Hoje: 23-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Ela morava em um pequeno prédio de apartamentos construído pela família Savassi: local histórico pois, na contra-esquina desse prédio, na rua Tupinambás, existiu, em outros tempos, a Nova Capital, padaria do pioneiro italiano Arthur Savassi.
Era datilógrafa no Gabinete de Murilo Eugênio Rubião, diretor da potente Rádio Inconfidência, emissora do Estado instalada nos altos de uma majestosa torre envidraçada, cujas alas laterais faziam-na parecer uma águia pousada a olhar, vigilante, toda a cidade. Morena, de aspecto recatado e atenta ao seu trabalho, batia à maquina em uma mesinha baixa, na antessala do Diretor, próxima ao console onde um rádio antigo irradiava sempre a própria emissora oficial.
Era inimaginável, mas aconteceu que eu, um estreante que escrevia dois pequenos programas para a Rádio – o que me valia o título de “produtor” –, concorresse com o ilustre Rubião – reverenciado ícone da literatura mineira, que mal sabia da minha existência – ao amor da mesma mulher! Porém, deveria eu calar essas memórias, em respeito às pessoas mais importantes envolvidas nelas? Não concordo. Elas são legitimamente minhas e legítimo o meu direito de citar a qualquer um que tenha atravessado o meu caminho.
A vez que nos falamos foi em uma certa tarde, na discoteca, um andar abaixo. Não esperava encontrá-la ali. Só os produtores iam lá escolher músicas para suas produções. Naquele momento, o discotecário tinha um roteiro na mão e separava discos para algum programa, e ela ouvia e solfejava baixinho um bolero, movendo levemente o corpo no seu ritmo. Tomei-a para dançar e ela não se opôs, sorrindo pelo meu atrevimento brincalhão. Mas era uma música romântica, e a dança, começada meio como troça, tornou-se séria e rapidamente fui me dando conta do tesouro que estava em meus braços.
Seu rosto tinha um tipo de beleza que parecia incluir também traços de uma fascinante estética interior. Decidi, naquele mesmo instante, que estava apaixonado, e conquistá-la foi decisão imediata de uma parte cega e obstinada do meu ser pouco mais que adolescente. Essa decisão ela percebeu com certeza, porque mudei o ritmo de nossos passos e a puxei levemente mais para mim, num assomo de desejo.
Ainda enquanto dançávamos, nos apresentamos e fiquei sabendo o seu nome. Confiadamente, convidei-a para ir comigo ao Clube de Cinema, no sábado à noite. Ela aceitou com um aceno simpático e promissor. Entendi seu assentimento como um selo de autenticação de realidade, colado ao sonho que nascera segundos atrás. Deixou-me e subiu apressada para o Gabinete.
Lembro-me de ir até à janela, emocionado. Ao sol da tarde, minúsculos transeuntes cruzavam a praça movimentada, sobre a qual a torre projetava sua sombra pontiaguda. A vertigem da altura subitamente pareceu-me uma advertência! Estaria eu sonhando alto demais?
Chegavam sons um pouco remotos de buzinas e motores. Pela avenida que partia da praça ao pé da torre, corriam bondes e carros de aluguel entre fícus aparados como cubos emendados. A via, reta e ampla, parecia infinita, mas, alçando-se, distante, perdia força contra as vertentes azuis da serra. Quem a projetara a deixara inacabada, frente ao obstáculo.
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O Centro de Estudos Cinematográficos ocupava, nos sábados à noite, a pequena biblioteca do Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, situado na confluência da rua Goiás com a Av. João Pinheiro. Quando chegamos, dei ciência ao Raimundo de que trouxera uma convidada minha. Era ele quem organizava o programa. De rosto comprido, tinha uns olhos grandes e tristes, um jeito de ressentido, talvez por ter que fazer tudo só, além do seu trabalho diário como empregado em uma loja na Avenida Santos Dumont. O pequeno projetor era emprestado pelo cineasta Mário Lúcio Brandão. Havia mais uma dúzia de rapazes, dois ou três acompanhados de namoradas ou jovens esposas. Não apresentei minha amiga a ninguém, por puro temor de que um outro pudesse seduzi-la. Por isso não houve cumprimentos, mas apenas acenos e sorrisos à distância, e ficamos isolados, que era como eu desejava. Com apaixonada ternura, eu segurava sua mão – sem perturbar seu interesse pelo filme.
Após a sessão, já tarde, caminhamos pela beira do Parque, para gozar o frescor da noite sob as luzes na calçada iluminada da Avenida Afonso Pena. Havia um banco de jardim, rodeado de relva e arbustos, em um segmento recuado de uma longa grade de ferro trabalhado. Sentamo-nos ali, bem juntos. Era como se o parque nos oferecesse aquele recanto, à frente de suas árvores altas e negras, que assistiam quietamente aquele instante de tão doce intimidade. Pobre de mim! Não sabia que um momento como aquele não se repetiria mais.
Na avenida os carros eram poucos e apenas um ou outro passante caminhava pela ampla calçada à nossa frente, evitando, por educada discrição, nos observar.
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Ela me confidenciou que desejava visitar um conterrâneo doente, que viera se tratar na cidade, e porque desejasse trocar o vestido, fomos ao seu apartamento. Fora inteligente, de sua parte, escolher morar bem próximo do seu trabalho.
Sem querer, do extremo do sofá em que estava sentado na sala, podia vê-la, através do corredor, frente ao espelho do seu guarda roupa. Fazia com a saia estampada e larga um gesto gracioso – parecido à mesura diante de um príncipe –, para ver se lhe caia bem o conjunto que pretendia usar.
Um pequeno bonde nos levou por avenidas largas e fartamente arborizadas até o bairro dos Funcionários. Seu amigo estava em um Sanatório para tuberculosos, na vizinhança dos principais hospitais da cidade. Era uma casa antiga com seus janelões inteiramente abertos, para ventilar bem a grande sala transformada em enfermaria. Havia várias camas e, na terceira ou quarta delas, um homem de pijamas, magro mas nem por isso com ares de doente, agitou-se ao vê-la entrar. Era evidente sua alegria em receber aquela visita. Não sei o que conversaram, pois me deixei ficar para trás, ao pé da cama de outro paciente, que dormia. A visita foi breve. Após despedir-se dele, voltou em minha direção e saímos.
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Na tarde seguinte passei pela Rádio, ansioso por vê-la. Na antessala, junto dela, ambos de pé, havia um homem de meia idade, vestido com um terno bem talhado, aparentando ser pessoa de fino trato. Era alguém que viera ali para visitá-la, e não para falar com Rubião. Mas parece que minha entrada, por algum motivo, apressou sua saída.
Depois que ele se foi, ela comentou com indisfarçável felicidade e brilho nos olhos, como se houvesse recebido dele uma proposta de casamento:
— É um homem extraordinário, um fundador de cidades no interior de Goiás – disse. E logo indagou se eu gostaria de assistir a uma palestra naquela noite. Aceitei um pouco a contragosto, supondo que o conferencista seria aquele visitante que acabara de lhe despertar tanta emoção.
*
Era um encontro secreto na garagem de uma casa às escuras, cujos donos estavam viajando. Um prévio trabalho de sabotagem queimara a luz do poste da rua, frente ao portão. Ela me explicou que as pessoas chegariam a espaços, para não serem notadas, e cronometrou nossa entrada, pelo jardim escuro, até a garagem cuja porta foi depois trancada. A iluminação em seu interior era mínima.
O palestrante não era o Fundador-de-cidades. Porém… Estava eu certo? Pareceu-me ser aquele estudante de medicina que eu havia visto pouco tempo antes, conduzindo um grupo de calouros, tangendo-os rua do Espírito Santo abaixo, na lateral da Igreja de São José, na confluência com a Avenida Afonso Pena. Gritava-lhes palavras de ordem que soavam como chicotadas. O trote imposto aos novatos fora o de vestirem sacos, e cada um levar um urinol com urina e fezes, agitá-lo e mostrar o que continha aos passantes e curiosos parados na calçada. Essa lembrança me preveniu para ouvir uma palestra com um conteúdo semelhante ao dos urinóis. Com grande autoridade o conferencista propôs o tema ”Os Estados Unidos invadiriam o Brasil se a revolução comunista brasileira saísse vitoriosa?”
Após a exposição feita pelo futuro médico, falou uma universitária de fala atrevida e voz estridente, em perigo de atrair a atenção de algum passante na rua. Com seu discurso irritado, parecia estar no comando de um batalhão feminino de recrutas.
— As mulheres comunistas são servidoras do povo, são fiéis e disciplinados soldados do nosso glorioso Partido! – proclamou. — A luta pelo congelamento de preços é o elo capaz de unir o movimento das donas de casa à luta das operárias e camponesas contra o latifúndio, a burguesia reacionária, e os lacaios do imperialismo americano – disse.
Aqueles eram slogans criados pelo Comitê Central do Partido Comunista Soviético para serem repetidos à exaustão na lavagem cerebral de pessoas ignorantes e ingênuas.
Enquanto a comunista, no auge da sua iracunda diatribe, pregava que devíamos “desmascarar sem cessar os planos agressivos do imperialismo norte-americano” eu me pus a refletir sobre minha querida amiga. Olhei demoradamente o perfil do seu rosto, com um sentimento misto de carinho, incompreensão, e pesar. Eu a tinha por tão inteligente quanto bela, e não podia aceitar que estivesse metida em encontros furtivos como aquele. Porque estava ela tão atenta e embevecida ouvindo aquelas bobagens?
Eu admirava sua generosidade, capaz de visitar doentes até com risco de se contaminar com seus males. O seu coração sensível tinha que sofrer vendo a miséria do povo, principalmente nas vastas regiões pobres do país. Então, na sua inocência, estava convencida de que a revolução comunista seria um glorioso caminho para o progresso. Todas as frentes de comando seriam entregues aos operários, e fuzilados sem piedade os fazendeiros, banqueiros, industriais – todos eles “lacaios do imperialismo americano”.
Por que ela e outras pessoas que desejavam o bem do povo, não se organizavam em torno de ideias mais sensatas?
Eu nunca soubera haver o estudante brasileiro, em qualquer época, exigido do governo, com a veemência do clamor das ruas, a execução de um único projeto para o desenvolvimento do país. O slogan comunista que os estudantes de passeata gritavam, “O petróleo é nosso!”, não era por uma indústria mas sim um recado que davam aos americanos, taxados de mentirosos por afirmarem que petróleo no Brasil, só se fosse nas profundezas do mar, inexploráveis com a tecnologia da época.
Não havia nem movimentos nem organizações reclamando pela transposição das águas do São Francisco, pela construção de mais hidroelétricas, ou por uma ferrovia Norte-Sul, por fábricas de caminhões, automóveis e ônibus… – ou até, quem sabe, pela negociação diplomática de uma ligação com um porto no Pacífico. Se os latifúndios sem valor recebessem serviços que os valorizassem – pensei –, com certeza seriam loteados e suas frações vendidas a verdadeiros agricultores.
Quando foi a nossa vez de sair, com as luzes apagadas, sob o céu estrelado, pisando de leve o caminho do jardim, vi a brasa vermelha de um cigarro iluminar fugazmente um rosto, do outro lado da rua escura e silenciosa, como um sinal de advertência.
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Desde a visita do Fundador-de-cidades seu comportamento comigo havia mudado. Pensei que uns dias sem me ver pudessem, de alguma maneira, revitalizar seu interesse por mim, o que traria de volta a tranquila felicidade dos primeiros dias.
Eu fazia testes vocacionais no SOSP, para a escolha de qual curso universitário seguiria. Havia também recebido um novo livro enviado por Oscar Nicolai, o mais simpático livreiro da cidade, e de quem eu talvez fosse o mais jovem freguês com cadastro em sua livraria. Isto me ajudou a fingir aquele desligamento. Quando novamente a encontrei, convidou-me para outro encontro noturno que, por coincidência, aconteceria na mesma noite. Desta vez era para ouvir músicas soviéticas na casa de um comunista que acabara de chegar clandestinamente de Moscou.
Em outra situação, eu lhe teria feito algumas ponderações e proposto outro programa. Mas, profundamente inseguro e temendo que nosso relacionamento caminhasse para ser simples amizade, ou que pudesse perdê-la completamente, aceitei. O convite serviu para me sentir curado da minha cisma e novamente confiante. Parecia que tudo voltaria a ser como fora nas primeiras semanas.
Como na outra reunião, o ambiente também era mal iluminado, não porque se pretendesse um clima romântico adequado às músicas, mas para não chamar a atenção de curiosos para o sarau musical. Mal se podiam ver as feições dos convidados. A luz de um abajur vermelho criava máscaras rosadas sobre os rostos de quem se aproximava, e deixava quase na escuridão, reduzidos a silhuetas marrons, os que se afastavam dela. Hinos cantados em voz robusta por coros de operários soviéticos saiam em som muito baixo dos discos de rotação lenta e bamboleante, rodados em uma radiola antiga. O recém chegado viajante, também provido da sua máscara colorida, fazia traduções de alguns trechos e dava explicações sobre o poderio soviético. Foi servido um copo de refresco a cada convidado.
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Frustrou-se a minha esperança de que naquele encontro sua atitude para comigo mudaria. Eu precisava esclarecer de vez a situação. Não ia esperar vê-la de mãos dadas com o Fundador-de-cidades para me convencer de que havia algo entre eles. Decidi ir ao seu apartamento, logo após o expediente. Pretendia confessar-lhe com toda sinceridade os meus sentimentos e ter uma resposta sua que me desse esperança, ou me desiludisse de vez. Recebeu-me com visível constrangimento. Sentei-me com ela no sofá… mas não tinha coragem de colocar a questão. Agora desejava simplesmente estar ali junto dela, pois já me via de antemão derrotado.
Vendo-me daquele jeito, paralítico e estuporado, ela voltou-se para mim e disse, como se prestasse uma ajuda caridosa:
— Venha, vou levá-lo até à porta ou você não irá embora. Pôs-se de pé e eu a acompanhei, sem ousar protestar ou me desculpar, dizer qualquer coisa. Levei um tapinha amigo nas costas e a porta se fechou atrás de mim.
Expulso, humilhado, e inconformado, aguardei o elevador de grades de ferro que desceu do nicho escuro do último andar com um zumbido cavo e um chacoalhar de correntes, parando onde eu estava, com sua luz mortiça já acesa.
Deixei o prédio aturdido. Não conseguia tomar nenhuma direção. Cruzei a Avenida Paraná. Perambulei até a esquina com a Rua dos Carijós, onde havia um bar. Uma conhecida prostituta que tinha bonitas pernas trabalhava ali, e naquele momento recolhia umas caixas de maçãs, expostas na calçada durante o dia, entre duas portas no ângulo da esquina. Senti-me inferior a ela que era livre, desconhecia a vergonha, e era inatingível pela paixão! Ao mesmo tempo me invadia um ódio atroz por todas as mulheres. Pensei em tomar uma bebida, mas mudei de ideia.
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Eu não conseguia me livrar da figura do Fundador-de-cidades, apesar de nunca mais tê-lo visto. Desconfiado, voltei à Tupinambás e me postei na calçada fronteira ao apartamento dela. Estava decidido a ficar ali por toda a noite, vigiando sua janela no primeiro andar, pois agigantara-se o meu ciúme contra o meu rival oculto.
Apesar de a noite vir caindo, a luz da sua sala ainda estava apagada. Mas pude ver – o que me aguçou a curiosidade e aprofundou meu ressentimento –, a cabeça de um homem sentado de costas para a janela, no mesmo sofá onde eu estivera pouco antes ao seu lado. Nesse momento parou um bonde, impedindo minha visão. Mesmo subindo um degrau alto, à porta de uma loja fechada, não conseguia ver. E o bonde, com todas as suas luzes acesas, seus passageiros cansados e silenciosos, não se movia; para prosseguir, aguardava que se apagasse o sinal afixado ao poste. O cobrador, de pé no estribo, conversava longamente com o motorneiro. E eu, sem achar um ângulo que me permitisse ver, fazia doloridas conjecturas. Quem seria que estava lá? O Fundador-de-cidades – pensei. Mas não era.
Quando o bonde finalmente se moveu, a luz da sala estava acesa. Havia, de fato, uma visita. Via-se uma cabeça calva que tinha algo de familiar. Então notei o carro do Diretor da Rádio – a porta aberta, o motorista sentado descansadamente com as pernas para a calçada – estacionado pouco antes da esquina do prédio, frente à fachada que dava para a avenida. Quem estava no apartamento com ela era Murilo Rubião!
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Não iria vê-la no dia seguinte. Passaria, porém, por mais uma vergonha.
O Professor Pedro Parafita de Bessa, muito meticuloso na avaliação dos jovens, encaminhava cada um a exame médico, atento a quais profissões o físico de cada um melhor se adaptaria. Eu devia comparecer aquela manhã ao dispensário do Instituto de Educação – a antiga Escola Normal. Não suspeitei que a minha entrada na sala do médico tivesse sido notada por algumas alunas. Juntaram-se silenciosas na ante-sala do consultório. E o médico, enquanto me examinava e apalpava, fazia-me perguntas as mais embaraçosas.
Quando saí, dei com a antessala cheia de adolescentes de saias escuras, blusas brancas e gravatinhas azuis, a cochichar e rir gostosamente. Acreditei, instantaneamente, que tivessem visto e ouvido tudo, através da alta porta de duas folhas, desconjuntada e cheia de frestas, ou pelo largo buraco da sua fechadura antiga. Com o rosto em fogo e de cabeça baixa, não encarei nenhuma delas.
À tarde estava no SOSP, em um prédio baixo ao fundo do Instituto, sentado à mesa rústica em que fazia os testes.
Desalentado com os meus reveses, eu tinha os olhos na porta fechada do escritório do Professor Pedro Parafita. Se eu fosse até a sua sala, ele me receberia com aquele seu sorriso de olhos apertados, as sobrancelhas erguidas e arqueadas, e certamente me ajudaria de algum modo – pensei.
Curiosamente, naquele instante me lembrei do Padre Cristiano, diretor espiritual no Internato. Ele caminhava santamente de mãos postas, os olhos levantados para o teto, como se estivesse a ver o Céu e não simplesmente telhas. Tinha uma sala ao final da varanda, onde recebia os alunos para conversar, ouvir suas confissões, sarar suas almas miúdas e irrequietas. Media seus pecadilhos na escala bruta de simples escrúpulos a pecados de excomunhão, passando pelos veniais e mortais.
Mas, porque razão me ocorria aquela lembrança? As ideias não estão ligadas umas às outras em associações preexistentes de significados – teorizei. Ao contrário, flutuam livremente e precisam de um sentimento aglutinador que lhes seja comum, para que se apresentem juntas, ou uma em substituição à outra. No caso, esse aglutinador fora a minha imensa angústia. Por isso é sempre um sentimento que determina o comportamento e uma paixão pode ser responsável pelos piores desatinos.
Quase como um susto, dei-me conta da senhora que me aplicava os testes. Estava ao lado da mesa, talvez se perguntando o porquê da minha desatenção. Explicou-me que o teste seguinte seria um desenho livre: “Você tem essa folha de papel e pode fazer o desenho que quiser” – disse.
Isto piorou o meu estado! Imediatamente vi o rosto dela na folha em branco. Como não havia espaço para mais vergonha, e sem me importar com os péssimos resultados que os testes pudessem mostrar, pus-me a desenhar apaixonadamente, sem dificuldade, aquele rosto de linhas retas, cartesiano, simples porém sedutor. Mas gastei muita borracha até conseguir dar aos seus olhos aquela expressão perdida, meditativa, que na verdade era o que espalhava mistério e beleza em suas feições.
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Pouco tempo depois aconteceu o almoço de confraternização dos funcionários, produtores e artistas da Rádio Inconfidência.
Ao centro da mesa estava Rubião, com ela sentada à sua esquerda. De peito inflado, com um cotovelo sobre a mesa, voltava-se, o quanto podia se torcer, para dar a ela carinhosa atenção, pondo-se de costas para a sua convidada de honra oficial, sentada, constrangida e muda, à sua direita. Ela, no entanto, não lhe retribuía o olhar. Pensativa, tinha os olhos postos em algo que revolvia nervosamente entre os dedos, sobre a mesa, além do seu prato. Eu bem sabia em quem ela pensava! O que estava ao seu lado, tão solícito, não era o escolhido dos três!
Mordido de raiva decidi, por vingança, ignorá-la a partir daquele momento. E, forjando o desprezo necessário para reforçar essa decisão, completei para mim mesmo, cruelmente: “Afinal, era apenas um rosto quadrado – como que feito aos talhos –, com um nariz pontudo! Quando passasse por ela, haveria de fingir não vê-la!”
É assim que apareço na foto que possuo daquele almoço: olhando em outra direção.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 07-09-2009.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Escolhido dos Três. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2009.