Hoje: 23-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
A universidade ocupava uma área privilegiada da cidade, área que modernamente se reserva a palácios administrativos. Explica-se essa posição pelo fato de que aquele era o centro histórico da cidade, que tinha mais de dois séculos de existência. Os edifícios modernos tiveram que contorná-la, resultando que ficava isolada, cercada de grandes prédios de escritório construídos em épocas mais recentes.
Testemunhavam sua longa história, as grandes salas de aula com tetos elevados, os anfiteatros com paredes cobertas de lambris, mesa para quatro alunos em lugar de modernas carteiras que se viam em escola de estabelecimentos mais atuais. Por coincidência os seus professores reforçavam a aparência de antiguidade por serem em sua maioria, idosos e de bigodes e barbas brancas, como se fossem cômicos fantasmas do passado. Suas calças folgadas tinham do lado direito uma corrente de ouro, com um grande relógio com tampa, mantidos na algibeira abaixo do cinto. Os alunos haviam ganho o privilégio de se vestirem como quisessem, pondo de lado as velhas togas com seu bordado do lado esquerdo com o nome da universidade; calçavam e cobriam a cabeça com acessórios mais diversos como gorros, chapéus, bonés, ou simplesmente deixavam a cabeleira solta como as mulheres.
Geralmente, a primeira aula do dia era a de Anatomia Comparada, cujo professor entrava na sala, conferia furtivamente o que os alunos e alunas vestiam, enquanto se dirigia para sua mesa. Para ele era um aprendizado diário de como pode trabalhar a criatividade dos adolescentes famintos de notoriedade e destaque entre os amigos. Cada dia era um aprendizado sobre uma variedade de estilos que podiam existir nas salas de aula em contraste com o que era usado no passado. Num lance de olhos, o mestre saberia se havia alguma botina nova, alguma blusa decotada, alguma bermuda espalhafatosa e tudo isso observado enquanto caminhava da porta de entrada até sua mesa. Nunca se manifestava a respeito, apenas tomava um conhecimento sem qualquer finalidade ou gozo próprio. Fazia a chamada à moda antiga dos nomes dos matriculados no curso, e anunciava em voz firme o assunto do dia, como se estivesse vendendo uma mercadoria na feira.
A um canto da sala havia um esqueleto pendurado como enforcado e balançando ao vento, que era usado para apontar a parte do corpo que seria objeto do assunto do dia. O suporte assemelhava-se ao que nos hospitais ficava junto à cabeceira do paciente.
Quando o mestre começou a discutir a matéria, ouviu-se um farfalha de papéis trazidos para anotações, reclamações sobre a inconstância dos computadores, e dificuldades com a internet. Alguns alunos se curvavam junto à parede tentando melhorar o sinal. Já habituado com essas necessidades, o professor permitia um pequeno lapso de tempo, para que esses cuidados indispensáveis fossem resolvidos para então começar a aula.
– Hoje vamos falar da relação corpo-espírito, disse ele.
O tema anunciado surpreendeu seus alunos, que se perguntaram o que a relação “corpo-espírito” teria a ver com Anatomia Comparada.
– Nos anos 80, disse o professor, ficamos a par de uma grande novidade científica de interesse para praticamente todas as ciências humanas.
Enquanto falava, o professor caminhou na direção do seu Manuel, arrastou o suporte até perto da sua mesa, provocando um chacoalhar dos ossos articulados.
– Dividiremos a matéria em três partes. A primeira sobre porque partes do cérebro, se danificadas, prejudicam o curso do pensamento. Embora isso fosse sabido, porque em muitos acidentes quando a pessoa que sofria alguma perda da sua massa encefálica, perdia também parte do conhecimento. A comprovação e a explicação eram surpreendentes e misteriosas. Era por tanto como uma informação antiga mostrada como novidade, porque os cientistas esqueceram de registrá-las.
Na segunda parte, vamos falar de como Aristóteles resolveu esta questão. Uma ligeira inquietação espalhou-se pela sala, porque, novamente, os alunos não viam o que Aristóteles poderia ter com Anatomia Comparada, além de que era geral entre eles a aversão a filósofos. O professor consultou seu grande relógio, puxando da algibeira pela corrente dourada. “Ainda há muito tempo” pensou.
E terceira parte é a discussão do que disse o filósofo Descartes sobre ideias inatas.
O anúncio de mais um filósofo a ser abordado no tema que ainda parecia muito confuso e desagradável a todos, causou um novo frisson de aborrecimento.
– Vamos agora ao que diz Aristóteles sobre os seres vivos, continuou o professor. Ele concluiu que os mais primitivos eram os vegetais, isto significava, na sua linguagem, um tipo de vida que ele chamou vegetativa. Da vida vegetativa, surgiu a vida animal, e da vida animal, surgiu a alma humana.
Apontando para o humilde esqueleto, recomendou:
– Reparem na forma que teve o corpo do Manuel. Vejam como o corpo humano repete a mesma estrutura dos animais: pernas, braços, tronco, pescoço e cabeça.
Há milhões de anos este formato continua o mesmo. Além desse desenho que é respeitada em todos os homens e mulheres respectivamente, os hábitos, e o modo de se comportar, é muito semelhante, quando comparamos o homem ao animal. Pouca gente sabe que do mesmo modo que os homens, os animais pensam, avaliam, decidem e escolhem o que fazer diante de suas consideradas necessidades, tanto no confronto irado, como na amizade pacífica.
Os animais são por tanto, dotados de pensamentos lógicos, e então, qual a diferença entre eles e o homem?
Ninguém respondeu.
– Eles não têm o pensamento racional, respondeu a si mesmo, o enfático professor. Por isso Aristóteles considerava a raça humana a mais perfeita de todas, porque embora os animais pensassem, não eram capazes de uma análise racional como o homem. Então o que temos? Temos que o homem é um animal e segue um comportamento automático igual ao dos animais, porém, há uma força diferente no homem, a racionalidade! Ele supera o pensamento lógico animal e pode corrigi-lo, fazendo o homem deter-se e analisar racionalmente as consequências dos seus desejos.
Finalmente os alunos pareciam demonstrar algum interesse. Alguma coisa os tocara e os deixara em silencio, de olhos fixos no professor.
– O final dos anos 80 mudou por tanto a nossa concepção do homem, quando a ciência revelou que os pensamentos viajam nos neurônios e chegam a uma consciência que é comum ao lógico e ao racional, ao homem e ao animal. Essa materialidade do pensamento parece dar razão a Descartes, porque o pensamento sendo em parte físico devido à participação dos neurônios no processo, significa que, à medida que se forma o sistema nervoso, o pensamento vai aos poucos tornando-se realizável, os neurônios que se formam, estão criando algum hábito que serão inatos. Isto foi descoberta de um outro filósofo, Piaget, que descobriu que somente a partir dos 7 anos de idade a criança é capaz de ter o pensamento racional, ou seja, ela precisa dos neurônios prontos para poder raciocinar.
Não significa isso, que existem ideias inatas como era a teoria de Descartes?
Aqui está o Manuel, disse o mestre aproximando-se do esqueleto. Como todos os animais, ele tem pernas, braços, abdome e um estreitamento acima, no qual está a sua cabeça contendo o cérebro, ou seja, contendo seus neurônios. Essa cabeça pensa por si mesma, mas ela se mostra obediente a uma outra força que pode detê-la, redirecioná-la, tal como eu disse antes. A lição que eu quero que vocês tirem do que eu disse é que, nós não somos senão animais com um comportamento automático que segue a lógica animal, e guia toda a nossa vida e nos ilude como se estivéssemos produzindo tais pensamentos quando ele é na verdade um pensamento inconsciente com automatismos que, se não ficarmos atentos, podem nos levar a horríveis desastres. Temos que aprender a dar vez ao pensamento racional antes de executar os pensamentos lógicos dos animais.
Hoje terminamos por aqui, disse o professor segurando novamente o suporte do esqueleto e levando-o com seu farfalha de partes emendadas, até o local em que estava antes.
– Muito obrigado, vocês estão dispensados por hoje.
Por alguns instantes, Manuel balançou os braços e a cabeça pendentes como se ele também se despedisse da turma, e o chacoalhar aos poucos diminuiu e parou. O professor juntou seus materiais didáticos e se retirou da sala.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 04-11-2021.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – “Seu” Manuel e a origem do homem. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2021.