Baruch Spinoza

Hoje: 26-12-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Época. Baruch Spinoza nasceu em uma família judia, a 24 de novembro de 1632, em Amsterdã, Holanda. (o mesmo ano do nascimento de Locke-1632-1704) e veio a falecer em Haia, em 1677. Seu nome hebreu era Baruch, que significa abençoado, e em suas obras publicadas em Latim, Benedictus. Viveu dentro da chamada “Idade de Ouro” da história da Holanda, era de grandeza econômica, política, e cultural, apoiada na expansão comercial, durante a qual a pequena nação do Atlântico Norte ombreou com as mais poderosas e influentes nações da Europa. A qualidade de vida tinha um padrão geral de bem estar marcado pela simplicidade e uma proximidade de nível entre as classes e respeito entre as pessoas que não existiam nos demais países europeus, e isto é importante ressaltar para compreender que Spinoza, seguindo sua própria filosofia, viveu simplesmente, o que na rica Holanda daquela época não significava pobreza e muito menos indigência. Nessa época, além do próprio Spinoza, o filósofo René Descartes viveu e escreveu suas obras na Holanda, por duas décadas.

A Idade de Ouro produziu cientistas como o físico Christian Huygens, o matemático Simon Stevin e os microscopistas Antonie van Leeuwenhoek e Jan Swammerdam; na literatura Joost van den Vondel e na pintura De Vermeer, Ruysdael e principalmente Rembrandt van Rijn. E apesar de tanta grandeza, a Idade de Ouro foi também um período de guerras. As províncias unidas dos países baixos, atualmente Bélgica e Holanda, rebelaram-se contra o domínio espanhol e seguiram-se anos de confronto com a Espanha, em que se destacaram como chefes militares holandeses os príncipes de Orange.

A Família. A fanília de Spinoza, como o seu nome indica, é originaria da cidade castelhana de Spinoza dos Monteros, na região da cordilheira cantábrica, norte da Espanha. Deixou a Espanha quando o célebre decreto da Alhambra do ano 1492, dos Reis Católicos Fernando e Isabel, proibiu aos judeus a residência no país. Quem não queria o desterro devia aceitar a fé católica. Portugal ofereceu asilo aos emigrados judeus e uma grande parte destes, inclusive a família Spinoza, se estabeleceu lá no mesmo ano de 1492. Mas em 1498, por desejar o monarca português, Dom Manuel o Venturoso, a mão da princesa espanhola, os reis católicos impuseram como condição que Portugal também expulsasse os judeus ou os fizesse batizar. Em consequência a família Spinoza se converte forçadamente ao catolicismo em 1498. O pai de Spinoza, Miguel de Spinoza, nasceu cerca de um século depois, na pequena cidade portuguesa de Vidigueira, na cercania de Beja.

A condição de cristãos novos no final do século XVI era extremamente perigosa, devido à caprichosa investigação que fazia a Santa Inquisição sobre a autenticidade de sua vida católica. Por esta razão, ou por razão de negócios, a família Spinoza, quando Miguel de Spinoza , o pai do filósofo, era ainda criança, foi conduzida por seu chefe, Isaac de Spinoza, avô do filósofo, de Vidigueira para o importante porto de Nantes, no estuário do rio Loire, noroeste da França. Em Nantes, devido ao Édito de tolerância religiosa de Henrique IV, promulgado em 1598, havia uma colônia marrana bem aceita pelos habitantes predominantemente protestantes. Mas esta não durou muito tempo, pois em 1615 todos os marranos foram expulsos. De lá o velho Isaac de Spinoza se trasladou a Roterdã, onde morre em 1627. Miguel de Spinoza e seu tio Manuel foram para Amsterdã. Talvez porque não fosse prudente ser católico em um país que era oficialmente calvinista e que estava em guerra contra a católica Espanha, Miguel e o tio abraçam o judaísmo, este último assumindo o nome de Abraão de Spinoza, embora continuasse sua atividade comercial sob o nome cristão de Manuel Rodrigues.

Miguel de Spinoza se casou três vezes. Sua primeira mulher, Raquel, morreu em 1627 deixando-lhe uma filha chamada Rebeca. No ano seguinte, se casa com Ana Débora, mãe de Spinoza e de mais três filhos, Miriam, Isaac, e Gabriel. Sabemos pouco da mãe de Spinoza, senão que padecia de tuberculose e que morreu em 5 de novembro de 1638, quando Baruch tinha seis anos de idade. Casou pela terceira vez com sua prima Ester de Spinoza, de Lisboa, e esta é quem cuida da educação de seus filhos. Ester morreu em 1652, dois anos antes que seu esposo, que falece a 28 de março de 1654.
Miguel, – que se tornou sócio do estabelecimento comercial de seu sogro e tio Abraham e que o sucedeu na direção do negócio, – foi um dos comerciantes judeus mais respeitados de Amsterdã. A família residia onde atualmente é o bairro Waterlooplein, no qual viviam muitos judeus. Sua casa é descrita, com base nos desenhos que ficaram, como uma casa muito espaçosa porém sem luxo. Foi demolida ainda no século XVIII.

Estudos. A educação recebida por Baruch é a de um jovem judeu de família de posses e isto incluía o estudo fundamental do hebreu, e o conhecimento minucioso da Bíblia Sagrada. Supõe-se que Spinoza estivesse entre os primeiros a frequentar a escola “Árvore da vida”, criada em Amsterdã em 1637 para iniciar no judaísmo aos jovens da comunidade. Em 1638 essa Escola foi confiada a Manasseh ben Israel , um rabino sefardin de cultura humanista, que influiria muito sobre a formação de Spinoza. O ensino que ministravam os rabinos estava dividido em sete classes, que abarcavam desde os fundamentos do idioma até as culminâncias do Talmud, de modo que as últimas classes só se ministravam aos maiores de treze anos que desejassem tornar-se rabinos. Os que não tinham vocação religiosa, como foi o caso de Baruch, podiam aperfeiçoar sua educação religiosa, filosófica e mística na “A academia da coroa da lei” (Kether Thora), criada em 1643 por outro rabino, Morteira, um radical ortodoxo Askenazi, cujo espírito radical terminou por dominar tanto na escola talmúdica “Árvore da vida” como na “Academia da coroa da Lei” que Spinoza também frequentou. Os estudos superiores compreendiam a obra do filósofo judeu-espanhol Jasdai Crescas e vários ensaios que ensejavam debates, entre eles os “Diálogos do amor” do filósofo renascentista judeu, León Hebreu. Este, do platonismo renovado pelo Renascimento, faz a combinação do conceito de uma razão universal com a teoria das idéias de Platão da qual extrai uma concepção do mundo baseada no amor como força cósmica, e de onde Spinoza desenvolverá sua teoria da razão infinita e das essências.

É igualmente importante a cultura que Spinoza adquiriu com o ex-padre jesuíta Francis Van den Enden, estudioso da filosofia clássica, poeta e dramaturgo, e que abriu uma escola para crianças em Amsterdã. Spinoza foi professor em sua escola e com ele aprendeu ciências naturais (física, mecânica, química, astronomia e fisiologia), latim, grego, e a filosofia de Descartes, alem da filosofia neo-escolástica. Van den Enden fazia seus discípulos representarem as comédias latinas. A ele, com certeza, Spinoza deve seu conhecimento profundo do latim, língua em que escreveu sua obra. Van den Enden tinha uma filha, Clara Maria, nascida em 1644 a qual, ainda menina, falava tão bem o latim que, com frequência, substituía ao pai em suas aulas. Parece que Spinoza a apreciava muito pela sua inteligência e precoce erudição e, mais tarde, segundo seu biógrafo Colerus, se enamorou dela e até quis desposá-la. Clara Maria porém se casou com um condiscípulo de Spinoza, o médico Dirck Kerckrinck, de Hamburgo, que, de acordo com o mesmo Colerus, havia conquistado seu favor com um valioso presente e que se converteu ao catolicismo a seu pedido.

Como matemático Spinoza realizou observações e cálculos sobre o arco-íris, e ocupou-se do cálculo de probabilidades, recém descoberto por Johan de Witt e outros. A caminho da maturidade seu interesse intelectual conduziu-o a uma cultura científica e médica que em todos os terrenos o coloca à altura de seu tempo. Como parte dos estudos de física, tal como todos os sábios de então, inclusive Leibniz e Christian Huygens, polia ele mesmo suas lentes. Sabe-se que suas lentes eram de grande perfeição, seja pela precisão de seu cálculo matemático, seja por sua habilidade manual, e é provável que tenha aceito pedidos de amigos para prepará-las.

No ano de 1650 falece Guilherme II, Conde de Nassau e Príncipe de Orange, chefe dos Estados Gerais e também Descartes que, tendo deixado a Holanda para viver na corte da Rainha Cristina, falece aquele ano na Suécia. Em 1654 faleceu Miguel de Spinoza.

Ceticismo de Spinoza. O jovem Spinoza, aos vinte anos de idade, começa a levantar suspeitas quanto ao que ensinava e discutia de religião. Seu ceticismo manifesto não é estranho aos jovens das famílias de cristãos novos reconvertidos ao judaísmo. Nem é difícil entender a origem desse ceticismo no próprio espírito marrano. Entre os que foram para Amsterdã, muitos desejavam voltar a ser livremente judeus, porém outros vacilaram em aceitar a fé judaica, continuando católicos. Outros ainda, desejam voltar ao judaísmo, mas não encontram lá a mesma tradição judaica de Portugal e Espanha, a grande tradição do judaísmo sefardim, representada por Maimónides. Um exemplo é o caso de Uriel da Costa, membro de uma família de cristãos-novos rigorosamente católicos, e que chega em Amsterdã, por volta de 1612. Havia recebido já os hábitos sacerdotais quando se converte ao judaísmo de seus ancestrais. Porém o judaísmo ashkenasi holandês, sistemático e fanaticamente ortodoxo, não o satisfaz, e vive um drama que o leva ao suicídio. Em geral a comunidade portuguesa de Amsterdã, unida pelo idioma e a procedência, se considera a si mesma como uma nação, está constituída por um mundo de altos comerciantes para quem a religião não é um problema fundamental. Si aderem ao judaísmo é porque em um Estado fundado pelos calvinistas se sentem mais seguros assim que sendo católicos, e não têm necessidade de se fazerem calvinistas.

O estudo da Bíblia levou Spinoza às obras dos comentadores judeus e entre estes aprendeu a estimar, em primeiro lugar, a Abraham ibn Ezra quem deve ter-lhe despertado as primeiras dúvidas sobre a unidade do Pentateuco, o que pode tê-lo movido ao exame crítico das Escrituras. Também Gersonides, ao assinalar as discrepâncias da cronologia bíblica. Em Maimónides, que reúne, como escolástico judeu, a Bíblia e a concepção aristotélica do mundo, encontra talvez Spinoza sua maior inspiração humanista e anti-ortodoxa. No grupo de autores judeus que Spinoza chegou a estudar na comunidade de Amsterdã, pertence também Abraham Herrera, que em seu “Porta do céu” une em forma original a mística do neoplatonismo com as especulações da Cabala.

Outra grande influência sobre Spinoza é a do médico Juan (Daniel) de Prado, que com ele será expulso da comunidade, este exerce sobre Spinoza uma influencia maior e mais imediata. Aceita um naturalismo puro enquanto nega a verdade da Escritura e do Deus nela revelado, para substitui-lo por um Deus-Natureza que se manifesta nas leis naturais. Para o ceticismo de Spinoza contribuíram igualmente as disputas dentro da própria comunidade judaica de Amsterdã, dividida na oposição pessoal dos dois rabinos principais, os citados Manasseh ben Israel e Saúl Levi Morteira. O primeiro, sefardim nascido em Lisboa, é humanista, e o segundo, Morteira, nascido em Veneza, é aschkenasi, um fanático radical.

A oposição dos dois rabinos determina conflitos dramáticos. Manasseh ben Israel busca uma sínteses do judaísmo com o humanismo e goza de mais alto conceito entre os intelectuais holandeses. Morteira, ao contrário, quer um judaísmo voluntariamente segregado, a forma religiosa estreita dos judeus orientais ou aschkenasis, dominada pela Cabala, a teologia emanatista medieval, carregada de profundo sentido místico penetrado de superstições pueris. Seu livro “Providência de Deus com Israel” (ou “Esperança de Israel”), devido à orientação fanática anticristã, não teve permissão para publicação mas cópias circularam na comunidade e, graças a ele, Morteira triunfa sobre seu adversário: o espírito do judaísmo aschkenasi domina na comunidade judaica de Amsterdã, uma fórmula religiosa do século XV em desacordo com o espírito científico do século XVII. Os judeus que, portadores da tradição humanista portuguesa, eram socialmente integrados e viviam em palácios, viram-se constrangidos por uma religião de gueto, potencialmente criadora de profundos conflitos.

O que a todos comentaristas de Spinoza parece, é que, em um mundo de tantas tendências variadas e algo contraditórias, ele teve que buscar uma solução própria. Não seguiu a Morteira, como toda a comunidade, pela senda do judaísmo aschkenasi, nem tão-pouco aceitou a linha de Manasseh.

Expulsão da Comunidade Judaica. Spinoza logo incorreu na desaprovação das autoridades da sinagoga, por suas afirmações junto aos rabinos, como a de que não havia nada na Bíblia afirmando que Deus não possuía um corpo físico, que os anjos realmente existissem como espíritos sem corpo, ou que a alma humana fosse imortal fora do corpo. Porém, depois daquelas afirmações, o acusaram de ateísmo ante a comunidade e foi instaurada a correspondente devassa. Spinoza foi convidado a comparecer ante Morteira, e frente à ameaça de excomunhão, teve uma atitude arrogante. Declarou que já havia desejado romper com a Sinagoga, mas evitara fazê-lo para não provocar um escândalo. Frente à acusação, dirigiu aos rabinos um escrito em que reafirma suas convicções. Deve ser desta ocasião, em 1655, a preparação por Spinoza do seu Tractatus de Deo et homine et jusque felicitate, em que se defende explicando seus pontos de vista. A congregação não teve alternativa senão aplicar-lhe a excomunhão. O texto da excomunhão de Spinoza, publicado o 27 de julho de 1656, diz ao final: “Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste nenhum favor, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia nada escrito ou transcrito por ele”.  Até que ponto havia chegado a rejeição a Spinoza pelos fanáticos da comunidade mostra o atentado que o vitimou: uma noite, alguém tentou apunhalá-lo no caminho de sua casa, quando voltava da Sinagoga. Conseguiu esquivar-se ao golpe do punhal que apenas rasgou sua casaca.

A vida de Spinoza fatalmente sofreria uma mudança quando ele se afastou do judaísmo. Estava então, juntamente com seu irmão Gabriel, à frente do negócio deixado por seu pai quando este faleceu em 1654. Tratava-se de um comércio de importação e exportação, uma tradição de negócio que vinha de Portugal, onde as transações ultramarinas estavam quase inteiramente em mãos dos marranos portugueses. Essa prática comercial envolvia vultosas operações bancárias e importantes contratos de seguros entre os judeus. Porém o negócio de Miguel d’Spinoza havia decaído muito nos últimos anos de sua vida, correspondentes ao período em que a guerra entre Inglaterra e Holanda havia prejudicado o comércio com o exterior. Esta dificuldade e principalmente o peso de sua condenação levaram Spinoza a renunciar à profissão mercantil. Seus biógrafos acreditam que se dedicou à medicina, pois em seus escritos mostra profundos conhecimentos médicos, e sua biblioteca contém todas as obras de medicina teórica e prática necessárias ao médico naquela época. Até uma carta de Leibniz está dirigida ao “Médecin tres célebre et philosophe tres profonde“. Com estes estudos médicos, estão relacionados seguramente seus conhecimentos químicos. Quando aconselha De Vries no planejamento de seus estudos de medicina, lhe recomenda que estudasse primeiro anatomia e depois química. Seus estudos químicos são os que lhe permitem manter com o grande químico Roberto Boyle uma correspondência científica, baseada em experimentos próprios, acerca da natureza do salitre.

Além do negócio, seu pai deixou um legado que foi objeto de contenda entre Spinoza e uma meia irmã. Os parentes tentaram então excluir a Spinoza da herança, pretextando, tal vez, sua apostasia, pois segundo a lei judaica é permitido deserdar ao que há desertado do judaísmo. Para defender seus interesses frente aos credores de seu pai, se lhe designou um tutor a 23 de março de 1656. (Em Holanda a maioridade de começava então aos 25 anos). Embora tenha ganho a causa na justiça, Spinoza deixou para ela praticamente tudo. Quando teve lugar a repartição de bens, solo se ficou com uma cama e sua correspondente cortina para seu uso pessoal. Com essa injustiça, o distanciamento de sua família foi definitivo.

Os colegiantes. Depois de sua voluntária ruptura com o judaísmo, Spinoza se liga a uma irmandade ecumênica leiga, de pessoas das mais diversas comunidades religiosas que se reuniam para ler e interpretar a Bíblia. Sequer a condição de ser cristão era exigida. Conhecidas como os colegiantes, faziam da Bíblia o centro de sua vida religiosa, e certamente estimaram muito a entrada de Spinoza, por seus profundos conhecimentos bíblicos.

O primeiro de seus amigos do círculo dos colegiantes foi o rico comerciante Jarig Jelles, o qual havia abandonado seu negócio em mãos de um gerente de confiança a fim de viver em retiro silencioso para meditar. Jelles empregava fundos em mandar traduzir obras filosóficas, entre as quais as obras de Descartes, de quem era admirador. Fez traduzir o pensamento estóico de Séneca e inclusive a Homero e ao Corão. Deve ter se alegrado em receber Spinoza no grupo, pois seus pensamentos se afinavam, tanto quanto ao interesse pela filosofia de Descartes quanto por suas posições religiosas em comum. Fixou uma pensão para que Spinoza pudesse ocupar-se exclusivamente de escrever e financiou a publicação de seus livros e, após a morte do filósofo, mandou cuidadosamente, junto com outros amigos de Spinoza, editar em latim e holandês suas obras.

O outro amigo, colegiante como Jelles, foi Pedro Balling, também comerciante e cujos negócios o levavam por toda Península Ibérica, donde a possível base de sua amizade com Spinoza ser o fato de poder conversar com o filósofo na língua materna de sua família. Inteligente e conhecer do grego e do latim, foi quem traduziu para o holandês os primeiros escritos de Spinoza.

Um terceiro amigo, mais jovem e também colegiante, foi o citado Simón de Vries. Filho de um próspero comerciante pretendia ser médico contando para isto com a orientação de Spinoza. Juntamente com os demais amigos, de Vries funda, em Amsterdã, uma agremiação para estudar e discutir a filosofia de Spinoza, com a assistência do próprio filósofo. Era mais moço que Spinoza, porém falece em l667. De Vries ofereceu a Spinoza a soma de dois mil guldens para que pudesse viver mais folgadamente, mas o filósofo recusou a oferta, alegando que em absoluto necessitava daquela quantia, que poderia inclusive levá-lo a distrair-se de seu trabalho e de suas pesquisas. De Vries, que veio a falecer solteiro, também quis fazer de Spinoza seu único herdeiro, quando o filósofo exigiu dele que deixasse sua fortuna para seu irmão Isaac de Vries, seu herdeiro legal, que vivia em Schiedam. Vries obedeceu, porém com a condição de que Isaac pagasse a Spinoza uma pensão vitalícia. Cumprindo essa condição, Isaac de Vries fixou a pensão em quinhentos guldens, porém Spinoza o fez reduzi-la a apenas trezentos.

Alguns colegiantes amigos de Spinoza foram políticos importantes. Conrado van Beuningen, foi prefeito de Amsterdã e embaixador na França e na Suécia. Mandou publicar as obras do filósofo alemão Jacobo Boehme e aceitou a concepção de Deus postulada por Spinoza. Outro foi Conrado Burgh, ministro das finanças. Um terceiro político foi Nicolás Tulp, cunhado de Burgh, médico e também prefeito de Amsterdã, famoso pelo retrato feito por Rembrandt de uma de suas aulas de anatomia; e também ainda outro prefeito de Amsterdã, conhecido por seus trabalhos de óptica, Juan Hudde, com quem Spinoza manteve correspondência filosófica sobre o problema da unidade de Deus. Por último, pertenceu ao mesmo círculo Juan Rieuwertsz, o editor da maior parte dos livres-pensadores que procuravam editores holandeses, e que editou toda a obra de Spinoza.

Em 1661 Spinoza sentiu a necessidade de buscar um local de residência mais tranquilo para melhor meditar as obras que preparava. Refugiou na tranquila aldeia de Rijnsburg, que era o centro dos colegiantes, nas proximidades de Leyden. Em Rijinsburk, de 1661 a 1662, Spinoza dividiu a morada com o cirurgião Hermann Homam, e ali escreveu “Pequeno tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade” e o seu Tractatus de Intellectus Emendatione (“Tratado sobre o melhoramento do Intelecto”). Ele também completou a maior parte da sua “versão geométrica” da obra de Descartes, Principia Philosophiae com o apêndice Cogitata Metaphysica (“Pensamentos metafísicos”) e também a primeira parte de sua “Ética”, a qual dividiu em cinco partes: A respeito de Deus; A natureza e origem do espírito humano; Natureza e origem das emoções; A escravidão humana, ou a Força das emoções; e Poder do conhecimento, ou Liberdade humana. Nessas obras Spinoza envereda pela contestação ao dualismo cartesiano, e utiliza notas que havia feito nos debates do círculo de Amsterdã. Em Rijnsburg foi visitado, no verão de 1661, pelo acadêmico anglo-alemão Heinrich Oldenburg, que logo seria um dos dois primeiros secretários da Royal Society em Londres. O ano de 1662 é provavelmente aquele em que Spinoza, completa o Tractatus de intellectus emendatione.

Período do Tratado Político. A partir de 1663 e até 1670 Spinoza viverá na pequena aldeia de Voorburg, nas imediações de Haia, e onde seus contactos políticos serão maiores. O mesmo grupo de amigos políticos de Amsterdã, os citados Conrado van Beuningen, Juam Hudde e Conrado Burgh, pode encontrar-se com ele mais facilmente, por virem frequentemente tratar assuntos políticos em Haia, sede da Assembléia dos Estados Gerais que governava as províncias unidas do estado holandês. Porém trava relações com várias outras figuras importantes, membros da Assembléia, cuja proteção será importante para poder publicar suas obras. Aqui começa o conhecimento e amizade de Spinoza com o chefe do Estado Holandês, Johan de Witt. Consta que Spinoza não os procurava porém os recebia em sua casa onde políticos e pessoas eminentes iam visitá-lo.

Em Vooburg Spinoza alugou seus aposentos em casa do pintor Daniel Tydeman. Não gozou boa saúde no período em que lá residiu. Sofria febre frequente, e tratava-se com sangrias e extratos de rosa, um antitérmico então em uso. Evitava sair conforme o tempo não estivesse favorável. Permanecer em casa provavelmente motivou-o a aprender desenho, possivelmente com o próprio pintor. Pelo menos dois biógrafos afirmam que tiveram em mãos um livro de desenhos de Spinoza, em que apareciam retratos de muitos homens eminentes seus amigos.

O “Princípios da filosofia” escrito por Spinoza em Rijnsburg apareceu em 1663 em língua latina, com o título Renati des Cartes Principiorum Philosophiae Pars I et II, com o apêndice Cogitata Metaphysica, e no ano seguinte vertido para o holandês pelo amigo Pedro Balling. Foi sua única obra assinada, publicada durante sua vida. Em parte o propósito desse trabalho era evidenciar que conhecia Descartes, o qual ele refutava nas obras que iria completar e publicar. Parece que em meados de 1665 ele estava próximo de completar sua “Ética”. Durante os próximos anos, no entanto, ele prefere trabalhar no seu Tractatus Theologico-Politicus o qual, seguindo a mesma cautela então em voga entre os filósofos, ele fez publicar anonimamente em Amsterdã em 1670. Com certeza Spinoza considerava esse trabalho indispensável para desarmar os espíritos, a fim de lançar em seguida a sua Ética.

O “Tratado teológico-político” foi escrito para mostrar que não apenas a liberdade de filosofar era compatível com a piedade religiosa e com a paz do Estado, mas que tirar essa liberdade era destruir a paz pública e inclusive própria piedade. Ele argumenta também que a inspiração dos profetas do Velho Testamento compreendia apenas sua doutrina moral e que em matéria de mundo físico as crenças que tinham eram meramente aquelas próprias do seu tempo e não tinham importância filosófica. Completa liberdade para a especulação científica e metafísica era portanto consistente com tudo que é importante na Bíblia. Os milagres são explicados como eventos naturais mal interpretados e exagerados para maior efeito moral. Buscou demonstrar que a Bíblia, propriamente interpretada, não da nenhum apoio à intolerância religiosa ou para a interferência do clero nos assuntos civis e políticos.

À época em que Spinoza escreveu seu “Tratado”, o destino político da Holanda estava em jogo. Parecia inevitável que, quando De Witt deixasse o poder, o príncipe de Orange trataria de ser soberano. Seria o fim da República colegiada e a volta da monarquia desejada pelo partido orangista. Spinoza se preocupa com a constituição do Estado, fosse ele monárquico ou aristocrático, “para que não sucumbisse à tirania e ficassem intactas a paz e a liberdade dos cidadãos”, fazendo uma minuciosa exposição e crítica das constituições do tipo monárquico e aristocrático. Exige a participação do povo no Estado e a cooperação regular do povo com a aristocracia. Suas idéias tinham, portanto, enorme importância política, porque favoreciam aos partidários da república, então comandada por Johan de Witt, e contrariavam as pretensões de Guilherme III, príncipe da casa de Orange, de transformar as províncias unidas em uma monarquia, o que contava com o apoio dos calvinistas ortodoxos.

Em maio de 1670 Spinoza mudou-se para Haia, imediatamente depois da publicação do Tratado teológico-político. Vai morar no bairro mais tranquilo da cidade, onde viviam então numerosos intelectuais e artistas., primeiro em casa de uma senhora viuva, van Velen, e depois, na primavera de 1671, em casa do pintor Hendrick van der Spyck, em Paviljoensgracht, onde ficou até sua morte.

Em Haia os calvinistas ortodoxos, dominantemente monarquistas ou do “partido orangista”, levantaram denuncias contra o “Tratado”, que em 1669 foi denunciado pelo Conselho da Igreja calvinista de Amsterdã como “um instrumento forjado no inferno por um judeu renegado e o demônio, e publicado com o conhecimento do Senhor De Witt”. Para os contemporâneos era evidente que seu autor estava em íntima relação com a pessoa e a política do Chefe da Confederação das Províncias ou Estados Gerais. Suas relações eram muito próximas e conhecidas. Seu biógrafo e contemporâneo Lucas diz que De Witt ouvia a opinião de Spinoza sobre questões políticas importantes, discutia com ele questões de matemática, pois ele mesmo, De Witt, conquistou fama de matemático notável no estudo das seções cônicas e no cálculo de probabilidades, enquanto Spinoza, por sua vez, escreveu um opúsculo sobre o cálculo de probabilidades, motivo pelo qual manteve em correspondência com um tal Van der Meer. Os protestos contra o “Tratado” não alcançaram nenhum resultado enquanto Johan de Witt teve em suas manos o leme do Estado. A obra provocou grande interesse e teve cinco edições sucessivas nos cinco anos seguintes. Mesmo depois do assassinato De Witt em 1672 não se produziu nenhuma intervenção e o livro alcançou ainda duas edições mais devido ao extraordinário interesse que despertou em toda a Europa. Mas quando Guilherme III, para afirmar seu poder, se liga cada vez mais com a ortodoxia calvinista, tem fim a liberdade do “Tratado”. Por um édito de 1674 a Assembléia dos Estados Gerais, agora chefiada pelo príncipe de Orange, o proíbe junto com outros livros considerados contrários à religião do Estado.

Últimos anos. Certamente Spinoza sentiu a morte do pintor Rembrandt (nascido em Leiden em 1606) ocorrida em Amsterdã, em 1669.
Em 1671 Leibniz, sabendo-o uma autoridade em ótica enviou para Spinoza o seu Notitia opticae promoteae;
Spinoza retribuiu a gentileza enviando-lhe uma cópia do Tractatus Theologico-Politicus que interessou profundamente o filósofo alemão.

Em 1672 os franceses invadiram as Províncias Unidas. Os holandeses abriram os diques do mar e conseguiram manter o inimigo a um dia de marcha de Amsterdã. Johan de Witt e seu irmão foram considerados responsáveis pela invasão e foram linchados por uma multidão em 20 de agosto. Guilherme de Orange foi feito Capitão-General das Províncias Unidas. O linchamento de De Witt levou Spinoza a planejar colocar cartazes denunciado a barbárie – um ato que poderia ter custado sua vida não tivesse ele sido à força impedido de executá-lo pelo senhorio da casa em que morava. Elaborou um cartaz taxando de bárbaros os responsáveis pelo assassinato e pretendia fixá-lo no lugar do crime. Mas seu senhorio van der Spyck fechou a porta impedindo-o de sair, de modo que teve de desistir de seu inútil e perigoso propósito.

No ano seguinte, l673, recebeu um convite da Universidade de Heidelberg. O nobre príncipe eleitor palatino Carlos Luís, que reconstruiu seu país sobre as ruínas da Guerra dos Trinta Anos, pretendendo superar os conflitos religiosos funda um Templo da Concórdia para o culto comum das três confissões cristãs. Spinoza, que em seu Tratado teológico-político expõe os dogmas de uma fé comum, devia parecer-lhe o homem mais indicado para ensinar filosofia em sua Universidade. Encarrega ao geólogo Luís Fabritius de escrever a Spinoza oferecendo-lhe a cátedra de professor titular de filosofia. Porém não fica claro para Spinoza se poderia gozar de completa liberdade de pensamento o que o faz recusar o convite.
A decisão de Spinoza foi sensata porque, de fato, a Universidade de Heidelberg foi fechada no ano seguinte, ao ser ocupada a cidade pelos franceses.

A situação de Spinoza em Haia ficou perigosa em maio de 1673, quando ele foi para Utrecht (então sob ocupação francesa) com vistas a uma possível negociações de paz. Spinoza recebeu um convite do chefe supremo do exército francês, o grande Conde, que havia ocupado a maior parte de Holanda, para que o filósofo lhe fizesse uma visita em seu quartel general de Utrecht. O oficialato francês em campanha desejava de Spinoza um esclarecimento sobre a situação religiosa da Holanda, que supunham não era puramente protestante e estava cheia de católicos e de sectários de várias correntes. Spinoza aceita o convite e empreende a viagem a Utrecht através das tropas inimigas com a aprovação dos regentes holandeses que viram com esperança a probabilidade de se fazer a paz, e aquela era a ocasião para sondar as perspectivas por meio de uma conversação, não comprometedora, com o general inimigo. Mas a missão de Spinoza não teve êxito, porque Condé havia partido de Utrecht e Spinoza esperou inutilmente seu regresso durante algumas semanas. No seu retorno, várias semanas depois, ele foi recebido mal pela desconfiada população de Haia, correndo rumores de que era espião francês.

Em Haia Spinoza começou a compor uma gramática hebraica (Compendium Grammatices Linguae Hebraeae), mas não a terminou; em lugar disso, ele retomou o trabalho de redação da “Ética”. Apesar de toda a cautela guardada ao preparar sua Ética, transpirou que preparava uma publicação cheia de idéias revolucionárias. Os representantes da Igreja calvinista iniciaram a luta em toda Holanda contra o livro, e apelaram ao governo para impedir sua publicação. Quando em 1675 termina essa obra, não consegue publicá-la. Havia se difundido o rumor de que estava no prelo um livro seu sobre Deus, no qual tratava de demonstrar que Deus não existia. Alguns teólogos apoiados por certos cartesianos que queriam limpar-se de toda suspeita de simpatizar com Spinoza, o acusam ante o príncipe de Orange. “O assunto toma dia a dia um vulto mais grave”, escreve Spinoza a Oldenburg. Porém a obra circulou em cópias manuscritas entre seus amigos mais íntimos.

Spinoza não para de escrever. Empreende alguns trabalhos menores, faz anotações à margem do “Tratado teológico-Político”, e trabalha em sua gramática da língua hebréia que antecipa posições da moderna filosofia da linguagem, além de um opúsculo sobre o arco-íris, publicado depois de sua morte. Mas o trabalho fundamental dos dois últimos anos de sua vida foi o” Tratado Político”, no qual expõe sua teoria do Estado e projetos de constituições para os estados monárquicos e aristocráticos, e que não viveu para completar.

Depois que a Ética ficou conhecida, Spinoza foi procurado por muitas pessoas importantes. Destes, o mais notável foi Gottfried Wilhelm Leibniz, o qual era, como Spinoza, um dos mais destacados racionalistas da época. Ambos os filósofos haviam trocado exemplares de obras suas, alguns anos antes ( vide acima) e por último Leibniz havia tentado em vão conseguir uma cópia manuscrita da Ética. Vindo de Paris, Leibniz visita a Spinoza em Haya em 1676. Na ocasião Leibniz, nascido em 1646, contava 29 anos. Falaram sobre as leis cartesianas do movimento, sobre uma nova forma da prova ontológica proposta por Leibniz, ocasião em que Spinoza lhe mostra o manuscrito de sua Ética e lê para o colega algumas partes. De acordo com Leibniz, nessa visita eles conversaram longamente muitas vezes. Outro ilustre visitante foi Ehrenfried Walter von Tschirnhaus (em 1675), um cientista e filósofo que se interessava especialmente pela teoria do método. Com Tschirnhaus trocou uma correspondência sobre questões filosóficas relativas ao conhecimento, com grande interesse por parte de Tschirnhaus que mais tarde publicaria uma Medicina do Espírito ou Psicologia. médica.

De declarações de quase todos os que o visitaram ou com ele conviveram se pode compor os traços gerais da personalidade de Spinoza. Leibniz diz da figura de Spinoza que ele tinha uma cor azeitonada, o que é comum aos povos do Mediterrâneo. Tinha traços típicos portugueses e espanhóis conforme a descrição de seu principal biógrafo, o citado Colerus, que o apresenta de mediana estatura, rosto moreno, cabelos negros e ondulados e sobrancelhas largas e negras.
Segundo os donos da casa onde alugou seus aposentos suas maneiras eram tranquilas e reservadas; às crianças da casa ele aconselhava obediência aos pais, e que assistissem aos serviços religiosos. Estando em casa passava a maior parte do tempo recolhido ao seu trabalho, se bem que gostasse de conversar com o senhorio sobre variados assuntos enquanto se dava ao prazer de fumar um cachimbo. Sua simplicidade impedia que suas maneiras reservadas fossem tomadas por alguém como pretensão de superioridade. Vestia-se bem e disse do estereótipo dos filósofos: “Uma aparência suja e descuidada não nos transforma em sábios”. Diz um seu biógrafo que no ambiente refinado do quartel general francês onde foi recebido, se admiraram da natural distinção de seu porte. O marechal francês Charles Saint Dénis, Senhor de Saint Evremont, hóspede do príncipe de Orange, Guilherme III, ateu e autor de memórias, logo que chega à Holanda, em 1665, visita a Spinoza em Voorburg e o descreve: “Spinoza era de mediana estatura e de fisionomia agradável. Seu saber, sua discrição e sua independência faziam que todas as pessoas inteligentes de Haia o apreciassem e buscassem seu convívio”. Se diz geralmente que Spinoza não só ensinou sua filosofia, como também que ele próprio a seguiu. Viveu suas próprias máximas: “Dos prazeres fazer uso só do necessário para conservar a saúde. Adquirir dinheiro ou outros bens só na medida necessária para subsistir e conservar nossa saúde e para adaptar-se a uma vida social que não seja contraria a nossos fins”. Aceita a alegria como um bem em si e rechaça a tristeza porque nos deprime. “Quanto maior é a alegria que nos invade, tanto maior é a perfeição que alcançamos”.

Spinoza morreu inesperadamente em 21 de fevereiro de 1677. Havia chamado o médico Jorge German Schuller, de seu círculo de amizades, um alemão nascido em Wesel em 1651 que exercia sua profissão em Amsterdã e era aficionado aos experimentos de alquimia. Schuller estava presente quando faleceu. Seu corpo foi sepultado na Nieuwe Kerk (Igreja Nova), no Spuy, a igreja da aristocracia cristã. Faleceu solteiro sem deixar herdeiros, e seus pertences foram leiloados. A lista de objetos foi conservada e inclui 160 títulos de livros.

Seguindo instruções do filósofo, vários amigos prepararam seus manuscritos secretamente para publicação e os enviaram a um editor em Amsterdã. A Opera Posthuma ( Ethica, Tractatus politicus, Tractatus de intellectus emendatione, Epistolae, Compendium Grammatices Linguae Hebrae e também suas cartas foram publicados antes do fim do ano de 1677. O seu “Sobre o arco-íris” e o seu “Sobre o cálculo das oportunidades” foram impressos juntos em 1687. O “Pequeno tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade” somente foi conhecido quando publicado bem mais tarde, em 1852.

Teoria do Conhecimento. A filosofia de Spinoza é considerada uma evidente resposta ao dualismo da filosofia de Descartes (1596-1650) a qual, na opinião dele, fazia o mundo impossível de ser entendido. Era impossível explicar a relação entre Deus e o mundo, ou entre o espírito e o corpo, ou apresentar fatos devidos a uma vontade livre.

Spinoza sustentava que existe um sentido no qual as definições podem ser corretas ou incorretas. Uma definição confiável, ele afirmava, deveria deixar clara a possibilidade ou a necessidade, conforme possa ser o caso, da existência do objeto que foi definido. Portanto, uma definição correta é sempre verdadeira e a partir dessa definição se podem deduzir outras verdades; e por via de tais deduções é possível construir um sistema metafísico isto é, uma apresentação do mundo como um todo perfeitamente inteligível. Estava convencido de que cada aspecto da realidade é necessário e que toda possibilidade logicamente coerente deve existir. Portanto é possível demonstrar a metafísica dedutivamente, através de uma série de teoremas derivados, etapa por etapa, de consequências necessárias a partir de premissas auto-evidentes, expressas em termos que são auto-explicativos ou definidos com uma correção inquestionável. Porém tal método garante conclusões verdadeiras somente se os axiomas são verdadeiros e as definições corretas. Com este pensamento, voltou-se para o método geométrico à maneira dos Elementos, de Euclides. Sua obra prima, a “Ética”, foi escrita desse modo – “Ordine Geometrico Demonstrata“. O que Spinoza quer dizer com “prova geométrica” é precisamente que, se aceitamos as definições e os axiomas dados, e desde que as deduções sejam corretamente feitas, então temos que aceitar as conclusões. Cada uma das cinco partes da “Ética”, sua obra fundamental, abre com uma lista de definições e axiomas, dos quais são deduzidas várias proposições, ou teoremas. Porém, porque a Ética começa justamente com uma definição básica, a definição de “substância”, que é aquilo que necessariamente existe, fica claro que, se rejeitamos sua definição de substância estamos rejeitando todas as deduções que ele faz a partir dela; rejeitando, portanto, todo o seu sistema.

Spinoza recomenda que façamos uma cuidadosa distinção entre as várias formas de conhecimento e confiemos apenas nas melhores.

Primeiro, existe o conhecimento por ouvir dizer, pelo qual, por exemplo, sei o dia de meu nascimento.

Segundo, existe a experiência vaga, o conhecimento “empírico” no sentido depreciativo, como quando um médico sabe de um tratamento, não através da formulação científica de testes experimentais, mas por uma “impressão” de que “costuma” dar certo.

Terceiro, existe a dedução imediata, ou seja, conhecimento a que se chega pelo raciocínio, como quando concluo da imensidade do sol por saber que a distancia diminui o tamanho aparente dos objetos. Este último tipo de conhecimento é superior aos outros dois, mas está ainda sujeito a uma repentina refutação pela experiência direta.

Quarto, a forma mais elevada de conhecimento, que provém da dedução imediata e da percepção direta, como quando vemos imediatamente que 6 é o número que falta na proporção, 2: 4 :: 3: x; ou quando percebemos que o todo é maior que a parte. Spinoza acredita que os homens versados em matemática conhecem Euclides principalmente por essa forma intuitiva; mas confessa tristemente que “as coisas que consegui saber através dessa forma de conhecimento têm sido muito poucas até agora”.

A quarta forma, que é a intuição (6 é o número que falta na proporção, 2: 4 :: 3: x), parece ser adequada ao conhecimento dos objetos individuais. É possível, pela intuição afirmar de qualquer coisa que ela depende de Deus como sua causa completa, imanente. Talvez pelo termo intuição Spinoza referisse a um tipo de experiência mística, o insight acompanhado por uma forte emoção que ele chamou “o amor intelectual de Deus” na dependência de todas as coisas, incluindo o ser humano ele mesmo, no total da natureza.

Comentando o conhecimento empírico (Segunda forma), Spinoza sustentou que toda experiência dos sentidos e toda generalização não científica a partir dessas experiências é inadequada. Nenhum objeto pode ser isolado do resto da natureza; portanto, ninguém pode afirmar a verdade total sobre ele, uma vez que isto envolveria a natureza inteira. O conhecimento deste tipo foi chamado por Spinoza “opinião” ou “imaginação”. Se, no entanto, como acontece na terceira forma, a consciência é dirigida somente para aquelas propriedades que todos os objetos tem em comum, não haverá a distorção que ocorre na experiência dos sentidos. Este tipo de conhecimento é chamado razão. Por esse caminho Spinoza dava conta da possibilidade do conhecimento a priori na geometria, física geral e psicologia geral.

Substância e Deus. Na primeira parte da “Ética”, “Com respeito a Deus”, Spinoza, após apresentar as definições e axiomas pertinentes, deduz 36 proposições sobre a natureza de Deus. Destas a mais importante sem dúvida é a 14, que diz: “Além de Deus, nenhuma substância pode ser dada ou concebida”. Ela é a proposição panteísta de Spinoza, na qual ele faz Deus idêntico ao universo; tudo que existe, sob qualquer forma, é parte de Deus. Esta proposição conflita com a idéia mais comum de que Deus é transcendente, distinto da sua criação, separado do mundo físico e dos homens. O argumento de Spinoza a esse respeito é o seguinte: Não é possível existirem duas substancias com os mesmos atributos; ora, Deus tem todos os atributos; então não sobra qualquer atributo possível que já não esteja em Deus e portanto nenhuma outra substância pode existir além de Deus mesmo.

Pensamento e extensão são dois atributos. Existem coisas que são pensamento e existem as coisas do mundo físico que têm a extensão. No entanto, para Spinoza, Deus já possui necessariamente esses dois atributos, pensamento e extensão, porque sua perfeição exige que tenha todos os atributos possíveis. Consequentemente esses atributos não pertencem a uma substância “pensamento” ou a uma substância “coisa física” e sim pertencem a Deus que tem todos os atributos possíveis. Logo, Deus é a única coisa que existe. Necessariamente, as outras coisas só existem em Deus mesmo, como parte D’ELE.

Spinoza chama de substancia aquilo que verdadeiramente existe, o ser interior ou a essência. Substancia então é aquilo que eterna e imutavelmente é, aquilo que pode ser pensado como tendo existência completamente independente e do qual todo o resto participa como forma ou modo transitório. Porque não pode ser explicada por nenhuma outra coisa, ela deve ser sua própria causa, ou “necessariamente existente”. Como tal, pode haver apenas uma única substância, e Spinoza a identifica com Deus e ao mesmo tempo com a Natureza inteira. Spinoza assim aporta ao panteísmo.

Mas, ainda assim, Spinoza não exclui que haja um Criador e a coisa criada. Spinoza concebe a natureza, que é Deus, sob um duplo aspecto. Como um processo ativo e vital, que chama “natura naturans“, natureza criadora; e como o produto passivo desse processo, “natura naturata” natureza criada, a matéria e o conteúdo da natureza, suas florestas e ventos e águas, suas colinas e campos e miríades de formas externas. E assim explica essas duas naturezas contidas na substância (que seria Deus ou uma natureza geral): Se duas coisas, dois universos, tiverem os mesmos atributos, então trata-se da mesma coisa, ou do mesmo universo, ou da mesma substância, como visto. No entanto, a substância única, que contém todos os atributos, pode mostrar diferenças, não nos atributos, porém no que Spinoza chama “modos”. Um modo (ou modificação) é uma propriedade mais restrita do universo, o modo como um atributo aparece em um nível inferior. Modos variam, aparecem e desaparecem.

Um modo é uma coisa ou acontecimento individual, qualquer forma ou aspecto especial, que a realidade assume transitoriamente; você, seu corpo, seus pensamentos, seu grupo, sua espécie, seu planeta, são modos; tudo isso são formas, modos, quase que literalmente estilos, de alguma realidade eterna e invariável que está por trás e por baixo deles. Por exemplo, a forma de um objeto, se redondo, se tem superfície irregular, se quadrado, etc., é uma modificação ou “modo” do atributo “extensão”. Os modos, como pensamento de Deus, são modelos que acomodam as coisas nas formas em que as conhecemos de corpos, de fatos, de acontecimentos. Por isso as coisas são transitórias, existem como movimento, enquanto a matéria, temporariamente, se integra no “modo” ou modelo de cada coisa; são a natureza naturante, Natura naturans, e os corpos são a coisa formada, Natura naturata. Mas esta é somente mais uma maneira de falar porque substancia (essência) e modos (acidente), a ordem eterna (essência) e a ordem temporal (acidente), a natureza ativa ou natura naturans (essência) e a natureza passiva ou natura naturata (acidente), Deus (essência) e o mundo (acidente), todas essas classificações são, para Spinoza, coincidentes e dualidades sinônimas. Cada uma divide o universo em essência e acidente.

Corpo e Espírito. Todas as coisas, ainda que em grau diverso, são animadas. Vida ou mente é um aspecto ou fase de tudo que conhecemos, assim como a extensão material ou corpo é um outro aspecto, uma outra fase. São essas as duas fases ou atributos (como os denomina Spinoza) através dos quais percebemos a ação da substancia ou Deus. Nesse sentido, Deus, o processo universal e realidade eterna por trás do fluxo das coisas, pode ser considerado como tendo uma mente e um corpo. Nem a mente nem a matéria são isoladamente Deus; mas os processos mentais e os processos moleculares que constituem a história dupla do mundo eles sim, suas causas e leis, são Deus. A vontade de Deus é antes a soma de todas as causas e de todas as leis e o intelecto de Deus é a soma de todas as mentes. “A mente de Deus”, como Spinoza a concebe, “é toda a mentalidade que está espalhada pelo espaço e pelo tempo, a consciência difusa que anima o mundo”. Portanto, Deus não é transcendente ao universo, nem pode ter personalidade, providencia, livre vontade e propósitos. Então, mesmo o homem bom, apesar de que ame a Deus, não pode esperar que Deus o ame em retorno.

A substância, que é única na visão de Spinoza, tem uma infinidade de atributos. Por “atributos” entenda-se “aquilo que o intelecto pode perceber da substância, como constituinte de sua essência”. Desses atributos somente o pensamento e a extensão são conhecidos do homem. Aplicando esse esquema metafísico ao ser humano, Spinoza argumenta que o corpo do homem é um modo sob a extensão, um modo complexo devido a sua unidade, que vem da manutenção de um modelo constante de relações entre partes cambiantes. O espírito humano é, similarmente, um sistema mantendo o mesmo modelo de relações enquanto mudando as partes. No homem não há senão uma entidade, que é vista interiormente como mente, e exteriormente como matéria. O que existe na realidade é a mistura inexplicável, a unidade de ambas, mente e matéria. A mente e o corpo não agem um sobre o outro, porque não há outro. “O corpo não pode determinar que a mente pense; nem pode a mente determinar que o corpo fique em movimento ou em repouso, ou em qualquer outro estado”, pela simples razão de que “a decisão da mente e o desejo e determinação do corpo… são uma só coisa”. Pois não existem dois processos nem duas entidades. Não há senão um processo, visto interiormente como pensamento e exteriormente como movimento.

E o mundo todo é dessa forma una mente duplo; onde quer que haja um processo “material” externo, ele será apenas um lado ou aspecto do processo real, que a um exame mais amplo, mostraria incluir também um processo interno que é correlativo, em graus diferentes e variados, ao processo mental que vemos dentro de nós. Esse processo “mental” e interior corresponde em cada estágio ao processo “material” e externo; “a ordem e conexão das idéias é a mesma que a ordem e conexão das coisas.” Isto quer dizer que o universo é um todo espacial que é consciente em toda sua extensão, e “Todas as coisas…, como ele diz, “são vivas”- uma posição conhecida como panpsiquismo.

Da mesma forma que a emoção é parte de um todo, – do qual as mudanças nos sistemas circulatório, respiratório e digestivo são a base -, a idéia, juntamente com as modificações “corpóreas”, é parte de um processo orgânico complexo. Até mesmo as sutilezas infinitesimais da reflexão matemática têm repercussão no corpo e, inversamente “não pode acontecer nada ao corpo que não seja percebido pela mente, e consciente ou inconscientemente por ela captado” diz Spinoza. “Substância pensante e substância extensa são uma coisa única, compreendida ora através deste, ora através daquele atributo” ou aspecto. “Certos judeus parecem ter percebido isso, ainda que confusamente, pois disseram que Deus e seu intelecto e as coisas concebidas pelo seu intelecto eram uma só coisa.

Vontade e liberdade. Depois de eliminar a distinção entre corpo e mente, Spinoza nega que haja “faculdades” na mente, ou entidades tais como intelecto ou vontade, muito menos imaginação ou memória. A mente consiste das próprias idéias em seu processo e associação. Intelecto é meramente um termo para uma série de idéias e vontade um termo para uma série de ações ou volições. A vontade é primeiramente pensamento de um curso de ações a ser seguido e, quando não há fatores contrários, a ação em questão inevitavelmente se segue. A ilusão de uma determinada escolha surge da ignorância do indivíduo das causas precedentes do pensamento e da ação. Assim, “vontade e intelecto são uma só e a mesma coisa”, pois uma volição é apenas uma idéia que, pela riqueza de associações (ou talvez pela ausência de idéias rivais), permaneceu tempo suficiente no consciente para passar à ação. Cada idéia transforma-se em ação a menos que seja sustada na transição por uma idéia diferente; a idéia é, ela própria, o primeiro estágio de um processo orgânico unificado do qual a ação externa é o desfecho.

O que é frequentemente chamado vontade, como força compulsiva, deveria ser chamado desejo: é um apetite ou instinto do qual temos consciência. “Os homens pensam que são livres, porque têm consciência de suas volições e desejos, mas ignoram as causas pelas quais são levados a querer ou a desejar.” Cada instinto é um artifício desenvolvido pela natureza para preservar o indivíduo. Por trás dos instintos está o esforço variado e vago de auto-observação (conatus sese preservandi). Spinoza vê isso em todas as atividades humanas e mesmo infra-humanas, como sua motivação básica. “Todas as coisas, quanto delas depende, esforçam-se em persistir em suas próprias naturezas, e o esforço com o qual uma coisa procura persistir em seu próprio ser, nada mais é do que a verdadeira essência daquela coisa.” O prazer e a dor são a satisfação ou a repressão de um instinto; não são as causas de nossos desejos, mas seus resultados; não desejamos as coisas porque elas nos dão prazer; mas elas nos dão prazer porque as desejamos; e nós as desejamos porque temos que desejá-las. Consequentemente não existe vontade livre; as necessidades da sobrevivência determinam o instinto, o instinto determina o desejo e o desejo determina o pensamento (a idéia de vontade) e a ação. “As decisões da mente são apenas desejos que variam conforme as disposições”. “Na mente não existe uma vontade absoluta ou livre; a mente é levada a querer isto ou aquilo por uma causa, que por sua vez, é determinada por outra causa, e esta por outra e assim por diante, até o infinito”.

O bem, o mal e o belo. A vontade de Deus e as leis da natureza sendo uma única e mesma realidade diversamente expressa, segue-se que todos os acontecimentos são a ação mecânica de leis invariáveis. É um mundo de determinismo, não de desígnio, não de vontade.

A filosofia moral de Spinoza como ele a apresenta na “Ética”, define “o bom” em termos largamente subjetivos: o bom para diferentes espécies (Por exemplo, para o homem e para o cavalo) é diferente. O que nossa razão considera como mal, não é um mal em relação à ordem e às leis da natureza universal, mas somente em relação às leis de nossa própria natureza, tomada separadamente. Assim, para Deus a distinção entre bom e mau não teria sentido, uma vez que tal distinção é essencialmente relativa a finalidades das criaturas finitas. Daí nosso “problema do mal”: lutamos para reconciliar os males da vida com a bondade de Deus, esquecendo de que Deus está acima do bem e do mal. Bom e mau são ligados a gostos e finalidades humanas e muitas vezes individuais e não têm validade para um universo no qual os indivíduos são coisas efêmeras. Assim, quando qualquer coisa na natureza parece-nos ridícula, absurda ou má, é porque não temos senão um conhecimento parcial das coisas e ignoramos em geral a ordem e a coerência da natureza como um todo e porque desejamos que tudo se arrume conforme os ditames de nossa própria razão.

E tal como acontece com “bom” e “mau”, o mesmo se dá com “feio” e “belo”; esses termos são também subjetivos e pessoais. Também a estética de Spinoza é totalmente subjetiva, pois segundo ela a beleza não é mais que um efeito sobre o espectador.
Ele não atribui à natureza nem beleza nem deformidade, nem ordem nem confusão. Somente com relação à nossa imaginação podem as coisas ser chamadas de belas ou feias, bem ordenadas ou confusas.

Teoria Política. Os filósofos modernos formularam hipóteses sobre a vida do homem anteriormente à formação das sociedades organizadas, buscando, naqueles primórdios, os fundamentos da ordem política e social. Também Spinoza pretendeu lançar-se sobre esse problema, porém veio a falecer antes de completar seu trabalho. Da sua teoria política ficou apenas o esquema de seu pensamento.

Spinoza formula sua hipótese partindo do homem primitivo que age sem preocupações com o certo e o errado, sem leis ou organização social, consultando apenas sua própria vantagem e decidindo o que é bom ou ruim conforme a sua força. A lei e a regra da natureza sob a qual todos os homens nascem, e na maior parte vivem, não proíbe nada a não ser o que ninguém deseja e não se opõe à contenda, ao ódio, à ira, à traição ou a qualquer outra coisa que os apetites sugiram.
Spinoza exemplifica o egoísmo do estado natural com a conduta dos Estados no seu tempo: “não há altruísmo entre as nações”, diz ele. Porém, devido à necessidade de ajuda mútua, “porque na solidão ninguém é forte bastante para se defender e obter todas as coisas necessárias à vida”, os homens tendem à organização social. Os homens não estão, por tanto, preparados por natureza, para a ordem social, mas o perigo pede a vida em comunidade. Uma parte do poder natural, ou soberania, do indivíduo é passada para a comunidade organizada. Como consequência, a lei do poder individual cede o lugar ao poder legal e moral do todo.

O Estado perfeito limitaria os poderes de seus cidadãos apenas na medida necessária à sua finalidade que não é “dominar os homens, nem coibi-los pelo medo”, mas, ao contrário, libertar de tal modo o homem do medo, que ele possa “viver e agir com total segurança sem prejuízo para si nem para seus semelhantes”. Estabelecidas essas premissas, a forma de governo pode ser escolhida, democrática, aristocrática ou monárquica, porque qualquer uma dessas formas políticas pode governar “de maneira que todos os homens… prefiram o direito publico à vantagem particular”. Considera a Monarquia eficiente, porém opressiva e militarista, e sua preferência parece tender para a democracia, como melhor forma de governo pois nela “cada um se submete ao controle da autoridade sobre seus atos, mas não sobre seus julgamentos e raciocínio; isto é, vendo que todos não podem pensar igual, a voz da maioria tem força de lei”. A força de sustentação da democracia seria o serviço militar geral, conservando os cidadãos suas armas durante a paz; e a sua base fiscal seria o imposto único.

Porém lamenta o defeito da democracia, de permitir o poder aos medíocres, e favorecer com os melhores cargos os maiores bajuladores. “O caráter inconstante da multidão quase leva ao desespero aqueles que dele têm experiência, pois é governada unicamente pelas emoções e não pela razão.” Assim, o governo democrático torna-se um desfile de demagogos de vida curta e homens de valor relutarn em ver seus nomes em listas para serem julgados e catalogados por pessoas inferiores. Mais cedo ou mais tarde os homens mais competentes rebelam-se contra um tal sistema, ainda que estejam em minoria. “Por isso, acho eu, é que as democracias passam para aristocracias e estas afinal para monarquias”; o povo, enfim, prefere a tirania ao caos.

A igualdade de poder é uma condição instável, os homens são desiguais por natureza, e “aquele que pretende a igualdade entre desiguais pretende uma coisa absurda”. A democracia tem ainda de resolver o problema de atrair os melhores esforços dos homens, ao mesmo tempo em que dá a todos o direito de escolha daqueles por quem desejam ser governados.

Religião. No “Tratado teológico-político” e no “Breve Tratado acerca de Deus, o homem e sua felicidade suprema” Spinoza expõe suas idéias sobre a religião. Seu modo de considerar a religião e seu papel no Estado é claramente coincidente com o daquele grupo de amigos de cujas convicções religiosas e políticas, bem definidas, ele compartilha como “colegiante”. A posição que tinham em comum, de tolerância frente à rivalidade das seitas, o amor e obediência a Deus como somente o que importava, constitui também o núcleo do pensamento de Spinoza a respeito da religião. Cristo é considerado por Spinoza como a sabedoria divina que rege o mundo. Mostrando a influência do pensamento de Descartes, os colegiantes pretendem que a fé religiosa “é um conhecimento claro e distinto da verdade na mente de cada homem, pelo qual adquire uma convicção tal do ser e das qualidades das coisas que lhe resulta impossível duvidar delas”.

Spinoza não aceita-a divindade de Cristo, mas dá-lhe o primeiro lugar entre os homens. “A eterna sabedoria de Deus… mostrou-se em todas as coisas, mas principalmente na mente do homem, e principalmente em Jesus Cristo.” “Cristo. foi enviado para ensinar não só aos judeus mas a toda a raça humana”, daí “Ele acomodou-se à compreensão do povo… e ensinava mais frequentemente por meio de parábolas.” Considera que a ética de Jesus é quase sinônimo de sabedoria, reverenciando. E nos elevamos ao “amor intelectual de Deus”.

Foi esperança de Spinoza que a religião judaica e a cristã, – que na verdade seriam uma só -, quando fossem afastados o ódio e as incompreensões e quando a análise filosófica encontrasse o âmago e a essência ocultos dessas crenças rivais, haveriam de unir-se. Mas, em seu tempo assim não era, e por isso diz: “Admiro-me com frequência de que pessoas que se ufanam de professar a religião cristã, ou seja, a religião do amor, da alegria, da paz, da temperança e da caridade para com todos os homens, briguem tão rancorosamente e manifestem um ódio tão amargo uns para com os outros. Esquecem que isso, mais do que as virtudes que professam, oferece um critério decisivo para o julgamento de sua fé.”

O primeiro passo para essa união, na opinião de Spinoza, seria a concordância em relação a Jesus. Uma figura tão nobre, livre do cerceamento de dogmas, que levam apenas a divisões e disputas, atrairia todos os homens, e talvez em seu nome, um mundo dilacerado por lutas suicidas de palavras e armas, pudesse afinal encontrar uma unidade de fé e uma possibilidade de fraternidade.

O pensamento de Spinoza no “Tratado teológico-político” enfoca três aspectos da religião: a Bíblia, sua própria defesa contra a acusação de ser ateu, e a separação entre Igreja e Estado. Com respeito à Bíblia, Spinoza ataca o dogma da revelação que interpreta a Bíblia como uma mensagem de Deus para os homens. Sua polêmica com o ¡judaísmo era de grande atualidade dado o valor que o calvinismo atribuía ao Antigo Testamento. Aplicando pela primeira vez na história a crítica histórica às Escrituras, busca demonstrar a origens dos livros bíblicos e funda a ciência bíblica. Opõe-se à interpretação bíblica racionalista de Maimónides. É principio fundamental de Spinoza que a Bíblia só deve ser interpretada no contexto da própria Bíblia, pelas suas possíveis contradições, reafirmações, etc. e de modo algum pela verdade racional da filosofia. Neste particular, as colocações de Spinoza coincidiriam de certo modo com o pensamento ortodoxo, e contrariando o liberalismo. Mas esta interpretação pode mostrar apenas o sentido próprio da Bíblia, impedindo que se a submeta à prova da razão.

Spinoza não podia aceitar que o taxassem de ateu porque acreditava em Deus, apenas era um Deus não personificado, não humanizado, e sintético com a natureza. Spinoza quer demonstrar que sua fé coincide com todas as religiões no principio do amor e da obediência a Deus. Chegou a pensar que, com a tolerância dos colegiantes e a neutralidade dos regentes, haveria a possibilidade de uma religião comum que poderia unir a todos os homens.

Busca, finalmente, na sua obra, defender a liberdade de pensamento contra os pregadores fanáticos. Talvez por influência sua Johan de Witt lutava pelo direito do Estado, tentando tirar totalmente das autoridades eclesiásticas sua jurisdição nos assuntos temporais. Em 1656 Johan de Witt havia promulgado um decreto proibindo que se confundisse teologia e filosofia.

A filosofia da educação de Spinoza é determinista e estóica, compreendendo que Deus não é uma personalidade caprichosa absorvida nos assuntos particulares dos homens mas sim a ordem invariável que sustenta o universo.

Precisamente porque as ações dos homens são determinadas pelas suas lembranças, a sociedade tem de formar os cidadãos manipulando suas esperanças e receios, para alcançar uma certa dose de ordem social e cooperação. Quer nossas ações sejam livres ou não, nossas motivações ainda são a esperança e o medo. Aquele que considera todas as coisas como determinadas não se pode queixar, ainda que possa resistir; pois “percebe as coisas sob uma certa luz de eternidade” e compreende que suas desventuras não são acasos no esquema total; que elas têm alguma justificativa na eterna sequência e estrutura do mundo. Com esse espírito, ele se ergue dos prazeres caprichosos da paixão para a elevada serenidade da contemplação, que vê todas as coisas como partes da ordem e do desenvolvimento eternos; aprende a sorrir diante do inevitável e “quer receba o que lhe é devido agora ou dentro de mil anos, permanece contente”.

O determinismo conduz a uma vida moral melhor: ensina-nos a não desprezar ou ridicularizar ninguém, a não ficar zangado com ninguém; os homens “não são culpados”; e ainda que punamos os canalhas, será sem ódio; nós os perdoamos porque não sabem o que fazem. Acima de tudo, o determinismo fortalece-nos para acolher as duas faces da fortuna com igual espírito; lembramo-nos de que todas as coisas sucedem conforme as leis eternas de Deus.

Principais trabalhos:

Tractatus de Deo et Homine Ejusque Felicitate (escrito por volta de 1662, publicação póstuma em 1852);
Tractatus de Intellectus Emendatione (escrito em 1662, primeira edição em 1677);
Renati des Cartes Principiorum Philosophiae Pars I et II, More Geometrico Demonstratae, per Benedictum de Spinoza (1663);
Ethica in Ordine Geometrico Demonstrata (escrito em 1662-75, primeira edição em 1677);
Tractatus Theologico-Politicus (escrito em 1665-70, primeira edição em 1670);
Tractatus Politicus (incompleto, escrito a partir de 1665, primeira edição em 1677);

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 26-06-1998.

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Spinoza. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, Brasília, 1998.