Hoje: 03-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Padre Lucas assumiu a paróquia devido à aposentadoria do pároco Frei Francisco Damasceno, já bastante idoso. A paróquia pertencia à diocese de Formosa do Acari. A região, pela formosura dos vales, montanhas e rios, se tornara procurada por turistas das mais variadas procedências.
Havia muitos resorts à beira da chapada e várias pousadas sempre muito procuradas para uma semana de descanso e recreio.
Mas o Padre Lucas se decepcionou logo no primeiro domingo de sua gestão, porque a igreja ficou vazia.
Ele perguntou ao sacristão o que estava acontecendo.
– Não sei! Talvez os turistas gostem mais de ver Padres velhinhos. Talvez se sintam mais seguros, principalmente para a confissão, respondeu o sacristão.
– O Frei Francisco atendia confissões com frequência?
– Sim! Gostavam de conversar com ele e, ele de ouvir os jovens. Vou te mostrar as placas que ele fez.
Tomou a frente e o Padre Lucas o acompanhou. Enquanto caminhavam, indagou do sacristão:
– Como nasceu esta cidade?
– O local surgiu quando um aventureiro aqui se deteve, impressionado com a beleza do lugar. Demarcou como suas – com murinho de pedras e cerca de pau – terras que pertenciam a Coroa.
Um cientista que passou por aqui assinalou o local como “Cercado da Boa Vista”. Nome que permaneceu nos mapas por muito tempo.
Ao redor fixaram-se alguns índios plantadores de mandioca. Um tropeiro subia a serra semanalmente trazendo rapadura, tecidos, fumo, e algumas encomendas, e retornando ao vale com uma carga de farinha de mandioca.
Vieram depois os imigrantes e entre eles, dois irmãos italianos procedentes de Módena, que já havendo consumidores suficientes, abriram uma padaria na Rua da Pulga. O estabelecimento atraiu movimento e mais gente foi chegando até que o povoado transformou-se em uma pequena vila. Em homenagem aos dois padeiros italianos barbudos, cabeludos, mas carecas, o povo começou a chamar a via de “Rua dos Carecas”.
No cruzamento da antiga Rua da Pulga com a travessa dos Piolhos, formou-se uma praça onde foi levantada uma capela de taipa coberta de palha. Frente a capela instalaram um pelourinho onde malfeitores eram amarrados e chicoteados, e depois conduzidos a uma cadeia atrás do pequeno templo. Alguns anos depois já havia um prédio onde se instalou um representante do vice rei, para exercer a fiscalização de impostos e o registros do comercio.
Muita coisa mudou com o passar dos anos, mas o nome Rua dos Carecas resistiu ao tempo.
O Padre e o sacristão passaram pelo pátio e caminharam até o barracão próximo a casa paroquial. O sacristão abriu dois cadeados e entraram.
O Padre Lucas surpreendeu-se quanto a boa ordem em que as coisas ali estavam dispostas. A um canto, o material usado nas procissões litúrgicas, ao lado vestimentas próprias para cerimônias de cada período litúrgico, nas cores: branca; verde; roxa e vermelha. Um armário continha cálices, toalhas e cibórios.
Encostados a um cavalete, haviam materiais diversos, inclusive muitas placas de avisos. O sacristão puxou uma placa que dizia “confissão todos os dias para os jovens das 17:00 as 18:00H e para os adultos das 19:00 as 20:00H”.
Encerrou a exibição mostrando uma quantidade de imagens de gessos coloridos, de santos que poderiam ser levados sobre andores na procissão nos dias a eles consagrados.
O que interessou ao Padre Lucas foi a placa chamando o povo à confissão. Examinou-a meditativo e perguntou ao sacristão:
– A procura era grande?
– Ah sim! Quando os jovens saíam da escola naquele horário, muitos no caminho de casa aproveitavam para visitar a igreja.
– E os adultos?
– Eram na maioria, turistas. Certamente pensavam do Frei Francisco “eu não o conheço e ele também não me conhece” e por isso ficavam menos constrangidos em contar seus pecados.
O Padre Lucas disse ao sacristão:
– Limpe essa placa e coloque-a no lugar em que estava antes. Agradeceu e voltou para casa paroquial.
No dia de maior concentração de turistas, Padre Lucas decidiu sair para ver em quê se ocupavam. Observou que os visitantes gostavam muito de apreciar as belezas naturais da cidade e escutar na Rua dos Carecas, uma boa e animada música, regada a muita bebida e risos. Ao Padre Lucas pareceu que poucos se interessariam em visitar a igreja.
No dia seguinte – atraídos pela placa – pequenos grupos acessaram a porta do templo, sem, no entanto, se aventurarem a entrar para conhecer o seu interior.
Perguntou ao velho sacristão:
– Porque os turistas têm medo de entrar no templo?
– Não sei dizer! Mas Frei Francisco gostava de manter sempre as luzes da igreja acesas.
Um pouco incrédulo, o Padre Lucas, achando que as luzes de filamento de tungstênio não fariam muita diferença naquelas manhãs tão ensolaradas, pediu ao sacristão que providenciasse a iluminação diariamente.
De fato começaram a aparecer turistas para orar e algumas vezes as mulheres pediam para se confessar.
Certa noite ajoelhou-se em seu confessionário um homem de meia idade e disse:
– Padre, quero me confessar.
Sem deixar transparecer a sua surpresa, Padre Lucas perguntou-lhe há quanto tempo não se confessava.
– Esse meu pecado, que quero lhe confessar, me perturba a consciência há alguns anos, mas na cidade não tenho tempo para refletir muito ou até mesmo frequentar uma igreja.
Padre Lucas, decidindo-se a acertar pelo óbvio, perguntou:
– Então o senhor é turista aqui no Cercado da Boa Vista?
– Sim! Vim aqui para descansar. – E continuou:
– Eu durante minha juventude procurei ser um homem casto na esperança que o Senhor me apontasse uma mulher que me fizesse feliz. Quando me casei, esqueci que esse pedido poderia estar sendo atendido.
A minha noiva podia perfeitamente ter sido a resposta das minhas orações. Porém logo comecei a encontrar nela defeitos que me constrangiam e me obrigavam a dizer-lhe meu desagrado. Acabei criando preconceito contra minha própria mulher, martirizando-a com minhas censuras e meus reparos. Apesar de muito dedicada aos filhos, frustrava-me ao ver que ela não satisfazia ao meu ideal de esposa. Chorou várias vezes dizendo que eu não valorizava o seu trabalho de dona de casa.
O Padre Lucas coçou o queixo e a princípio não soube o que responder.
– Quantos filhos o senhor tem? Perguntou o padre.
– Sete! Respondeu o penitente.
– Bem! O que o senhor queria então que ela fizesse, além de cuidar da casa e de sete crianças?
– Nós tínhamos duas babás para ajudá-la, porém eu queria que ela tivesse uma atividade que fosse pouco exigente, mas que a mantivesse no círculo de profissionais reconhecidos. Não a queria presa em casa todo o tempo.
– E qual seria o seu pecado que veio até a mim confessar?
– Acho que não me dei conta de que fosse o milagre que eu esperava, e que só tarde demais reconheci; eu deveria respeitá-la e não menosprezá-la como fiz.
– Vou perdoar-lhe por isso. Mas me parece que você teve uma boa intenção, no sentido do engrandecimento dela, apesar de ter esquecido do milagre de Deus, desprezando e amordaçando a dádiva dele recebida.
Certamente você esperava ganhar uma mulher bonita, sensual, elegante e que o amasse muito, mas isso não o levaria a nada melhor do que já era, poderia até piorar a sua vida. Então vejo que isso pode ser um engano seu e que Deus lhe deu uma esposa para que a trabalhasse e a fizesse conforme os seus sonhos, caso contrário, Deus estaria atendendo a um pedido quase obsceno, de lhe dar a troco de nada uma esposa conforme o seu desejo. Então a mulher que você recebeu não foi de acordo com o seu pedido lascivo. Deus queria que ambos construíssem uma família perfeita aos Seus olhos. Você não percebeu esse desígnio e o seu crescente preconceito lhe fez afastar-se dela.
O Padre fez sobre ele o sinal da cruz e rezou a absolvição. Enquanto o penitente rezava o ato de contrição, o pensamento do Padre Lucas divagou, desenhando o tão sonhado centro social que era seu desejo erguer atrás da igreja. Ao final o homem ergueu-se e se retirou não muito satisfeito. Pareceu-lhe que o Padre não havia entendido a gravidade do seu pecado. Será que a pouca atenção recebida não iria anular o perdão? – Indagou-se o penitente.
O pároco mantinha os horários das confissões que se tornaram novamente muito concorridas e muito sinceras. Foi o caso de uma mulher singular que se ajoelhou em seu confessionário certa tarde.
– Estou apaixonada pelo meu vizinho, confessou ela. Sou casada e tenho filhos que são ainda crianças.
– Infelizmente ouço isso com frequência. Disse o Padre.
– Sei que é um pecado imperdoável, disse ela. – Mas ele é tão bonito e carinhoso!…
– Eu poderia dar-lhe o perdão de Deus, mas vou retê-lo. Não tenho pressa em tirá-la dos braços do demônio. Prefiro dar-lhe tempo para entender o que realmente lhe acontece. Percebo pelo nosso diálogo que é uma mulher de fina educação. No entanto, está sob o domínio dos seus instintos e somente um poder existe que pode libertá-la: é o pensamento racional com um fundamento sólido bem pensado, calçado pela virtude da fortaleza.
Faça meditação para encontrar esse pensamento racional poderoso, e reorganize uma vida a partir dele. Mas um pensamento racional pode demorar a se formar em seu cérebro. Por isso lhe darei trinta dias para refletir se quer ser uma mulher racional e superior ou se prefere ser apenas um animal pecaminoso como no presente.
O padre perguntou mais: – Conhece o ato de contrição? Reze-o. Concluído o ritual, ela se foi irritada e intrigada.
– Café, chá ou água?
Meio encolhido na poltrona de forro verde, Padre Lucas escolheu:
– Um cafezinho, por favor. O Padre estava bastante ansioso por não saber por que motivo o Bispo o havia convocado ao palácio diocesano.
– É o que todos preferem, disse a pretinha. Sua figura esbelta, seus cabelos arranjados como convinha a uma servente, comoveram e distraíram um pouco o sacerdote.
– Você é simpatia pura, disse o Padre.
Ela sorriu com seus dentes brancos e sadios:
– Obrigada, disse enquanto lhe passava a xícara.
Mais uns minutos e sua excelência o Bispo entrou na sala. Cumprimentou o Padre e pediu à copeira que lhe trouxesse um pouco de água.
– Preciso da sua colaboração aqui no palácio. Meu secretario está seguindo para a Roma, disse o Bispo.
O Padre Lucas empalideceu. Viu que todos os seus planos carinhosamente desenhados para sua paróquia do Cercado da Boa Vista se perderiam.
Os olhos molhados de lágrimas do padre, comoveram o Bispo. Porém ele recordou-se de que sua longa carreira eclesiástica fora pautada de renúncias.
– Padre, você tem projetos ousados para sua igreja, e que serviriam ao seu orgulho e prazer de realização. É assim que o demônio age. Use seu pensamento racionalmente, livre de apelos emocionais, e faça o que lhe for pedido por seu Bispo, a quem deve obediência.
O Padre lembrou-se daquilo que havia dito à sua penitente alguns dias atrás, dando-lhe ainda uma tolerância de 30 dias para mudar seus sentimentos em relação ao jovem que a seduzia. No caso dele, o que o seduzia era o centro social que desejava construir.
Com humildade o Padre perguntou: – Que prazo me dá sua excelência para deixar minha paróquia?
– Trinta dias, respondeu o Bispo.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 01-10-2021.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – A rua dos carecas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2021.