O Cão de Siegfried

Hoje: 27-11-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Aquarela de Jeannine T. Cobra

O crime não compensa!… – O criminoso termina na cadeia. Porém, uma rápida análise dos casos mostra que os criminosos não planejam a fuga, em seus detalhes, com o mesmo cuidado com que planejam o crime. São apanhados porque, se não erram ao planejar a ação, erram no que fazer depois de praticá-la. Em geral seus disfarces com barba ou bigodes postiços não iludem a polícia. Pior ainda quando tentam a ocultação de um corpo. Se o enterram, se o esquartejam ou o dissolvem em ácido, deixam pistas, como o local onde compraram os venenos que utilizaram.

É indispensável planejar a fuga com muita antecedência e com muita inteligência, tanto quanto estudar os detalhes para executar o crime. Pensar que basta sair de cena o mais rápido possível e se esconder é, geralmente, a principal causa do malogro. Ainda que a ação falhe, o autor será punido pela intenção de praticá-la se não tiver um bom plano de fuga. Mas, se o tem, o crime compensa sim senhor!

*

Tais ideias não deveriam estar na cabeça de Sigfredo Rocha. Ele era um jovem muito simpático, de aparência agradável, filho de fazendeiros alemães do Sul, com estudo ginasial e colegial, e mais um curso de contador. Viera para Minas promovido e transferido para trabalhar na sede da firma Vicente Soares – Atacadista, com direito a morar em um dos pequenos chalés de propriedade da firma na rua Caranday, entre os dois viadutos que atravessam as linhas de ferro. Havia, poucas vezes, visto o seu patrão, que sabia estava sempre viajando para inspecionar as filiais.

Por situar-se a firma na zona de meretrício – que era parte do centro da cidade –, ninguém da família do dono frequentava o escritório. Os funcionários não conheciam sua mulher nem seus filhos. Apenas o tesoureiro havia ido algumas vezes à casa do patrão e conhecia a sua esposa.

Rocha impressionou-se com as grandes somas de dinheiro das prestações de contas das filiais, que eram levadas semanalmente para a conta bancária da firma. Boa parte desse dinheiro chegava em pequenas malas postais com cadeado, e eram colocadas no cofre. O principal trabalho de Sigfredo Rocha era conferir, junto com o gerente e o tesoureiro, as expressivas somas recebidas. Fazia-se um balancete parcial às sextas feiras, quando eram juntados os pacotes de notas amarradas com barbante e embrulhados em folhas de jornal, que Sigfredo e o porteiro levavam para o banco em uma sacola. Estas circunstâncias levaram-no a conceber a ideia de como planejar um furto, e à compulsão de provar que a sua tese sobre a fuga era verdadeira.

Seguindo sua teoria de que planejar bem a fuga é tão importante quanto planejar bem o crime, Sigfredo começou por encomendar uma mala com trincos nos três lados e fundo falso para colar, evitando vestígios de costura. Iniciou o disfarce que passaria a usar, e do qual se livraria após a ação. Queria ser conhecido pelo disfarce; para que, quando se desfizesse da falsa figura, ficasse diferente da descrição que dariam dele. Seu disfarce após o crime consistiria em voltar a ser ele próprio, desfazendo-se de tudo que houvesse inventado para se disfarçar.

Foi mudando sua aparência aos poucos: o castanho claro sobre o cabelo preto, umas olheiras obtidas com um lápis macio, os óculos, a boca torta por uma imaginária nevralgia na face esquerda, uma leve gagueira, uma palmilha com calcâneo para deixá-lo bem mais alto do que realmente era. Escreveu ao pai pedindo-lhe que lhe mandasse uma certidão de nascimento do cartório alemão da cidade, onde seu registro constava em língua alemã: Peter Siegfried Hochritter, e não como depois fora aportuguesado, durante a guerra, por força de Lei. Quando a recebeu, tirou uma nova identidade que usaria na fuga. Porém, no escritório da firma, continuou a ser “o Rocha” de sempre.

Sentindo-se já bem preparado, esperou por uma daquelas semanas nas quais, por incluírem certas datas especiais, as lojas e fábricas de roupas engordavam seus estoques de tecidos e as entradas de dinheiro na Vicente Soares – Atacadista eram as mais altas do ano. Na sexta feira escolhida, trabalhou duramente na preparação do balancete semanal, juntamente com o tesoureiro e o gerente. Terminaram quando faltava apenas meia hora para o banco fechar. Sigfredo ficou só na saleta, a transferir o dinheiro do cofre para a bolsa usada para o transporte. Além do dinheiro do balancete, pegou também a grande soma reservada para a manutenção da loja e o salário mensal dos funcionários, amarrando-a em um pacote à parte.

Já com a pesada bolsa de dinheiro pendente do ombro, perguntou ao gerente se poderia ir diretamente para casa, após fazer o depósito.

O gerente levantou os olhos das notas de encomendas que examinava e olhou o contador como se esperasse que ele dissesse o motivo do pedido.

Enquanto mantinha os olhos na figura do funcionário, o gerente pensou: “Desde que chegou ele envelheceu e ficou cheio de achaques… mas nunca tive um contador tão competente e honesto!”. Temia que ele pedisse à firma seu retorno à filial no Sul.

—Vá para casa – concordou ele. —Fizemos o balancete; falta apenas juntar o recibo do banco. Não se esqueça de trazê-lo na segunda feira. Chame o porteiro para acompanhá-lo.

A anuência do gerente deu-lhe calma para ir em casa antes de embarcar para Vitória. O porteiro não o viu sair. Estava à porta de um salão de sinuca, conversando com uma prostituta. Desta vez Sigfredo não se deu ao trabalho de gritar por ele na calçada. Saiu tão rápido quanto o pesado fardo lhe permitiu.

Em casa livrou-se dos óculos, das palmilhas, endireitou a bochecha que contraia já por hábito, removeu o prateado de uma mecha de cabelos, lavou as sobrancelhas deixando-as finas e menos expressivas, e removeu a quase imperceptível camada de pó que tornava seu rosto descorado e macilento.

Ao vê-lo aproximar-se, agora disfarçado de si mesmo, Molenga – o seu cão – não agitou a cauda e latiu alegre como sempre fazia. Empinou as orelhas e fixou nele os olhos, sem decidir se aquela figura era, de fato, a do seu dono. Mas o faro apurado que tinha logo lhe deu certeza e voltou a agitar-se, esperando por um carinho. Sigfredo, agora Peter, alimentou-o, deu-lhe água, e despediu-se dele carinhosamente; atravessou a casa e saiu para a rua. Por uma escada, pouco adiante, desceu para a estação ferroviária da Rede Mineira de Viação, e pela passarela subterrânea, passou para a gare da Central; de lá partiria a composição para Nova Era, onde haveria transbordo ao trem da Vale que o levaria a Vitória, no Espírito Santo.

Escolheu o vagão menos cheio e acomodou-se junto à janela. Outros passageiros entraram: um casal com uma criança; alguns senhores com seus ternos protegidos contra as cinzas e a fumaça da locomotiva por guarda-pós de brim. Por último entrou um grupo de montanhistas com seus equipamentos de montanhismo metidos em sacolas, a armação para as tendas, sacolas com roupas e os equipamentos menores, além de um grosso rolo da corda de cânhamo. Ainda lutavam para acomodar seus apetrechos no bagageiro próximo do teto, quando foi dado o sinal de partida para o trem. Soou um apito, chiou uma descarga de vapor contra a plataforma, e explodiu um forte jato de fumaça negra pela chaminé da máquina. O trem, com o tensionamento barulhento dos engates, estremeceu, pondo-se em marcha, a princípio lenta. Mas logo as lâmpadas da estação começaram a passar cada vez com maior rapidez. Em pouco tempo a composição deslizava na noite rente a casebres e pequenos quintais à beira da linha, que se via apenas até onde a luz das janelas dos vagões podia alcançar.

As pequenas luzes de prédios mais distantes pareciam acompanhar o trem, enquanto os telhados negros e as ruas transversais com suas luzes amareladas passavam mais rapidamente quanto mais perto estivessem. Em uma curva Rocha pode ver por inteiro a locomotiva, o facho do seu farol iluminando um barranco e o enxame de brasas projetadas pela sua chaminé resfolegante. Lembrou-se de fechar a janela que havia deixado aberta em obediência ao seu protocolo de fuga, que mandava deixar livres todas as rotas de escape. Pelo vidro da janela via agora apenas o reflexo de sua face viajando na escuridão exterior.

As estações se sucederam. O trem se deteve mais tempo em Sabará.

As poucas pessoas que se achavam na plataforma da estação defendiam-se do frio mantendo as mãos nos bolsos e a cabeça afundada entre as lapelas levantadas dos casacos. Um homem alto e magro, vestindo um terno de cor bege e com um chapéu de feltro inclinado para a nuca, aparentemente insensível ao frio, conversou por alguns instantes com o chefe do trem, e este fez algumas anotações, antes de retornar ao vagão.

Embarcou um casal de idosos. Veio com eles um senhor que colocou no bagageiro a mala do casal,– no espaço que correspondia aos seus assentos –, cobriu-os com uma manta de lã, desejou-lhes boa viagem, beijou-os, e saiu. Permaneceu na plataforma junto à janela. O idoso desceu o vidro e conversaram sem maior entusiasmo até a partida do trem.

O casal de idosos ocupava assentos na mesma linha da poltrona de Peter no lado oposto do corredor, atrás dos montanhistas. A idosa, inquieta, não demorou a reclamar:

—Era só o que faltava! – disse indignada para o marido. —Essa gente colocou suas sacolas no espaço do bagageiro que corresponde à nossa poltrona – disse para ser ouvida pelos invasores. —Faça alguma coisa!…

—Mas não precisamos de mais espaço, querida. Nossa mala já está lá. – objetou o marido.

—Ora, se tiro os sapatos para descansar os pés, onde os coloco? E se quiser tirar de cima de mim esse cobertor, onde vou deixá-lo? – perguntou ao marido, com evidente menosprezo por sua inteligência.

Uma jovem de rabo de cavalo, integrante do grupo de excursionistas, voltou a cabeça ao escutar as reclamações.

—Não há necessidade de ficar zangada – disse ela, um tanto desconcertada – é minha bolsa. Desculpa-me, vou pegá-la.

A aquiescência da jovem não estancou a corrente de ódio da idosa.

—O que é que vocês pensam que são? Acham que não precisam respeitar os direitos das pessoas?

—Por favor, querida! – Interveio o marido.

—Estou dizendo que vou pegar a minha bolsa – disse a jovem separando as palavras e dando ênfase a cada uma, com visível aborrecimento. — Não entendeu?

—Entendi sim, sua devassa. Uma moça decente não viaja misturada a um grupo de homens. – A mulher mirou as etiquetas de hotéis estrangeiros coladas na bolsa. —O que se passa entre vocês nesses hotéis?

—Velha maluca! Não vamos a hotel nenhum. Somos montanhistas e vamos escalar um pico na serra do Caraça. Eles são o meu irmão e meus colegas da universidade.

—Não se irrite, senhora – interveio Peter deixando o seu canto junto da janela e impondo sua figura diante da velhinha que levantou para ele o rosto irado. Embora ele não dissesse mais nada, ela emudeceu.

A discussão entre as duas havia atraído a atenção dos seus colegas, do casal com uma criança, e de outros passageiros. Peter achou que devia ajudar a moça, e ofereceu-lhe uma solução:

—Permite que eu coloque sua bolsa no meu bagageiro? Eu estou só no assento. – perguntou ele à jovem. —Sobra espaço.

Um dos rapazes do grupo deixou seu lugar e veio ver o que estava acontecendo. A moça se pôs a chorar.

—Ela me insultou sem motivo algum, balbuciou entre os soluços. —Achou ruim minha sacola junto da bagagem dela.

O jovem ignorou o casal de idosos. Tomou o braço da colega e a conduziu para um assento mais à frente.

Pareceu a Peter que os verdadeiros motivos da irritação da mulher poderiam ser o despeito e a inveja, pois a bolsa de lona emborrachada da jovem, com os elos das alças, as tachas que reforçavam as costuras, e a placa do fecho feitas de brilhante metal dourado, era com certeza um artefato caro, em contraste com a mala barata, de couro cru e manchado, e de fechos semi-enferrujados pertencente ao casal.

O rapaz que acudira a moça voltou e dirigiu-se a Peter:

—Obrigado por ajudar Letícia, minha irmã. Posso me sentar aqui?

—Claro! Eu paguei por somente um assento, disse Peter sorrindo.

O montanhista transferiu a bolsa da irmã para o bagageiro acima da cabeça de Peter, e sentou-se no lugar vago ao seu lado. —Meu nome é Junior. Você, como se chama?

Os dois se engajaram em uma conversa amistosa e de troca de informações. Peter – o ex-Rocha – sentia como uma novidade ser ele mesmo. Era como se reencontrasse a si próprio, voltando à sua verdadeira idade, ao seu verdadeiro nome, e ao seu bom humor. Dava-se conta de por quanto tempo havia sido prisioneiro do seu plano e do seu disfarce. Seu projeto havia lhe custado muito em isolamento, em liberdade de expressão e em sentimentos verdadeiros. “Só haverão de chamar a polícia na segunda feira. Isto significa um fim de semana absolutamente tranquilo para gozar” – pensou, sem levar em conta que o porteiro, deixado para trás, poderia ter corrido no seu encalço, tê-lo visto tomar rumo diferente sem passar pelo banco, e reportado isto ao chefe do escritório.

Junior quis saber o que ele fazia.

—No momento, nada. Moro no Sul, meus pais são fazendeiros, e eu ajudo na fazenda. Tirei umas férias para conhecer um pouco do Brasil. Estive no Rio, em Belo Horizonte, e agora vou ao Espírito Santo. Espero ficar em alguma pousada à beira mar, perto de Vitória.

—Vai fazer baldeação em Nova Era… Mas, se você deseja conhecer o Brasil, acho que precisa ver as suas serras e as suas matas. Por que não se junta a nós? Vamos escalar o Pico do Sol. E se não tem interesse em escaladas, pode hospedar-se no Santuário, no alto da serra. Na volta nós o encontraremos lá. Boa comida, boa dormida, e cercado por montanhas onde encontrará de tudo da fauna e da flora dessa região!

—Parece ser uma boa ideia! – disse Peter.

—Então desça conosco. Vamos desembarcar em Barão de Cocais.

Enquanto conversavam a porta do vagão se abriu e entraram o condutor e o chefe do trem – com seus uniformes azuis e gravatas pretas, bastante amarfanhados, e seus bonés de frente alta onde estava bordado em ouro o emblema da ferrovia –, para conferir as passagens. Antes que fechassem novamente a porta, por entre as suas pernas passou nada menos que Molenga, o cão de Peter. Certamente havia conseguido saltar para o quintal do vizinho, sair para a rua, seguir pelo faro o seu dono, e se meter no trem na gare da Central. Ele estivera até aquele momento bloqueado nos vagões de trás da composição e viera seguindo o condutor e o chefe do trem.

O cão entrou resfolegando, cheirando nervosamente, primeiro na direção do casal de idosos, depois se voltando para Junior e Peter.

—Um cachorro! – espantou-se Junior. O cão saltou sobre suas pernas, buscando pular para o colo do dono, mas ele o deteve, supondo que o animal queria se lançar para fora sem perceber o vidro da janela.

Os dois funcionários iniciaram maquinalmente o seu trabalho. O condutor picotou as passagens dos dois rapazes com a atenção posta no cachorro. O chefe do trem tinha um caderno de anotações mas, igualmente distraído, não as conferia. Porém, pouco adiante voltou os olhos para Peter e os montanhistas. “Nenhum usa óculos ou tem a boca torta” – disse para si mesmo, e seguiu o condutor para o próximo vagão.

Peter fingindo não reconhecer seu cão, tirou do bolso do paletó um pacote de biscoitos e lançou alguns no chão do corredor, ao lado de Junior. O cão se pôs a comer vorazmente. O garotinho, filho do casal jovem, veio com um pedaço de salame, deixou que o cão o cheirasse e recuou atraindo-o até o seu lugar junto aos seus pais. O cão o acompanhou de nariz levantado. Comeu o salame com igual voracidade; levantou a cabeça e deu um ganido, como a pedir mais.

—Meu filho! Já é bastante! Assim você acaba com nosso lanche – reclamou a mãe.

—Eu compro mais salame em Governador Valadares, disse o pai para tranquilizar a mulher.

—Barão de Cocais! – anunciou um camareiro uniformizado. —Parada de dois minutos.

Os rapazes desceram reanimados, carregando seus instrumentos de escalada, depois de um certo torpor causado pela monotonia do balanço e do barulho cadenciado das rodas nas emendas dos trilhos; o casal de velhos dormia profundamente e o garoto dava água ao cão em seu próprio caneco colorido. Peter desceu, com sua mala e a bolsa a tiracolo, aproveitando-se da distração do animal. Ambas as portas de passagem entre os vagões estavam fechadas com suas fechaduras de maçaneta redonda cor de bronze.

O Agente da Estação, uniformizado, entregou a licença de tráfego ao maquinista e anunciou a partida do trem com a badalada de um sino suspenso à coberta. A locomotiva deu um apito baixo e curto e soltou um primeiro e vigoroso jato de fumaça, seguido do estiramento ruidoso dos engates entre os carros. A composição começou a se mover. O chefe do trem, que estava na plataforma, pegou, com um gesto de certa elegância, o apoio vertical junto à entrada do vagão e subiu, como em um passo de tango argentino, para a escada que deslizava à beira do cimento manchado e descascado.

O trem aumentou a velocidade, e a plataforma ia ficando para trás quando Peter viu seu cão saltar do vagão – por onde subira o chefe do trem – num longo salto para cair e rolar na parte final da plataforma da estação. Na queda o animal sofreu uma torção em uma das patas e uivava de dor.

Peter tinha entre ele e o cão, o grupo de jovens rodeados por seus equipamentos de montanhismo. Apesar de condoído com o sofrimento do animal, Peter sentiu-se aliviado, pois o cão, ferido, não continuaria a segui-lo.

O cheiro do dono tranquilizou Molenga, que esperava os mesmos cuidados que sempre recebera dele. Impaciente, olhava por entre calças e botinas do grupo, espreitando em cada brecha do círculo, tentando ver o dono. Mas perdeu a esperança de que este viesse a confortá-lo e voltou a grunhir baixinho, sem coragem de se levantar.

O Agente e o guarda-chaves se aproximaram, para ver o que se passava.

—Quem é o dono do cão? – perguntou o Agente.

—Ele apareceu no vagão. É cão fugido – disse um dos jovens.

O guarda –chaves ergueu o animal com cuidado, deixando a pata inchada e dolorida livre, evitando tocá-la.

— Vou cuidar dele. Quando ficar bom, será o namorado da Zazá, a minha cadelinha.

O guarda-chaves se afastou levando Molenga. Atravessou as linhas, caminhando rumo à fraca luz que vazava pelos vidros entre caixilhos quadrados de uma janela distante, além da estrada. Os jovens voltaram a se ocupar com a bagagem deixada no chão da plataforma.

Junior apresentou Peter a sua irmã Letícia – com quem ele já havia falado no trem –, e aos amigos montanhistas Hélio e Elcio.

—O guia não vai demorar. Ele disse que acordaria com o apito do trem, e viria nos apanhar – garantiu Junior.

Passados poucos minutos de sofrimento com o frio intenso da noite, surgiu na escuridão, a pouca distância, um par de faróis, e o ronco de um motor cada vez mais próximo. Os faróis Iluminavam a estrada de terra à frente, o capim e os arbustos dos dois lados, e as cercas de paus roliços, tábuas, e arame farpado, das casas frente à estação. Uma divisão vertical entre luz e sombra deslizava pelas fachadas como um fantasma a devorar tudo que estivesse visível, voltando a escuridão a cobrir o cenário que ficava para trás.

—É o guia! – disse Junior, que sentara numa ponta de um dos bancos. Bateu as botinas no chão e levantou-se de um salto.

O grupo, carregando suas sacolas, atravessou a passos rápidos as linhas de trem, passou por uma cancela iluminada pela luz amarelada de um poste e encontrou o guia que depois de saudá-los e avaliar a bagagem, levantou o capô para dar uma olhada no motor da caminhonete. Um pouco de vapor represado subiu rumo à luz do poste.

Os rapazes colocaram os apetrechos na carroceria, Junior e a irmã sentaram-se na boleia ao lado do chofer e os outros se acomodaram sobre a bagagem, na carroceria. A caminhonete afundou sob o peso.

—Hei, rapazes!… – gritou Junior pela janela. —Preparem-se! Vamos ter que empurrar essa mariquinha na subida da serra!

A caminhonete partiu matraqueando, fumarenta, iluminando a estrada com seus faróis desalinhados.

*

No primeiro dia no Santuário Peter não queria mais que descansar das emoções da fuga e da penosa subida das ladeiras pela estrada carroçável.

Após o café e depois da partida dos montanhistas rumo ao Pico do Sol, solicitou um banho e lhe foi indicado um chuveiro junto da cozinha, com paredes de pedras, cuja água quente vinha de canos embutidos sob a trempe de um grande fogão, onde mulheres cozinhavam o almoço.

—Que lugar interessante! – disse Peter quase que só para si mesmo.

No meio da manhã chegou pelos fundos do Santuário, onde terminava o acesso de veículos, um carro americano, grande e luxuoso, porém coberto de poeira. O motorista abriu cerimoniosamente as portas e três mulheres desceram. Sem dúvida eram pessoas de posses. As roupas que vestiam, de talho esportivo, eram com certeza da marca de algum costureiro da alta costura, e provavelmente compradas na Europa.

O reitor estava a postos, junto à entrada, para receber aqueles visitantes especiais.

Ao almoço – atrasado em uma hora para que as recém chegadas pudessem descansar da viagem – Peter as viu sentadas à mesa longa do outro lado do salão. Eram duas mulheres e uma jovem. A figura central era uma senhora de meia idade, que tinha o punho direito enfaixado. A jovem, ao seu lado, tratava-a por “mamãe”. A outra mulher, de menos idade e com roupas e casquete branco de enfermeira, auxiliava a idosa a se servir.

Apesar do espaço de duas mesas atoalhadas, nas quais outros hóspedes conversavam enquanto comiam, Peter podia deliciar-se em observar as feições delicadas da jovem e seus modos distintos, obedientes a uma severa etiqueta. Mas ele não se permitiria abordá-la. Achava que, filho de fazendeiros, de hábitos simples, sem vivência social que não com a gente do campo, não raro grosseira, não poderia sustentar uma prosa com ela. “Não se atravessa limites, pelo risco de não ser aceito e sofrer com a rejeição”, pensou. Mas, lembrou-se de que agora era rico e deveria cuidar de suas maneiras, para que os seus modos vulgares não o traíssem. Começou a sentir-se orgulhoso do seu feito e feliz com sua fortuna.

—Elas são Dona Ludmila e sua filha Lucila – informou-lhe o Irmão Zefinho.

Após a sobremesa a jovem permaneceu por um instante, a observar os detalhes do grande quadro, representando a Santa Ceia, pintado em lona, suspenso na parede do fundo do refeitório. Mas em vão procurava pela assinatura do pintor. O Irmão Zefinho foi em seu socorro, dizendo-lhe tratar-se de uma obra pouco conhecida do Mestre Ataíde.

Mais tarde, quando perambulou um pouco pelo espaço por trás da igreja, Peter viu dona Ludmila conversando com o Reitor enquanto caminhavam à sombra dos edifícios. Somente ao jantar veria Lucila, para convencer-se ainda mais de que a desejava.

Na manhã do domingo, os visitantes, todos metidos em blusões de lã, alguns usando cachecol e luvas, foram para a Igreja em jejum, para assistir à missa e comungar. Sobre os campos, formara-se uma neblina densa que limitava o visível a poucos metros ao redor do templo. Além dos hóspedes estavam na igreja todos os que trabalhavam na Casa, e vários moradores das redondezas. Isto deixou a capela cheia de fiéis.

O reitor celebrou e fez a prédica. Peter protegido do frio apenas por um pulôver sob o paletó, acercou-se discretamente da porta, tentando ver Lucila em meio ao povo. Quando, pouco depois, todos se dirigiam em fila à mesa da comunhão – na verdade um parapeito com pequenas colunas roliças talhadas em madeira e um longo e estreito tampo coberto por uma rica toalha de damasco bordada em prata – ele a viu com um véu de rendas pretas cobrindo-lhe os cabelos, altiva e bela, teve a certeza de que nunca esqueceria aquela visão.

A aproximação entre ambos foi facilitada pelo irmão Zefinho, que se ofereceu para mostrar a casa aos visitantes. Peter juntou-se na varanda aos hóspedes que aceitaram o convite. Para alegria sua, também Lucila se juntou ao grupo.

—Sempre começo por mostrar a Capela – colocou o Irmão como coisa inquestionável. — Depois da visita vou levá-los à nossa fábrica de pinga, no porão ali adiante – prometeu.

Na capela, a jovem deu pouca atenção a Peter, encantada que estava com a inesperada riqueza da igreja de estilo neo-gótico, como vitrais franceses doados por D. Pedro II e a relíquia do corpo envolvido em cera do mártir São Pio, guardada sob o altar-mor.

—Você estava muito bonita na missa, com aquele véu espanhol de renda negra – sussurrou-lhe Peter no momento em que a teve perto de si, observando os vitrais. Ela apenas agradeceu, sem tirar os olhos das obras de arte.

Do templo passaram ao terraço e desceram a escada para o jardim. Os canteiros estavam invadidos de mato e a fonte no centro estava seca. O irmão Zefinho, conduziu com certa pressa os visitantes para a porta larga, ao rés-do-chão, de entrada para a fábrica de vinho, cachaça e licores.

Logo ao entrarem, chamou a atenção dos visitantes o alambique. Irmão Zefinho explicou que a produção de bebidas era quase só para o consumo, e venda aos visitantes.

—O que compram ajuda bastante no orçamento da Casa – disse quase como uma sugestão aberta aos que o seguiam.

O ambiente estava impregnado pelo cheiro da fermentação –, e abelhas e moscas incomodavam os visitantes.

—A primeira fase do processo de feitura do vinho é a lavagem das uvas. Depois de lavadas e de retirados os pedúnculos, as uvas são esmagadas e moídas neste moinho – disse o Irmão, indicando um espremedor com rolos de ferro à direita de uma escada de pedras que levava ao primeiro andar.

—A uva é espremida e recolhida, tanto o caldo como o bagaço, neste tacho grande aqui. São necessários dois homens para levantá-lo e derramar seu conteúdo naquele tonel grande junto à parede, para a fermentação.

Da fábrica passaram ao chamado “jardim interno”, uma área de canteiros e arbustos, entre a fábrica e os porões dos prédios que o cercavam. Havia, nesse pequeno jardim fechado, pés de rosas e de camélias, flores rasteiras e trepadeiras, além de um relógio de sol que o Irmão assegurou que era muito preciso. Uma tênue sombra projetada por uma lâmina triangular vertical marcava 11 horas. O irmão deu a entender que o pequeno passeio terminava ali.

Subiram para a varanda na ala de residência dos padres pela escada próxima ao relógio e caminharam para a sala de recepção do edifício.

—Falta pouco para o almoço, que aos domingos é especial – disse o Irmão. —Nos veremos no refeitório e depois continuaremos este passeio pelo Santuário.

Ao se desfazer o grupo, Peter arriscou perguntar, pondo-se ao lado da moça:

—Vamos nos sentar no terraço?

Ela respondeu, sem hesitação:

—Sim. Já não faz muito frio e o sol levantou a neblina.

Os dois saíram para o terraço e se sentaram em um degrau da escada.

Sem o rigor do frio, o rosto de Lucila voltou a suas cores e frescor naturais. Peter atreveu-se a tirar os carrapichos do mato do jardim, presos em sua saia. Ela, graciosamente, puxou um pouco a saia rodada, para que a barra do vestido ficasse mais facilmente ao seu alcance. A lentidão propositada com que o rapaz catou os espinhos deu-lhe a oportunidade de admirar suas pernas abaixo dos joelhos, suas panturrilhas bem desenhadas – uma característica que ele já havia observado nas moças mineiras – e por fim as meias brancas, curtas, e as botinhas.

Os pensamentos de Peter, que andavam por sendas de encantamento e esperança, naquele momento se estancaram, ao ser surpreendido por uma pergunta feita por ela.

—Você é católico?

Ele sentiu um ligeiro pânico. Não sabia o que responder que não comprometesse o relacionamento entre ambos. Decidiu jogar os dados, torcendo para não perder:

—Sou ateu. Isto faz alguma diferença para você?
A moça notou a ansiedade em seus olhos ao revelar sua falta de fé, como se temesse que ela o rejeitasse, e percebeu o quanto ela era importante para ele. Com certa ternura e compreensão respondeu:

—Não… Nenhuma.

—Meus pais são profundamente religiosos – disse Peter com súbita esperança, como se apresentasse de ultima hora um salvo-conduto que lhe garantisse entrada.

—Ah! Isto sim, faz diferença! – disse ela sorrindo.—Neste caso você sabe o que é ter Fé.

Temendo que a conversa conduzisse a uma aproximação maior, que ainda não julgava oportuna, Lucila se pôs de pé e despediu-se dele.

Lucila teve que dar conta à mãe de quem era o rapaz com quem estivera conversando pouco antes, na escada do terraço fronteiro ao santuário.

—Nada sei sobre ele, mãe – disse com um sorriso de excitação e esperança.

—Ele é muito simpático. – concedeu Dona Ludmila, enquanto caminhavam para o refeitório. Vamos procurar descobrir quem ele é.

—Posso convidá-lo a sentar-se à nossa mesa, ao lanche da tarde?

Dona Ludmila refletiu: “Vou tentar descobrir com a ajuda do Reitor. Mas isto levará algum tempo. Melhor que a gente tente encontrar alguma pista conversando com ele”. Então, ainda um pouco em dúvida, autorizou laconicamente:

—É… – pode sim… – veja o que você própria descobre.

Naquele domingo, ao lanche, sentaram-se juntos, a convite de Lucila, que ficou separada da mãe pela enfermeira. Ela conseguiu extrair do amigo algumas informações sobre sua família, e onde havia passado a infância, como era a vida da família na fazenda e outras indagações próprias de um casal que tem pressa em se conhecer melhor.

Ela espontaneamente informou a seu próprio respeito. Disse que era Católica e muito devota de Maria, mãe de Jesus.

—Você sabe o que é o rosário?

—Um objeto sagrado?… que os católicos usam para repetir dezenas de vezes um louvor a Maria?

—O rosário não é objeto de veneração, é apenas um instrumento de contagem – disse ela. —Acredito também que a Ave Maria não é apenas louvor à Mãe de Jesus, como quase todos pensam. A Ave Maria é um Credo relativo à encarnação de Jesus. Eu a chamo de “Credo Mariano”.

—Ah! Não, por favor!…

—É em razão da Ave Maria ser um verdadeiro credo que a Mãe de Jesus, quando aparece a um vidente escolhido por ela, insiste para que faça a propaganda do rosário.

—Desculpa-me, Lucila, mas isto é ingenuidade. É cegueira!

—Toda fé é cegueira, Peter. Converter-se é se tornar cego, é dar um salto no escuro. Depois os milagres irão clareando tudo, e a escuridão acaba.

Por baixo da toalha da mesa, Peter procurou a mão da amiga sobre o seu colo. A moça voltou-se para ele e sorriu, seu rosto corado pelo embaraço em aceitar aquele afago.

—Gosto muito de você – sussurrou-lhe Peter. Ela manteve o sorriso e fitou-o bem nos olhos, os seus com um brilho de simpatia. Porém deteve a mão dele, segurando-a com firmeza, temendo que ele se excedesse e, com um gesto, estragasse tudo.

*

Ao café da manhã, turistas e hóspedes vestiam as roupas e calçados que tinham de mais adequado a uma caminhada por uma trilha selvagem. Alguns porém usariam roupas e sapatos sociais, devido à imprevidência de não trazerem coisas adequadas para caminhar no mato e sobre as pedras da trilha. Mas o Irmão Zefinho disse que o percurso até o pico era curto e fácil.

—Apenas 6 quilômetros!… – e a caminhada é fácil – disse o Irmão. E tem só um lugar onde vamos galgar umas pedras, mas não será difícil para ninguém. Estamos levando almoço para fazer um piquenique lá em cima.

Dona Ludmila aconselhada por sua enfermeira, desistiu. O Reitor, que observava a partida, disse:

—Vamos fazer um passeio mais curto, para aqueles que não quiserem ir ao morro.– Alguns visitantes, que não pretendiam acompanhar o Irmão Zefinho, logo aceitaram a proposta. Dona Ludmila deliciou-se com essa opção e, acompanhada da enfermeira, juntou-se ao novo grupo. Lucila despediu-se da mãe e ambas se recomendaram ter muito cuidado com cobras e pedras escorregadias.

Frei Zefinho e o Lucas, um rapazinho filho de camponeses vizinhos da Casa, que carregava o saco com os comestíveis para o lanche lideraram a partida dos excursionistas.

No caminho, o grupo se deparou com uma clareira na encosta do morro, ao redor de uma capela antiga.

—Esta capela – informou o Irmão Zefinho – era parte de um eremitério construído por Dom Viçoso, um santo prelado, arcebispo de Mariana. Ficou pronto mas nunca foi ocupado e acabou se desfazendo em ruínas – disse, apontando para meias-paredes de pedra e restos de colunas que jaziam no matagal, ao lado da capela, como sepulcros abandonados.

Um quilômetro depois, em um trecho acidentado e perigoso, onde era necessário estudar cada passo no caminho, passaram pela Gruta de Lourdes. Lucila condoeu-se com o abandono da imagem da Santa Mãe de Jesus – “Deixada naqueles ermos, raramente será vista por quem possa compreender a grandeza da mulher ali retratada“ – pensou. Mas encantou-a a presença de aves de espécies variadas, algumas raras. “Não há isolamento aqui. São tantas as aves que vêm louvar Maria, mãe de Jesus, com os seus cantos e trinados, com seu revoar, com seus amores, com suas tão variadas formas e cores!…” – pensou Lucila.

A subida foi feita sem pressa, pois não faltavam coisas para admirar. As flores, como os pássaros, eram de várias espécies.

Lucas que ia palrando com os rapazes, contando histórias de onças, e outros bichos, e de assombrações envolvendo frades falecidos que deixaram contas por acertar neste mundo, disse que havia muita planta farmacêutica naquelas serras. Pouco adiante ele saiu da trilha e chamou os rapazes para verem as flores de um arbusto.

O Irmão Zefinho e as mulheres se mantiveram à distância, aguardando por eles, O que Lucas lhes disse em voz baixa provocou fortes gargalhadas entre eles. Intrigado, Peter foi ver de que se tratava. Voltou sorrindo e, sem nenhum pejo, explicou.

—Estão rindo por conta de umas flores que se assemelham à estrutura do órgão reprodutor da mulher.

—É a Clitoria ternatea – disse o Irmão, com indiferença. —O povo coloca muitos apelidos pornográficos nessa flor.

Peter aproveitou o momento para abordar uma questão que o preocupava, face à extrema religiosidade da namorada.

—Você condena o prazer entre o homem e a mulher? – perguntou de chofre.

Muito tranquila e convicta, detendo os passos para encará-lo, ela respondeu:

—Entendo a razão da sua pergunta. Mas eu aceito o prazer e, mais que isto, eu procuro o prazer. Vou lhe dizer como e porque. Uma escritora paulista, que teve seus livros apreendidos e queimados pela polícia, dizia com toda convicção que as mulheres – e eu entendo que também os homens – precisam do prazer para se manterem saudáveis. Não tive qualquer dificuldade em casar o pensamento dela com a minha fé. Eu encontro o prazer que necessito vivendo castamente, na certeza de que Maria, mãe de Jesus, me dará um bom homem para pai dos meus filhos.

—Mas querida, ler e seguir um livro considerado pornográfico e queimado pela polícia não será, muito provavelmente, contra a castidade? Eu pensava que você fosse muito católica.

—Um amigo do Júnior lhe emprestou o livro, mas ele esqueceu-se dele porque, apesar do título, não era o que ele esperava. Eu o li, e fiquei impressionada com o pensamento revolucionário da autora a respeito de como o prazer é indispensável para a higiene mental e para a saúde do corpo. Gostei também de traduzir os trechos em Francês transcritos por ela, porque na época eu estudava essa língua.

Mais uma centena de metros – muito para o grupo já cansado e entediado com a subida –, e chegariam ao topo. Irmão Zefinho assumiu a dianteira, para livrar do perigo os rapazes mais afoitos: o vento soprava forte, e estava bastante frio.

No alto do pico os excursionistas puderam descansar do grande esforço da etapa final da escalada. Sentaram-se na laje de pedra e em algumas saliências do rochedo para gozar a vista que do alto se podia ter dos vales e montanhas que formavam as sucessivas serras das mais elevadas do país. Via-se o complexo do Santuário, reduzido a proporções minúsculas devido à distância. Os que tiveram ânimo para se aproximarem mais da borda dos lajedos, viram também o ponto branco a que ficara reduzida a Capela visitada no caminho da subida.

Lucila, fingindo-se indignada e ressentida, reclamou do Irmão Zefinho ele ter dito que a subida seria muito fácil. Peter, que também não tinha experiência de caminhar tal distância por entre rochedos cortantes, espinheiros, e degraus irregulares cavados pela natureza, estava visivelmente cansado. Caminhara sempre de mãos dadas com Lucila, dando-lhe todo apoio nos trechos mais difíceis.

—Se quisermos ser amigos fiéis, temos que aprender a vencer as dificuldades juntos! – disse ele para a namorada.

—E lembrarmo-nos um do outro em nossas orações. – acrescentou Lucila.

— Será que a fidelidade precisa de orações? Acho que só precisa de amor e sentido de responsabilidade. Isto eu tenho por você.

—Essas coisas podem falhar se Deus não as sustentar em você – disse Lucila tirando os olhos do horizonte para fitar Peter.

O irmão Zefinho, sem dar ouvido às queixas, distribuiu os sanduíches, ajudado por Lucas. Cada excursionista trouxera seu cantil ou garrafa com água ou suco de uvas. Depois de contemplarem longamente toda a imensidão que os rodeava, os excursionistas se dispuseram a voltar. As sombras já cresciam.

Recolheram tudo que pudesse macular os lajedos, não deixando sobre o pico nenhum vestígio que degradasse o local. Logo ao começar a descida perceberam que descer era mais difícil e sacrificante que a subida; a todas as queixas o irmão não fazia mais que sorrir.

Em certo trecho mais estreito, Peter pisou em falso e escorregou à beira da encosta que descia a prumo. A reação de Lucila foi apertar-lhe a mão que segurava, e se ajoelhar, conseguindo assim segurá-lo por tempo suficiente para que outros caminhantes viessem ajudá–la. Juntaram-se várias outras mãos e então Peter confiou o bastante para largar um pequeno arbusto a que se apegara e oferecer a outra mão para que o puxassem da parede do precipício.

O Irmão Zefinho, tão assustado e pálido como os demais – todos chocados com o acidente –, pediu ao casal que nos trechos mais estreitos, caminhassem em fila com os demais.

—Obrigado, pessoal, por salvarem minha vida. – disse Peter com humildade e verdadeiro sentimento de gratidão.

A fila foi formada e o grupo continuou a descida. Peter, caminhando logo atrás de Lucila, não deixava de olhar sua nuca muito branca, com pequenas gotas de suor, exposta sob o coque dos cabelos negros, deixando a nu suas orelhas com um anelzinho de ouro em cada uma.

—Obrigado, querida. Foi você quem me segurou até que os outros ajudassem. – A moça nada respondeu. Mas, olhando para o céu azul, murmurou:
“Obrigada, minha Mãe!”

Após o retorno do curto passeio ao Cruzeiro e o almoço, Dona Ludmila pediu ao reitor que verificasse quem era o rapaz.

—Não tenho como saber. Posso lhe passar o que ele apresentou ao chegar e está na sua ficha de hóspede.

—Não tem para quem ligar em Belo Horizonte? Talvez ele tenha ficha na polícia por algum mal feito. Faça isto por mim, Sr.Reitor – disse ela colocando a mão em seu braço para que ele entendesse que era uma coisa importante para ela.

O Reitor suspirou.

—Falar com Belo Horizonte é um tanto difícil a esta hora, muita gente quer ligar e as telefonistas ficam nervosas. Mas, muito bem: vou atendê-la.- O nome dele é… Verei na sua ficha de hóspede… Vou ligar para São Bento e pedir que liguem para Belo Horizonte – Aspirou mais ar, como se encher os pulmões lhe redobrasse as energias e lhe desse coragem para cumprir o prometido. Ergueu-se e caminhou com disposição até a sua escrivaninha, buscou a ficha, e dirigiu-se ao telefone de manivela preso na parede.

Naquele noite o jantar foi muito ruidoso. Todos queriam falar de suas próprias aventuras durante as caminhadas. Peter garantiu ter visto pegadas de onça na areia; Lucila falava com a enfermeira sobre as flores que viu, sem omitir a exótica Clitoria ternatea, outro hóspede afirmou ter visto prédios de Belo Horizonte e outro fez piadas sobre os frades fantasmas, provocando gargalhadas. Os padres apertaram os lábios para não rirem. Como que de propósito ou comum acordo, ou por ser um preceito da cultura mineira evitar assuntos desagradáveis, ninguém falou do acidente de Peter.

No dia seguinte, à tardinha, chegaram os montanhistas da longa e penosa caminhada ao Pico do Sol. Ao procurar por Lucila após o seu banho, Peter viu Dona Ludmila ser abraçada carinhosamente por Júnior, que depois abraçou Lucila e cumprimentou a enfermeira. O mesmo fez Letícia e os dois outros montanhista. Estavam bem animados, sem mostras de maior cansaço com a escalada, e muito felizes com o feito heroico.

Ainda antes do jantar, o Reitor recebeu a resposta que interessava a Dona Ludmila: Peter Siegfried Rochritter havia solicitado uma nova carteira de identidade, alegando a perda da original. Na ocasião publicou no jornal a notícia da perda da carteira antiga, conforme exigia a lei. Nada mais constava sobre ele. Ficha limpa!

Mais à vontade com o rapaz, Dona Ludmila passou a tratá-lo com certa deferência, na verdade quase a cortejá-lo no interesse da filha Lucila, que estava bem na idade de se casar. O fato de a mãe ter deixado de ser reticente e até parecer entusiasmada com a ideia de que Peter pudesse vir a ser seu genro, foi para ambos, uma espécie de oficialização do namoro. Algo a festejar.

Na manhã seguinte, Peter e Lucila, após tomarem juntos o café, acompanharam o Irmão Zefinho que queria lhes mostrar a biblioteca. Seguiram por uma calçada de cimento, com cobertura de telhas enegrecidas, que atravessando um pátio mal cuidado, ligava o prédio dos hóspedes ao prédio do dormitório dos alunos, que tinha no térreo a biblioteca. O irmão deixou-os à porta e foi cuidar de suas obrigações.

—Esta não é uma biblioteca só de livros religiosos – disse o padre bibliotecário que fumava um cigarro com uma ponta de três centímetros de cinzas prontas a caírem entre as folhas das raridades bibliográficas que mostrava aos dois jovens visitantes. Temos obras de literatura, botânica, filosofia, teologia e história, e clássicos como as obras de Aristóteles, Virgílio, Horácio e Cícero, em latim. Depois de manusearem alguns volumes, Peter e Lucila agradeceram e se despediram.

—Com esse padre fumando desse jeito, essa biblioteca não demora a pegar fogo – disse Peter.

—E o dormitório dos seminaristas fica em cima dela. Imagina que tragédia.

*

Os planos dos amigos Elcio e Hélio, eram conhecer Cocais, antes de voltarem à Capital. O Reitor telefonou para São Bento pedindo que passassem o recado para o guia Nonô, em Barão de Cocais, para vir com a caminhonete apanhar os dois montanhistas no Santuário.

O guarda-chaves estava sentado no banco de dois lugares na sala do agente da estação. O agente fazia a contabilidade das passagens vendidas, sentado em sua mesa rústica. O telégrafo disparou seu “da-di- di di-da-di di-da” e a fitinha fina começou a deslizar sob a rodinha que ia imprimindo o código Morse de uma mensagem. O agente foi ao aparelho e, fazendo a fita deslizar pelas suas mãos na medida em que era impressa, lia a mensagem com seu óculos na ponta do nariz.

Desinteressado, o guarda-chaves saiu para a plataforma e viu a caminhonete do guia Nonô matraqueando, levantando poeira e deixando fumaça pela estrada além das linhas de ferro. Tornara-se um hábito o guia parar sua caranguejola na porta de sua casa e colocar Molenga na carroceria. O nariz do cão sentia de longe o cheiro da benzina mal queimada do motor e se punha junto à cerca, à espera da caminhonete. A princípio saia correndo atrás, onde quer que o veículo fosse. Condoído, e sabendo que o cão sofrera estiramento em uma das patas, o guia passou a colocá-lo na carroceria e, quando possível, no próprio assento ao seu lado. Levava o animal como mascote onde quer que fosse buscar ou entregar alguma carga.

—Nova Era avisou que o trem vem cheio: turistas de um festival em Catas Altas – disse o agente juntando-se ao guarda-chaves.

—Molenga foi com o Nonô outra vez – disse o guarda-chaves sem responder ao comentário do chefe; trem cheio era normal nos períodos de férias.

—Ele reconhece a caminhonete em que os montanhistas foram para a serra. Acho que o cão criou afeição por eles, porque foram os primeiros a lhe prestar socorros – supôs o agente.

—A pata dele curou em dois dias. Deve ter doído muito quando caiu. Tratei com arnica. Logo ficou bom e andarilho. Mas não parece um cão inteiramente feliz e despreocupado, entende?

Quando a caminhonete parou para pegar os dois montanhistas na porta de trás do Santuário, Molenga saltou e se pôs a vagar, confuso com a abundância de sinais da presença do seu dono, junto a cada edifício.

Aquela tarde Peter e Lucila davam um passeio curto, apenas até uma piscina cavada pelas águas do riacho, conhecida por Banho do Imperador. Estava pouco além da casa onde residiam algumas voluntárias que prestavam serviço ao Santuário. O casal retornava quando surgiu um cão que desceu correndo as escadarias frente ao templo e disparou rumo a eles, pelo caminho do tanque. Amedrontada e pálida, Lucila agarrou-se ao namorado.

—É o Molenga!… – disse Peter , assustado.

Vendo que o animal fazia festas pulando ao redor de Peter, Lucila admirou-se, e mais tranquila perguntou-lhe:

—Você tem um cão?

—Ele estava no trem, ninguém sabia de quem era. Afeiçoou-se a mim. Não posso imaginar como ele pôde vir me encontrar aqui.

—Os cães têm um faro extraordinário, disse Lucila.

Depois de muito abanar a cauda, dar pequenos latidos e grunhidos de alegria, e de muito cheirar os dois, Molenga disparou de volta, até sumir numa das entradas da Casa que davam para o terraço.

—Parece um cão inteligente. Se ficar por aqui, será útil aos padres – disse Peter.

Porém Molenga os surpreendeu novamente. Voltou, meio que arrastando ou carregando na boca a pesada bolsa que continha parte do dinheiro roubado. Deixou a bolsa no chão, em meio ao capim, e olhava o casal, ora para ele, ora para ela. Evidentemente queria que o dono voltasse para casa levando-o consigo. Súbito Lucila prendeu a respiração. Assustou-se ao ver as iniciais da firma atacadista de seu pai, gravadas em baixo relevo, no couro. Curvou-se e apanhou a bolsa pesada, apalpando-a.

—Onde encontrou essa bolsa? Perguntou com uma desconfiança traída por uma elevação da altura de sua voz. “É o dinheiro roubado de papai!” – pensou ela com horror.

Peter levou um choque. Pareceu que o chão fugia a seus pés, sua boca encheu-se de água, a cor do seu rosto passou por todos os matizes de um arco-íris. Seu coração martelava rápido como uma catraca destravada para baixar um peso. Um tanto nauseado lembrou-se da frase contida no seu protocolo de fuga, mas ela não lhe saia da boca. “Encontrara aquela bolsa no compartimento do toalete do trem e sequer tinha a chave do seu cadeado.”

Mas essa explicação, que guardava para uma situação extrema como a que agora enfrentava, lhe pareceu uma mentira boa para a polícia, mas não serviria para Lucila, bem mais inteligente, sem dúvida, que um soldado do destacamento local ou um anspeçada da guarda municipal. Fez-se silêncio entre eles.

Peter recobrou domínio da situação ao lembrar-se que o conteúdo da bolsa era apenas o complemento. O valor principal ele escondera no fundo falso da mala. Então, confiado e incisivo, disse que alguém esquecera aquela bolsa no toalete do trem e ele a encontrara. Ninguém havia voltado procurando por ela.

—Você já sabe o que tem dentro? – perguntou Lucila.

—Não faço a menor ideia.

—Então vamos abri-la. Tem a chave?.

—Não. O dono é que tem a chave.

—Temos que rasgá-la.

—Não faça isso. Em vou achar um modo de rodar a lingueta da fechadura e abri-la sem nenhum dano. Ao jantar lhe entregarei a bolsa aberta.

Sua mentira foi dita de modo tão convincente que Lucila a aceitou como verdade embora seu belo rosto se tornasse sombrio.

Regressando ao seu quarto na ala dos hóspedes Peter felicitou-se por haver previsto aquela situação. Estava tranquilo. Substituiria o conteúdo da bolsa e depois alegaria não ter conseguido abri-la. Então rasgaria a lona da bolsa na presença da namorada, para que visse que não havia dinheiro, somente artigos de uso pessoal. Diria a Lucila que as iniciais gravadas no couro com certeza eram apenas uma coincidência. Meteu a mão no bolso traseiro da calça, onde guardava a chave. Não a encontrou. Novo susto. Lembrou-se que havia mandado para a lavanderia a calça usada na escalada da montanha. Decidiu ir à lavanderia do Santuário indagar das mulheres se haviam encontrado a chave em um de seus bolsos. Sem resultado. Não haviam encontrado. Teria que tentar de fato abrir o cadeado com o auxílio de uma agulha grossa ou um pedaço de arame e isto só poderia fazer no dia seguinte, passando pela carpintaria.

Ao jantar, desculpou-se com Lucila por não ter conseguido abrir a fechadura da sacola. Conversaram pouco, e Lucila pediu, polidamente, permissão para retirar-se para o seu quarto, alegando desejar descansar. Os demais hóspedes se dirigiram para o terraço, para verem os lobos guará subirem para comer o que o Irmão Zefinho lhes havia preparado.

Na manhã seguinte, ao café, Peter não apareceu. Lucila havia decidido não colocar a mãe a par dos acontecimentos mas, ainda que não abordasse diretamente o seu problema, seria um conforto conversar com ela. Dispensou a enfermeira de acompanhá-las e saíram para caminhar pelas proximidades do prédio.

Haviam dado poucos passos, quando uma das lavadeiras do Santuário viu-as e veio falar com Lucila.

—Ontem Peter me perguntou se eu havia achado uma chave nos bolsos das calças que deixou para lavar. Hoje a encontrei na mesa de passar a ferro, acho que estava na bainha da calça dele. Enquanto vocês tomavam café, fui ao quarto dele me certificar de que a chave era realmente dele. A chave não abriu a mala, mas abriu o cadeado de uma bolsa vazia, guardada debaixo da cama. Avise a ele que deixei a chave sobre a mesinha. – A mulher sabia que namoravam.

—Não é necessário avisá-lo… Ele a encontrará, com certeza – respondeu Lucila empalidecendo. “Ele havia dito que só o ladrão teria a chave da bolsa!” – lembrou-se Lucila chocada. “Então o ladrão é ele mesmo. Ladrão e mentiroso”. Ficou revoltada porque lhe dedicara seu amor e recebera dele muitas promessas. Já se consideravam noivos!

Continuando a caminhada ao sol, de braços com a mãe, buscou raciocinar com frieza. Contar tudo para a mãe estava fora de cogitação. Devido à sua saúde, era necessário mantê-la ignorante dos fatos.

Se fosse devolver a bolsa, seria para o pai, quando chegassem em casa. Mas não poderia mentir para ele, e se contasse a ele toda a verdade, poderia perder todas as esperanças de que ele um dia aceitasse Peter na família. Não haveria como explicar a posse da bolsa, sem incriminar Peter. O mesmo aconteceria se confiasse toda história aos irmãos Junior e Letícia, que àquela hora ainda dormiam. E quanto ao próprio Peter? Abandoná-lo ou buscar endireitá-lo com uma orientação moral e religiosa, como dever de caridade, a fim de que ele nunca mais roubasse? Não sabia a medida de sua responsabilidade com alguém que ainda mal conhecia. Sua mente estava perturbada, nenhuma ideia era mais que um beco sem saída.

A mãe desejou entrar na igreja. A ideia agradou Lucila. Em situações graves, quando se sentia inteiramente incapaz de encontrar uma solução, ela sempre entregara o problema a Maria, Mãe de Jesus, para que Ela lhe apontasse o caminho.

Após uma curta prece, deixaram o templo.

—O reitor é uma pessoa muito inteligente… – disse a mãe. Seus sapatos chutavam pedrinhas a cada passo, enquanto caminhavam.

As palavras da mãe lhe permitiram desapegar-se dos pensamentos que a martirizavam.

—Tenho visto a senhora conversar muito com ele.

—Tenho alguns problemas muito íntimos e não imaginei que teria essa oportunidade de discuti-los com uma pessoa lúcida e de confiança. Ele estudou em Roma e tem o título de camareiro do Papa. Se alguma coisa a aflige, converse com ele.

Ambas continuaram a caminhar ao sol da manhã, luminoso porém quase incapaz de afastar totalmente o frio e as tiras de neblina que ainda resistiam sobre os vales.

*

—Você o ama muito, não é? – perguntou o Reitor.

Ela não se acanhou em responder:

—Desesperadamente, padre.

—E ele também a ama?

—Tenho certeza!

—As coisas que aconteceram podem não ser o que você pensa. Espere algum tempo, para ter certeza de tudo.

—E quanto ao dinheiro? Devo calar-me? Se eu pedir que o devolva à firma, o meu pai vai pedir à polícia que esclareça a situação. Se confirmarem que Peter é o ladrão, nem meu pai nem a família concordarão com nosso casamento.

—Tenha uma conversa franca com Peter. Diga-lhe para lhe entregar o dinheiro que você suspeita estava contido na bolsa.

O reitor deixou a cadeira e se aproximou da estante rústica, com as prateleiras cedendo ao peso dos livros que gostava de ter à mão: seu breviário, uma pesada bíblia, folhetos de missas especiais para certas festividades, o regimento dos Lazaristas e um maço de revistas católicas de variados tamanhos e espessuras. Apanhou uma delas e leu para Lucila algumas linhas de um artigo. “Qualquer dívida que um herdeiro tenha com o falecido, será considerada antecipação de herança.”

—Você pode ficar com esse dinheiro, se o considerar uma antecipação de herança e confessar a dívida aos irmãos na ocasião da partilha dos bens de seus pais.– concluiu o reitor.

Com grande alívio e alegria Lucila, saiu a procura de Peter. Mas nem o Irmão Zefinho, nem as arrumadeiras, nem as duas cozinheiras, nem o carpinteiro, e nenhum dos outros dois Irmãos que viviam no Santuário o haviam visto. Molenga, que se sentia sem dono, passou a acompanhá-la. Já temerosa, foi bater à porta do quarto do namorado. Ninguém respondeu.

Peter não apareceu para jantar.

Após o café do dia seguinte, sem Peter, Lucila caminhou sozinha até o tanque Banho do Imperador. Tinha tão doces recordações daquela tarde passada ali com Peter, que esperava fosse um lenitivo para a sua alma rever o pequeno lago. Sentia que o seu estado de espírito naquele momento era comparável à terrível “noite escura do espírito” em que estivera mergulhada Santa Teresinha do Menino Jesus, quando duvidou de tudo, e não havia nada nem ninguém que lhe desse segurança quanto à direção da sua vida. “Esta é a perigosa angústia da vigília, quanto se está à espera de um milagre.” – pensou, deprimida.

Sua irmã e seu irmão apesar de condoídos com a situação, não disseram palavra.

O Reitor autorizou o carpinteiro a abrir a porta do quarto de Peter. Havia roupas nos cabides do armário, seus apetrechos de toalete inclusive sua navalha de barbear, seus chinelos, etc. Para ela, ele fora embora levando apenas um pacote de dinheiro, e deixou tudo para trás a fim de sair sem levantar suspeitas.

Extremamente desolada e envergonhada por ter sido abandonada, Lucila recolheu-se ao seu quarto, chorando inconsolavelmente. Humilhada, não foi ao refeitório e não aceitou que a enfermeira lhe trouxesse um lanche para comer no quarto.

Mas a alegria voltaria a aquecer o seu coração.

Na Vila, depois de efetuar o depósito do dinheiro no Banco, Peter procurou pelo guia Nonô e retornou em sua caminhonete ao Santuário. Foi recebido por seu cão, que festejou sua volta com agitação da cauda, latidos e rodeios. Apressado, não deu atenção maior ao cão, e afastou-se rápido, depois de pagar o transporte. O cão hesitou em segui-lo, e olhava alternadamente para ele, que caminhava a passos largos pela varanda, e para o guia que dava partida ao motor. Então, como se ressentido com a falta de atenção e carinho de seu dono nos últimos dias, Molenga pôs-se a latir com força para o guia. Nonô abriu-lhe a porta da caminhonete, e o cão pulou para o assento ao seu lado, como se acabasse de elegê-lo seu novo dono. Mas, nervoso e indeciso, tentou saltar para fora do carro pela janela, mas foi seguro pelo guia, que o fez aquietar-se coçando-lhe as orelhas carinhosamente.

*

A enfermeira de sua mãe bateu à porta do quarto de Lucila, e prevendo que ela não abriria devido ao estado em que estava, anunciou de fora, em voz alta, colando-se à porta: —Peter voltou!

—Onde ele está? – perguntou Lucila saltando da cama. Correu à pequena pia de louça branca, banhou o rosto e, diante do espelho, ajeitou rapidamente os cabelos.

—Está na varanda do refeitório. Pediu-me para chamá-la. Está esperando você.

“Obrigada, Mãe de Jesus” orou Lucila – pela segunda vez naquela semana –, caminhando quase a correr para encontrar o namorado. Encontrou-o já no terraço, à porta da ala de hospedagem, e repreendeu-o severamente:

—Querido, por que você sumiu sem me dizer nada? Onde foi? Não estava aqui ontem.
Peter abraçou-a com força colando seu rosto ao dela, sentindo o calor de sua face congestionada pelo choro.

—Eu quis devolver o dinheiro que trouxe comigo e pertencia à firma de seu pai. Um hóspede que estava de saída me levou em seu carro até Cocais. Lá, fui à Agência Bancária e depositei em seu nome não apenas a importância que estava na bolsa, mas também a quantia principal, que guardava em um fundo falso na minha mala. Passe na agência em Cocais, e assine a ficha com o gerente. Compreenda! Eu quero ser digno de você, ainda que você desfaça o nosso noivado… Não está mais olhando para um ladrão – concluiu com amargo arrependimento.

Peter tirou do bolso interno do paletó o recibo do depósito e recomendou-lhe:

—Guarde-o com cuidado e vá ao banco o mais breve possível. Transfira o dinheiro para a conta da Vicente Soares – Atacadista.

Ela primeiro ficou paralisada com sua confissão – do que para ela já era evidente –, mas logo voltou a cobrir de beijos o seu rosto e, com voz carinhosa e firme, disse-lhe:

—Não precisamos devolver nada. Se você abriu com aquele dinheiro uma conta para mim, ele passa a ser meu, como uma antecipação da herança de meu pai. Oportunamente informarei meus irmãos sobre isso. Vou deixar a importância na agencia aqui mesmo, e nós voltaremos para buscar alguma parte dela, sempre que precisarmos. Em pouco tempo teremos filhos crescidos que vão adorar passear por estas montanhas formosas e por estes vales maravilhosos.

Deram-se as mãos e foram juntar-se aos demais hóspedes, para o café da tarde, no refeitório.

*

Peter, depois de fazer os rendimentos da empresa duplicarem, e de construir um moderno edifício para sua nova Sede, tinha um novo projeto em mente. Estava negociando a aquisição de uma tecelagem, para que a Vicente Soares- Atacadista vendesse tecidos de sua própria fabricação. Sabia que teria que enfrentar a costumeira oposição do cunhado que, apesar de ocupado com seu próprio negócio de grandes academias de ginástica, parecia ter um ressentimento pelo fato de Peter ser o Diretor Geral da firma, e não ele, Junior, herdeiro legítimo e de mesmo nome que seu pai. E, para tornar a situação ainda mais delicada, Junior tinha uma procuração de sua irmã Letícia para votar por ela. A cunhada estava sempre ausente, viajando com amigos para algum quadrante da terra onde pudessem escalar uma montanha.

Peter tinha certeza de que Lucila confiaria no sucesso do negócio porque – lembrou-se sorrindo para si mesmo – ela dizia que tudo o que confiava à Mãe de Jesus resultava em um milagre. “Talvez fosse tempo de ele analisar a Fé de sua mulher pelos seus bons resultados – pensou – e não pela Lógica que a condenava como irracional”.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 28-07-2015.

Após ler este conto (número 16) envie, por gentileza,

uma nota de 0 a 9 através do CONTATO. O conto melhor

avaliado, desejo transformar em um romance. Obrigado!

Direitos reservados.
Para citar este texto da Internet: Cobra, Rubem Q. – O Cão de Siegfried. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2015.