gastando demais ou usa seu dinheiro para comprar afagos de um psicanalista. Quando mais velha, frequentemente enche a vida de trivialidades e a casa com bugigangas. Seu corpo é fino, mas flácido, e tem os pés arruinados com sapatos torturantes e secou a pele com óleo de bronzear.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 02-09-98.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Análise Transacional. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 1998.