Hoje: 21-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Aroeira nunca vira uma roda gigante; aquela era a oportunidade para ele conhecer esse brinquedo que atrai crianças e adultos e que somente os parques itinerantes mais bem sucedidos oferecem ao povo, não sendo vistos nos lugares mais pobres do interior. Nunca fora na vila em que ele morava um parque que tivesse uma, e com tal altura, como a que anunciavam estar se instalando na cidade. Haveria também o trem fantasma, os carros elétricos, o tira-prosa, a gangorra voadora, e muitas diversões como barraca de Tiro ao alvo, sortes com uma cigana etc.
Mas, na estreia, uma má notícia fez tremer de horror e entristecer o povo aglomerado na grande praça plainada, pavimentada de cascalho e abundantemente iluminada com postes de iluminação. Ao cair da noite, um dos bancos da Roda, quando passava no topo do brinquedo, soltou- se de um dos eixos que o prendiam – verificou-se que devido a uma ferrugem explicada por estar o aparelho por três anos a ser montado e desmontado sempre nas praias salgadas do litoral, conforme vinha percorrendo seu trajeto do sul para o norte do país. Milagrosamente o casal que ocupava o assento arrebentado e ficara pendurado na correia de segurança de cabeça para baixo no mais alto do brinquedo, pôde ser salvo com a manobra cuidadosamente executada pelo mecânico, de baixar o rapaz e a moça ao alcance dos bombeiros socorristas. O povo reagiu a essa proeza com palmas e gritos de alegria. Mignoni respirou aliviado e Aroeira deu um berro de contentamento pelo salvamento dos dois, mostrado na televisão. Não imaginavam que estariam cuidando do caso na delegacia poucos dias depois.
O delegado desejava que ambos fizessem parte da equipe técnica posta à sua disposição, por considerá-los extremamente hábeis em resolver os casos que lhes confiava, pagando-lhes salários desviados da verba de limpeza da delegacia. E logo foram incumbidos de esclarecerem seu primeiro mistério.
Um dos mais prestigiados políticos da cidade fizera ao delegado queixa do desaparecimento de sua filha, no dia do acidente com a roda gigante. Mignoni quis começar por ouvir Holger, o jovem que estava com ela aquela tarde, no brinquedo danificado e foi com Aroeira localizá-lo. O rapaz estava sedado, sem sentidos, em um hospital, ainda se recuperando do violento choque psicológico sofrido por estar dependurado de cabeça para baixo, a grande altura, por mais de meia hora, até ser desvencilhado do cinto de segurança pelos bombeiros. Mignoni insistiu em vê-lo e a enfermeira apenas lhes encareceu que fossem breves. O paciente era um jovem branco, alto pelas longas pernas que tinha, estava absolutamente imóvel e respirava não muito regularmente. Estava no nível de inconsciência um, e ainda não respondia ao chamado pelo seu nome com qualquer sinal de atenção. Mignoni agradeceu com elegância à enfermeira, e ela pareceu ter prazer com sua visita, convidando ambos a que retornassem passados alguns dias.
Se não pudesse ouvi-lo, Mignoni assumiria o que tinham como plano B, uma tarefa igualmente difícil que seria ouvir o Sr. Hansen, o rico industrial pai da desaparecida Linda Maria Hansen. Não havia sido feito, até então, qualquer pedido de resgate; em parte alguma se soube de qualquer indício que pudesse indicar o paradeiro da jovem.
Por insistência de Aroeira, os dois se dirigiram ao parque, deixando para depois a visita ao Dr. Hansen. Examinaram o assento que quebrara e puderam comprovar quanto desolado estava o proprietário dos brinquedos devido ao que acontecera. Mas o dono do Parque, que viu o resgate, deu-lhes uma informação importante. Segundo ele, a moça, depois de ser retirada da posição em que estava pendurada, saiu andando em zigue zague no meio do povo. Ele não a viu depois. Não parecia estar ferida, mas certamente estava desorientada quando se misturou com o povo. Ninguém a acompanhava, e chegados à casa do industrial o detetive e seu auxiliar foram recebidos por Holger que, completamente recuperado do choque sofrido com o acidente, fora empregado como secretário pelo Sr. Hansen devido ao seu alto conhecimento de informática e por ser namorado da sua filha desaparecida.
No hall havia um antigo relógio de longo pêndulo, com uma frente e laterais esculpidas em madeira castanha onde estava um vidro com uma bela gravação, que tinha uma batida mansa e sonora. O carrilhão industrial comentou que era uma relíquia da família trazida da Dinamarca, quando viera com a mulher e os filhos para o Brasil.
—-Bom dia, Sr. Mignoni, que bom revê-lo. O Sr. Hansen o espera.
—-Foi como pensei: no hospital você fingiu estar sob efeito de um narcótico, mas viu perfeitamente que eu o visitava e se lembrou agora do meu nome anunciado pela enfermeira.
Enquanto frente à porta que o mordomo mantinha aberta, e o detetive dava os primeiros passos sobre o tapete vermelho, Holger pagava pela mentira que havia encenado alguns dias antes, no hospital, pondo-se tão rubro quanto o tapete em que pisavam.
Dr. Hansen, depois de um polido cumprimento ao detetive e seu companheiro, indicou uma cadeira-de-braço a Aroeira na sala de espera e permitiu apenas a Mignoni que entrasse com ele no escritório. Holger também ficou de fora.
O mordomo, sentado em sua cadeira junto à porta do escritório, passou os olhos nos jornais do dia e deteve-se na leitura de um longo artigo sobre o desaparecimento. Um dos jornais trazia lado a lado os retratos da mãe e da filha desaparecida.
—-Por favor, empresta-me esse jornal, pediu Aroeira.
—-Ninguém pode ler os jornais antes do Dr. Hansen, resmungou o mordomo.
– Então você também não devia estar lendo! Trovejou Aroeira; indo até ele, arrancou-lhe das mãos os jornais com violência, e o homem, assustado, deixou a sala pálido de raiva. Seu lugar, na cadeira junto à porta, foi imediatamente ocupado por Holger. Aroeira mudou de assento para melhor observar Holger que inclinava o corpo para ouvir o que era dito dentro do escritório, fazendo ao mesmo tempo anotações em uma pequena caderneta de capa de couro preto. Passaram-se longos minutos de silencio ouvindo-se apenas o manso tique-taque do carrilhão deixando passar vagarosamente sua corrente, e raramente ouvia-se também um pouco da voz abafada do dr. Hansen. Nada se ouvia da voz do detetive que estava conversando com ele no escritório.
Após ainda alguns minutos, Holger subitamente endireitou o corpo, puxou a porta do escritório sem fazer ruido e caminhou com um andar esperto para o outro lado da saleta de tapete vermelho. O milionário e Mignoni apareceram atravessando lentamente o hall como se ainda estivessem a concluir a conferência enquanto caminhavam na direção da grande porta de saída de madeira trabalhada. Aroeira juntou-se a eles para também se despedir. Mas a Sra. Hansen os deteve. —- Esperem. Quero que os dois experimentem o sabor desse excelente bolo de queijo dinamarquês. Me entristece porque era o quitute que Linda apreciava e levava diariamente para a escola como lanche. “Drommekage”, experimentem!…
Dr. Hansen contribuiu com tacinhas de licor para os dois detetives saborearem o bolo.
Os dois detetives prometeram à Sra. passar-lhe qualquer novidade que houvesse no caso e partiram.
No escritório o porteiro não havia recebido nenhuma correspondência em resposta ao material que haviam espalhado descrevendo a jovem desaparecida e falando da recompensa oferecida em troca de informações. Mas o que a Sra. Hansen havia dito do hábito da filha de comer sempre o lanche, levantara uma leve esperança de progresso na investigação. Mas podiam imaginar um interesse de Holger na pesquisa do Sr. Hansen com características de espionagem, e Linda Maria sequestrada para o mesmo fim, por um sócio oculto dele, no episódio do acidente na praça. Trocariam a liberdade da moça pelo segredo da invenção de seu pai.
Mignoni e Aroeira foram à estação, alguns dias depois de serem informados na delegacia de que uma mulher vendia lanche aos viajantes em um tabuleiro desmontável, na parada dos trens. Talvez a jovem houvesse matado a fome comprando no tabuleiro montado o bolo de que gostava. A vendedora mostrou-se seduzida pelos modos educados de Mignoni ao solicitar informações. Era sua especialidade levar uma mulher a revelar-lhe um segredo e a identificar as que mentiam.
—-Eu estava ocupada em preparar meu ponto de venda, ainda alguns minutos antes da chegada do expresso, quando duas mocinhas se aproximaram, e a de menor estatura disse para a outra: “É aqui!” … e me perguntou se eu tinha o bolo “Drommekage”. A mais alta, e muito bonita, agradeceu e se despediram. Vendi um saco de quinhentas gramas para ela e ela se foi.
—-Para que lado?
Na direção dos vagões de carga da composição. Estranhei, mas estava muito ocupada com o atendimento dos fregueses para poder dar mais atenção a ela.
—-Os vagões de carga são os que ficam atrelados mais próximos da locomotiva, disse Aroeira. Os de passageiros ficam no final da composição onde sofrem menos solavancos. Acredito que ela viajou, mas não queria ser vista na boca da bilheteria onde havia guardas de segurança. Quis viajar escondida em um vagão de carga.
O drama pelo qual passou Linda Maria Hansen desenrolou-se em dois atos, e a solução se deu com um punhado de episódios que, aparentemente articulados pelo acaso, depois de conhecidos se avizinhavam de milagres. A primeira parte começa com o convite de seu noivo para irem ao parque que se inaugurava aquela tarde na cidade, e a segunda com tudo que se seguiu a um acidente de que foram vítimas nesse passeio.
Somente algum tempo depois, quando a própria Linda Maria, com sua memória totalmente recuperada contou o que lhe acontecera, ficou sabido o que se passara. Lembrou-se então de estar em um trem que fazia muitos chiados enervantes, e dava sacudidelas que a machucavam, e que ia aos poucos parando em uma estação. Era manhã bem cedo e ainda escuro. Alguém acendeu um isqueiro. Abrindo bem os olhos procurou ver o que a rodeava. Era certamente um anjo, tão bonito era o jovem vestindo uma blusa branca, de pé na penumbra à sua frente.
—-Você deve desembarcar…. Os cargueiros da soja são carregados nesta estação, os guindastes vão começar seu trabalho em alguns minutos. Venha comigo, Você nada disse…vou ajudá-la…, mas precisamos nos apressar! – Ela não compreendia e ele não podia esperar que compreendesse. Puchou-a pelo braço, apanhou seu casaco de frio e enrolou-o no seu corpo, e verificando que os homens que chegavam estavam aglomerados à porta da estação, conversando e preenchendo formulários de trabalho, abraçou a moça e levou-a para o lado oposto ao da locomotiva, passou por um grupo de homens e algumas mulheres que falavam alto e apressadamente, ainda havia poucos operários, pouco apressados ainda cumprimentando-se, boné com as cores da empresa, um raminho de soja como identificador do grupo, e que iam trabalhar no cargueiro. O dia clareava rapidamente, mas o jovem estava tranquilo: não seria mais apanhado como viajante clandestino, levando uma jovem que não sabia o próprio nome.
Pediu ao agente da estação para usar um telefone. Enquanto discava tinha a atenção posta em Linda Maria que sentada à
mesa do barzinho, havia pago um café para si e para o companheiro. Sem perceber que o agente continuara perto, desabafou para o pai como estava surpreso e feliz com a sua viajante clandestina, Pediu ao pai que viesse apanhá-lo na estação.
Com ainda melhor disposição, falou com a mãe:
—-Conheci uma menina que está sem memória devido a um acidente. Mas conversa normalmente.
—-Quero ver como isso é possível! Duvidou a mãe.
A casa do Dr. Josel Hermann, agrônomo vindo da Alsacea com a esposa Dona Ruth, pais de Karl, era um primor de moradia. Cômodos espaçosos e amplos, lembrando palácios, serviçais de uniforme azul, silenciosos, ocupados com seus deveres.
Linda Maria foi rapidamente perdendo o medo e a timidez, buscando sempre estar perto de Karl e da Sra. Hermann, a mãe dele.
Karl é espionado pelo chefe da estação que anota seu telefonema e fica perturbado porque um sequestro estava acontecendo debaixo de suas barbas. Ligou para o capitão do batalhão local da polícia militar. Este se fez acompanhar de dois soldados e passa pela estação onde confirma com o Agente a denúncia e ainda com bastante cautela vai conversar com o Dr. Hansen. Quer a todo custo evitar erros neste caso que envolve pessoas muito importantes, e uma denúncia mal preparada poderia lhe custar sua chefia.
Mas, ele achou que estava perfeitamente no campo de suas atribuições reter para esclarecimentos o rapaz e a garota que não aceitava de modo algum ser separada dele. Ambos foram proibidos de sair de casa. A sra. Hansen assumiu a responsabilidade colocando-se como fiel zeladora do acordo que assim evitava que passassem a noite na prisão. O endereço do emitente era precisamente em um ponto do traçado da estrada de ferro e tinha grande possibilidade de referir-se a Linda.
A notícia de que uma garota desmemoriada que vivia com um rapaz chegou na forma de um e-mail, recebido pela secretária do delegado Cavalcanti na delegacia da Capital.
O delegado e o detetive foram à casa do Dr. Hansen, e foi combinado entre eles que se encontrariam para reconhecer a jovem na estação, e de lá iriam para a delegacia para assinar os papeis e executarem os procedimentos da prisão. Holgar viera também acompanhado de Aroeira.
Às 11 horas surgiram na curva do Parque as duas máquinas que puxavam a comprida composição de carga e passageiros. Estes últimos foram deixados estacionar coincidentes com a plataforma da estação, após a longa composição de carros de carga deslisar rente à plataforma, a pouca velocidade. Havia muitas pessoas aguardando parentes e amigos que chegavam do norte e invadiram a plataforma carregando suas bagagens e abraçando desajeitadamente uns aos outros -, ao mesmo tempo os que recebiam queriam aliviar os viajantes do peso de suas bagagens. Dr. Hansen e sua mulher encontraram o grupo que aguardavam e deram pouca atenção a Karl, não mais que um aceno ao jovem algemado. Mas, rever sua filha foi uma explosão emocional para os pais de Linda Maria. “Oh Senhora do Perpétuo Socorro, mãe de Jesus! Como aguardei esse momento de felicidade, com meu coração cheio de gratidão e amor a vós. Com minha filha retornando à casa vencendo muitos perigos desfeitos pela espada do vosso anjo que a protegeu conforme vos supliquei”. Holgar, não reconhecido pela antes quase noiva, manteve-se afastado.
Na sala de reuniões da delegacia o caso ficou completamente resolvido. Dr. Hansen tranquilizou o detetive: Os papeis referentes ao seu invento estavam seguros na gaveta do seu banco; ali mesmo passou discretamente um envelope com os honorários que haviam combinado. Linda Maria, ao almoço que se seguiu em casa do Dr. Hansen passou a dar mostras de não ter nenhuma amnésia importante, mas pediu que a deixassem ficar com a família de Karl que retornaria aquela tarde para a capital da Soja. Com muitos abraços e declarações de amor às duas senhora
Aroeira nunca vira uma roda gigante; aquela era a oportunidade para ele conhecer esse brinquedo que atrai crianças e adultos e que somente os parques itinerantes mais bem sucedidos oferecem ao povo, não sendo vistos nos lugares mais pobres do interior. Nunca fora na vila em que ele morava um parque que tivesse uma, e com tal altura, como a que anunciavam estar se instalando na cidade. Haveria também o trem fantasma, os carros elétricos, o tira-prosa, a gangorra voadora, e muitas diversões como barraca de Tiro ao alvo, sortes com uma cigana etc.
Mas, na estreia, uma má notícia fez tremer de horror e entristecer o povo aglomerado na grande praça plainada, pavimentada de cascalho e abundantemente iluminada com postes de iluminação. Ao cair da noite, um dos bancos da Roda, quando passava no topo do brinquedo, soltou- se de um dos eixos que o prendiam – verificou-se que devido a uma ferrugem explicada por estar o aparelho por três anos a ser montado e desmontado sempre nas praias salgadas do litoral, conforme vinha percorrendo seu trajeto do sul para o norte do país. Milagrosamente o casal que ocupava o assento arrebentado e ficara pendurado na correia de segurança de cabeça para baixo no mais alto do brinquedo, pôde ser salvo com a manobra cuidadosamente executada pelo mecânico, de baixar o rapaz e a moça ao alcance dos bombeiros socorristas. O povo reagiu a essa proeza com palmas e gritos de alegria. Mignoni respirou aliviado e Aroeira deu um berro de contentamento pelo salvamento dos dois, mostrado na televisão em tempo real. Não imaginavam que estariam cuidando do caso na delegacia poucos dias depois.
O delegado desejava que ambos fizessem parte da equipe técnica posta à sua disposição, pela fama que haviam conquistado de serem extremamente hábeis em resolver os casos que lhes confiavam maridos traídos, logistas e banqueiros roubados, parentes de pessoas sequestradas etc. Moveu-os a lógica de que um salário permanente e seguro é melhor que o ganho incerto e variável do trabalho autônomo. E logo foram incumbidos de esclarecerem seu primeiro mistério.
Um dos mais prestigiados políticos da cidade fizera ao delegado queixa do desaparecimento de sua filha, no dia do acidente com a roda gigante. Mignoni quis começar por ouvir Holger, o jovem que estava com ela aquela tarde, no brinquedo danificado e foi com Aroeira localizá-lo. O rapaz estava sedado, sem sentidos, em um hospital, ainda se recuperando do violento choque psicológico sofrido por estar dependurado de cabeça para baixo, a grande altura, por mais de meia hora, até ser desvencilhado do cinto de segurança pelos bombeiros. Mignoni insistiu em vê-lo e a enfermeira apenas lhes encareceu que fossem breves. A vítima era um jovem branco, alto pelas longas pernas que tinha, estava absolutamente imóvel e respirava não muito regularmente. Estava no nível de inconsciência um, e ainda não respondia ao chamado pelo seu nome com qualquer sinal de atenção. Face a essa circunstância, Mignoni desistiu de examiná-lo. Com elegância agradeceu à enfermeira, que pareceu ter tido grande prazer com sua visita, convidando ambos a que retornassem passados alguns dias e o paciente estaria recuperado.
Se não pudesse ouvi-lo, Mignoni assumiria o que tinham como plano B, uma tarefa igualmente difícil que seria ouvir o Sr. Hansen, o rico industrial pai da desaparecida Linda Maria Hansen. Não havia sido feito, até então, qualquer pedido de resgate; em parte alguma se soube de qualquer indício que pudesse indicar o paradeiro da jovem.
Por insistência de Aroeira, os dois se dirigiram ao parque, deixando para depois a visita ao Dr. Hansen. Examinaram o assento que quebrara e puderam comprovar quanto desolado estava o proprietário dos brinquedos devido ao que acontecera. Ele presenciara, mas o dono do Parque, que viu o resgate, deu-lhes uma informação importante. Segundo ele, a moça, depois de ser retirada da posição em que estava pendurada, saiu andando em zigue zague no meio do povo. Ele não a viu depois. Não parecia estar ferida, mas certamente estava desorientada quando se misturou com o povo. Ninguém a acompanhava. Chegados à casa do industrial o detetive e seu auxiliar foram recebidos por Holger que, completamente recuperado do choque sofrido com o acidente, fora empregado como secretário pelo Sr. Hansen devido ao seu alto conhecimento de informática e por ser namorado da sua filha desaparecida.
No hall havia um antigo relógio de longo pêndulo, com uma frente e laterais esculpidas em madeira castanha onde estava um vidro com uma bela gravação, que tinha uma batida mansa e sonora. O carrilhão industrial comentou que era uma relíquia da família trazida da Dinamarca, quando viera com a mulher e os filhos para o Brasil.
—-Bom dia, Sr. Mignoni, que bom revê-lo. O Sr. Hansen o espera.
—-Foi como pensei: no hospital você fingiu estar sob efeito de um narcótico, mas viu perfeitamente que eu o visitava e se lembrou agora do meu nome anunciado pela enfermeira.
Enquanto frente à porta que o mordomo mantinha aberta, e o detetive dava os primeiros passos sobre o tapete vermelho, Holger pagava pela mentira que havia encenado alguns dias antes, no hospital, pondo-se tão rubro quanto o tapete em que pisavam.
Dr. Hansen, depois de um polido cumprimento ao detetive e seu companheiro, indicou uma cadeira-de-braço a Aroeira na sala de espera e permitiu apenas a Mignoni que entrasse com ele no escritório. Holger também ficou de fora.
O mordomo, sentado em sua cadeira junto à porta do escritório, passou os olhos nos jornais do dia e deteve-se na leitura de um longo artigo sobre o desaparecimento. Um dos jornais trazia lado a lado os retratos da mãe e da filha desaparecida.
—-Por favor, empresta-me esse jornal, pediu Aroeira.
—-Ninguém pode ler os jornais antes do Dr. Hansen, resmungou o mordomo.
– Então você também não devia estar lendo! Trovejou Aroeira; indo até ele, arrancou-lhe das mãos os jornais com violência, e o homem, assustado, deixou a sala pálido de raiva. Seu lugar, na cadeira junto à porta, foi imediatamente ocupado por Holger. Aroeira mudou de assento para melhor observar Holger que inclinava o corpo para ouvir o que era dito dentro do escritório, fazendo ao mesmo tempo anotações em uma pequena caderneta de capa de couro preto. Passaram-se longos minutos de silencio ouvindo-se apenas o manso tique-taque do carrilhão deixando passar vagarosamente sua corrente, e raramente ouvia-se também um pouco da voz abafada do dr. Hansen. Nada se ouvia da voz do detetive que estava conversando com ele no escritório.
Após ainda alguns minutos, Holger subitamente endireitou o corpo, puxou a porta do escritório sem fazer ruido e caminhou com um andar esperto para o outro lado da saleta de tapete vermelho. O milionário e Mignoni apareceram atravessando lentamente o hall como se ainda estivessem a concluir a conferência enquanto caminhavam na direção da grande porta de saída de madeira trabalhada. Aroeira juntou-se a eles para também se despedir. Mas a Sra. Hansen os deteve. —- Esperem. Quero que os dois experimentem o sabor desse excelente bolo de queijo dinamarquês. Me entristece porque era o quitute que Linda apreciava e levava diariamente para a escola como lanche. “Drommekage”, experimentem!…
Dr. Hansen contribuiu com tacinhas de licor para os dois detetives saborearem o bolo.
Os dois detetives prometeram à Sra. Hansen passar-lhe qualquer novidade que houvesse no caso, e partiram.
No escritório o porteiro não havia recebido nenhuma correspondência em resposta ao material que haviam espalhado descrevendo a jovem desaparecida e falando da recompensa oferecida em troca de informações. Mas o que a Sra. Hansen havia dito do hábito da filha de comer sempre o bolo dinamarquês como lanche, levantara uma leve esperança de progresso na investigação. Mas podiam imaginar um interesse de Holger na pesquisa do Sr. Hansen com características de espionagem, e Linda Maria sequestrada para o mesmo fim, por um sócio oculto dele, no episódio do acidente na praça. Trocariam a liberdade da moça pelo segredo da invenção de seu pai.
Mignoni e Aroeira foram à estação, alguns dias depois de serem informados na delegacia, de que uma mulher vendia lanche aos viajantes em um tabuleiro desmontável, na parada dos trens. Talvez a jovem houvesse matado a fome comprando no tabuleiro montado o bolo de que gostava. A vendedora mostrou-se seduzida pelos modos educados de Mignoni ao solicitar informações. Era sua especialidade levar uma mulher a revelar-lhe um segredo e a identificar as que mentiam.
—-Eu estava ocupada em preparar meu ponto de venda, ainda alguns minutos antes da chegada do expresso, quando duas mocinhas se aproximaram, e a de menor estatura disse para a outra: “É aqui!” … e me perguntou se eu tinha o bolo “Drommekage”. A mais alta, e muito bonita, agradeceu e se despediram. Vendi um saco de quinhentas gramas para ela e ela se foi.
—-Para que lado?
Na direção dos vagões de carga da composição. Estranhei, mas estava muito ocupada com o atendimento dos fregueses para poder dar mais atenção a ela.
—-Os vagões de carga são os que ficam atrelados mais próximos da locomotiva, disse Aroeira. Os de passageiros ficam no final da composição onde sofrem menos solavancos.
—-Acredito que ela viajou, mas não queria ser vista na boca da bilheteria onde havia guardas de segurança. Quis viajar escondida em um vagão de carga – disse Mignoni.
O drama pelo qual passou Linda Maria Hansen desenrolou-se em dois atos, e a solução se deu com um punhado de episódios que, aparentemente articulados pelo acaso, depois de conhecidos se avizinhavam de milagres. A primeira parte começa com o convite de seu noivo para irem ao parque que se inaugurava aquela tarde na cidade, e a segunda com tudo que se seguiu a um acidente de que foram vítimas nesse passeio.
Somente algum tempo depois, quando a própria Linda Maria, com sua memória totalmente recuperada contou o que lhe acontecera, ficou sabido o que se passara. Lembrou-se então de estar em um trem que fazia muitos chiados enervantes, e dava sacudidelas que a machucavam, e que ia aos poucos parando em uma estação. Era manhã bem cedo e ainda escuro. Alguém acendeu um isqueiro. Abrindo bem os olhos procurou ver o que a rodeava. Era certamente um anjo, tão bonito era o jovem vestindo uma blusa branca, de pé na penumbra à sua frente.
—-Você deve desembarcar…. Os cargueiros da soja são carregados nesta estação, os guindastes vão começar seu trabalho em alguns minutos. Venha comigo, Você nada disse…vou ajudá-la…, mas precisamos nos apressar! – Ela não compreendia e ele não podia esperar que compreendesse. Puxou-a pelo braço, apanhou seu casaco de frio e enrolou-o no seu corpo, e verificando que os homens que chegavam estavam aglomerados à porta da estação, conversando e preenchendo formulários de trabalho, abraçou a moça e levou-a para o lado oposto ao da locomotiva, passou por um grupo de homens e algumas mulheres que falavam alto e apressadamente, ainda havia poucos operários, pouco apressados, ainda cumprimentando-se, bonés com as cores da empresa, um raminho de soja como identificador do grupo, e que iam trabalhar no cargueiro que retornaria à Capital no final da tarde. O dia clareava rapidamente, mas o jovem estava tranquilo: não seria mais apanhado como viajante clandestino, levando uma jovem que não sabia o próprio nome.
Pediu ao agente da estação para usar um telefone. Enquanto discava, tinha a atenção posta em Linda Maria que sentada à
mesa do barzinho, havia pagado um café para si e para o companheiro. Sem perceber que o agente continuara perto, desabafou para o pai como estava surpreso e feliz com a sua viajante clandestina, Pediu ao pai que viesse apanhá-lo na estação.
Com ainda melhor disposição, falou com a mãe:
—-Conheci uma menina que está sem memória devido a um acidente. Mas conversa normalmente.
—-Quero ver como isso é possível! Duvidou a mãe. A casa do Dr. Josel Hermann, agrônomo vindo da Alsácia com a esposa Dona Ruth, pais de Karl, era um primor de moradia. Cômodos espaçosos e amplos, lembrando palácios, serviçais de uniforme azul, silenciosos, ocupados com suas tarefas. Um jardim que parecia prolongamento de uma pequena plantação experimental de girassóis plenamente florida sobre a qual o agrônomo lançou um olhar especial, certificando-se de que desenvolvia com vigor.
Karl não percebera que fora espionado pelo chefe da estação, que escutou o que ele disse a seu pai ao telefone e ficara perturbado, achando que um sequestro estava acontecendo debaixo de suas barbas. Desconfiado, o agente ligou para o capitão do batalhão local da polícia militar. Este se fez acompanhar de dois soldados e passa pela estação onde confirma com o Agente a denúncia e, com bastante cautela, vai conversar com o Dr. Hansen. Quer a todo custo evitar erros neste caso que envolve pessoas muito importantes, e uma denúncia mal preparada poderia lhe custar sua chefia.
Mas, o Capitão achou que estava perfeitamente no campo de suas atribuições reter para esclarecimentos o rapaz e a garota que não aceitava de modo algum separar-se dele. Porém, lhe pareceu também que seria prematura qualquer providência, mas prometeu ficar atento aos fatos. O casal foi proibido de sair da cidade. A sra. Hansen assumiu uma responsabilidade pessoal, colocando-se como fiel zeladora do acordo que fazia com o Capitão e assim evitava que passassem a noite na prisão. Também teve empo de lembrar-se de que o grupo escolar estadual da cidade tinha uma psiquiatra alemã, Dra. Lea Cecília Becker, que aos sábados atendia moradores que se queixavam de insônia, que queriam conselhos em como lidar com um desafeto, e outros problemas. Não se limitava a assuntos dos estudantes e muito provavelmente poderia ajudá-la, prescrevendo algum xarope que restaurasse, a memória da garota. Decidiu levar Linda Maria, levando também Karl, até ela. Foi fácil encontrá-la, na própria escola. Submetida a um tratamento de conversa, Linda Maria foi rapidamente perdendo o medo e a timidez, buscando sempre estar perto de Karl e da Sra. Hermann, a mãe dele. Enquanto isto, cresciam as preocupações do Dr. Hermann. Ele era profundamente interessado em que todo dever ético fosse posto em prática -a tempo e totalmente, – e compreendeu que aquela mocinha desmemoriada trazia para ele um compromisso ético: devolvê-la a seus pais. Era urgente esclarecer tudo aos leitores dos jornais, ou as histórias mais descabidas seriam inventadas, e havia o risco de alguém abusar dela a pretexto de pretender salvá-la.
A notícia de que uma garota desmemoriada que vivia com um rapaz filho de um fazendeiro plantador de soja, chegou na forma de um e-mail, recebido pela secretária do delegado Cavalcanti na delegacia da Capital. O endereço do remetente era precisamente em um ponto do traçado da estrada de ferro e emitido pelo chefe de polícia da Capital da soja. Tinha grande possibilidade de estar relacionado a Linda. Uma troca de correspondência foi o suficiente para que o Delegado Cavalcante ajustasse com o delegado da capital todos os detalhes da transferência.
O delegado e o detetive foram à casa do Dr. Hansen, e foi combinado entre eles que se encontrariam para reconhecer a jovem na estação, e de lá iriam para a delegacia para assinar os papeis e executarem os procedimentos da prisão. Holgar viera também acompanhado de Aroeira.
Às 11 horas surgiram na curva do Parque as duas máquinas que puxavam a comprida composição de carga e passageiros. Os carros de passageiros ficaram coincidentes com a plataforma da estação, após a longa composição de carros de carga deslisar rente à plataforma, a pouca velocidade, por longa distância. Havia muitas pessoas aguardando parentes e amigos que chegavam do norte e invadiram a plataforma para carregar suas bagagens, abraçando desajeitadamente uns aos outros -, ao mesmo tempo os que recebiam queriam aliviar os viajantes do peso de suas bagagens. Dr. Hansen e sua mulher encontraram o grupo que aguardavam e deram pouca atenção a Karl, não mais que um aceno ao jovem algemado. Mas, rever sua filha foi uma explosão emocional para os pais de Linda Maria. “Oh Senhora do Perpétuo Socorro, mãe de Jesus! Como aguardei esse momento de felicidade, com meu coração cheio de gratidão e amor por vós. Com minha filha retornando à casa vencendo muitos perigos desfeitos pela espada do vosso anjo que a protegeu conforme vos supliquei”. Holgar, não reconhecido pela antes quase noiva, manteve-se afastado.
Na sala de reuniões da delegacia o caso ficou completamente resolvido. Dr. Hansen tranquilizou o detetive: Os papeis referentes ao seu invento estavam seguros na gaveta do seu banco; ali mesmo passou discretamente um envelope com os prêmios que havia prometido aos dois detetives. Linda Maria, ao almoço que se seguiu em casa do Dr. Hansen passou a dar mostras de não ter mais nenhuma amnésia importante, mas pediu que a deixassem ficar com a família de Karl que retornaria aquela tarde para a capital da Soja. Com muitos abraços e declarações de amor às duas senhoras, obteve a permissão dos pais e então foi a vez da mãe dela conseguir que Karl deixasse os pais retornarem para sua fazenda e ele ficasse em casa de Linda Maria pelo tempo que gastariam, se preparando para o casamento.s, obteve a permissão dos pais e então foi a vez da mãe dela conseguir que Karl deixasse os pais retornarem para sua fazenda e ele ficasse em casa de Linda Maria pelo tempo que gastariam, se preparando para o casamento.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 22-10-2024.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – LINDA MARIA HANSEN. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2024.