Motivação e Comportamento em Aristóteles

Hoje: 03-12-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Aristóteles diz coisas sobre a qualidade moral das ações humanas o bastante para extrairmos dele uma teoria do comportamento, apesar do próprio filósofo não haver apresentado suas idéias sob essa forma.

No primeiro livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles se pergunta qual o bem cuja busca é a motivação fundamental do comportamento humano. Apesar de filósofo, ele não parte de deduções filosóficas, mas da opinião que as pessoas têm sobre qual a finalidade que as atrai naquilo que fazem. E revela: “Em palavras, o acordo quanto a este ponto é quase geral; tanto a maioria dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este bem supremo é a felicidade, e consideram que viver bem e ir bem (ser bem sucedido) equivale a ser feliz” (Et. a Nic., Cp. I, 4, 1095 a; o parênteses é nosso.

O que será, então, para essas pessoas mais qualificadas, viver bem ou “ir bem”? Diz Aristóteles, dos indivíduos mais qualificados, que estes “parecem perseguir as honrarias com vistas ao reconhecimento de seus méritos; ao menos eles procuram ser honrados por pessoas de discernimento, e entre aquelas que os conhecem, e com fundamento em sua própria excelência (Et. a Nic., Cp. I, 5, 1096 a). E mais adiante: “Na realidade, são nossas atividades conformes à excelência que nos levam à felicidade, e as atividades contrárias nos levam à situação oposta” (idem, 10, 1100 a/b. Vide também neste Site Maturidade).

Passemos ao De Anima, Livros I, II e III. Este é um tratado referente às funções da alma. Para Aristóteles, a alma mais simples é própria dos vegetais. Ela é fundamentalmente “vegetativa”, no sentido de que suas funções principais são a nutritiva e a reprodutiva. Mas é nos animais dotados de movimento que estas funções se traduzem em comportamentos.

Os animais têm na alma faculdades outras além daquelas próprias da alma vegetativa, pois se movimentam e buscam objetos que desejam, ou fogem do que lhes assusta. Possuem almas sensitivas que somam funções da alma vegetativa às funções que lhes são próprias, como animais, e que não existem nos vegetais. Entre as ocupações que se vinculam à alma sensitiva dos animais está a busca do prazer. Mas, a alma humana é a mais completa de todas, e assim sendo, além das funções que encontramos nas almas dos vegetais e dos animais, tem mais uma outra, que é a função da racionalidade, de modo que o seu comportamento mais próprio e mais excelente seria aquele governado por essa última e mais alta função. Porém, diz Aristóteles, incisivamente: “A humanidade em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”.

Podemos, do que foi dito, concluir que o homem busca ser feliz, seja tanto diretamente no contacto e na posse de objetos de prazer, quanto por via transacional, em que recebe do outro o reconhecimento de sua excelência pessoal. No primeiro caso, busca a posse direta de objetos da sensualidade, na satisfação de necessidades vitais, incluído o objeto sexual, porém segundo uma conveniência racional. No segundo caso, podemos aproveitar a referência clara de Aristóteles às pessoas que procuram ser reconhecidas por seus méritos. E é fácil verificar que o homem também pode sentir-se feliz por estar bem, quando é ele próprio que se reconhece, ao buscar algo com que se premiar. Esse é um comportamento objetivo, no sentido de que lida com objetos, e que existem objetos com valor em si mesmos que podem ser buscados e consumidos no viver bem e no ser feliz de uma pessoa, sem envolvimento de alguém mais.

Há, portanto, um comportamento que é objetivo e outro que é transacional, e apesar de que possam ocorrer juntos em uma mesma emoção, o primeiro envolve sensações e o segundo envolve sentimentos em relação a si mesmo ou a pessoas.

Estamos, ainda, obrigados a reconhecer que os comportamentos de quaisquer das categorias acima, poderão, por sua vez, ser ativos, enquanto o indivíduo busca o objeto de seu desejo, ou passivos, enquanto recebe e usufrui o objeto conquistado ou com o qual eventualmente é presenteado, pois o homem pode ser reconhecido e louvado sem procurar por isso, apenas por obedecer a um ideal, e pode receber um objeto cuja posse o deixa feliz, sem ter buscado por ele.

Poderíamos chamar os comportamentos voltados para os objetivos mais primários de nutrição, defesa, ataque, e reprodução Comportamentos apetitivos-impulsivos. Pode-se dizer então que as funções vegetativas e sensitivas correspondem ao elemento irracional da alma humana. Porém, Aristóteles se apressa em esclarecer que esse elemento irracional, conquanto gere seus próprios comportamentos, pode também subordinar-se, em parte, à razão. É quando ele diz: “Seja como for, não devemos duvidar de que haja na alma um elemento além da razão (o elemento irracional), resistindo e opondo-se a ela” (a razão) … “Mas mesmo este elemento (que se opõe à razão) parece participar da razão, como dissemos; de qualquer forma, nas pessoas dotadas de continência ele obedece à razão, e presumivelmente ele é ainda mais obediente nas pessoas moderadas e valorosas, pois nestas ele fala, em todos os casos, em uníssono com a razão” (Et. a Nic., 1, 13, 1102, b).

Temos portanto uma nova categoria de comportamentos, quando a razão não fornece nenhum outro objetivo além daqueles objetos de prazer, porém se aplica em que sejam conseguidos de modo prudente, eficaz e seguro, e sobretudo leva ao seu acúmulo. Depois de Aristóteles viria a escola epicurista que, justamente, aplica a razão na busca do prazer. Comportamentos desse grupo seriam Comportamentos apetitivos-racionais.

Assim, Aristóteles dividiu o elemento irracional em dois, vegetativo (que aqui chamamos “apetitivo impulsivo”) e apetitivo (que chamamos “apetitivo racional”), um puramente impulsivo e o outro associado à razão. Porém, Aristóteles ressalta que a razão não se limita a esta ação intelectual de governo do apetite, mas é capaz de articular o pensamento moral.

Vimos acima que para Aristóteles, são nossas atividades conformes à excelência que nos levam à felicidade. Consequentemente, destas duas categorias diferentes de ação da razão, aquela que dirige o comportamento apetitivo e pode conduzi-lo inteligentemente para o prazer intelectual, e aquela que pode modera-lo com vistas a um outro nível de valores, os valores morais -, resultam duas formas de excelência racional: a excelência intelectual e a excelência moral. É exatamente o que o filósofo diz logo adiante: “A excelência também se diferencia em duas espécies, de acordo com esta subdivisão, pois dizemos que certas formas de excelência são intelectuais e outras são morais (a sabedoria, inteligência e o discernimento, por exemplo, são formas de excelência intelectual, e a liberalidade e a moderação, por exemplo, são formas de excelência moral)” (Et. a Nic., idem, 1103a). São o que chamaríamos comportamentos meta-apetivos.

EXEMPLOS:

A combinação em categorias, classes e modalidades dos vários tipos de comportamento dedutíveis da exposição contida no Livro I da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, nos dá 2 grupos, 3 categorias, cada uma com a respectiva classe transacional ou objetiva, totalizando 6 classes, e cada uma dessas classes com sua modalidade ativa e passiva, em um total de 12 modalidades, como abaixo:

Exemplos:

A – Grupo de comportamentos instintivos

I – Categoria dos apetitivos impulsivos

  1. Modalidade dos apetitivos impulsivos, objetivos, ativos. Toda essa classe de comportamentos objetivos tem seu motivo fundado em sensações, e visa objetos físicos causadores de prazer, de modo desregrado: busca e posse direta de objetos da sensualidade na satisfação de necessidades vitais, incluído o objeto sexual. Busca indiscriminada de objetos substitutos dos alvos naturais de prazer, fumar, beber bebidas alcoólicas, usar drogas, etc.
  2. Modalidade dos apetitivos impulsivos, objetivos, passivos: aceitação, troca ou compra de carícias, entregar-se ao sono ou ao descanso
  3. Modalidade dos apetitivos impulsivos transacionais, ativos. Os comportamentos irracionais da classe transacional são fundados em sentimentos do indivíduo em relação a si mesmo ou aos outros: ações ditadas por orgulho, vaidade; defesa de exclusividade e propriedade, exercício desregrado do poder, submeter ou derrotar o outro; sadismo; castigo, vitória, vingança, assassinato, roubo e furto, afeição e gratidão naturais.

    São palavras de Maquiavel que em certas circunstâncias as ações levadas a efeito impulsivamente, têm mais probabilidades de resultarem em ganho que as ações racionalmente preparadas: “Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam” (Maquiavel, ed. 1948, p.131-132).

  4. Modalidade dos apetitivos impulsivos, transacionais, passivos: receber ajuda, socorro; renúncia, fuga. Ser sustentado, valer-se da sedução, conceder-se o ócio; viver sem compromissos, ser servido.

B – Grupo de comportamentos racionais

II – Categoria dos apetitivos racionais

  1. Modalidade dos apetitivos racionais, objetivos, ativos. Comportamentos influenciados pela razão, no sentido de eficiência em relação aos seus objetivos. Motivo fundado em sensações, visa objetos de prazer, porém de modo comedido, a bem do próprio prazer. São comportamentos segundo a máxima do epicurismo: comer e beber balanceadamente, observar regimes alimentares, selecionar e degustar, etc.
  2. Modalidade dos apetitivos racionais, objetivos, passivo: música, concertos, televisão, leituras, massagens, etc.
  3. Modalidade dos apetitivos racionais, transacionais, ativos: atividades astuciosas, disfarces, maquiavelismo, aplicação esmerada na destruição do inimigo, estratégia de guerra, articulação criadora ou destruidora. Racismo; esforço por um prêmio; derrotar o outro de modo astucioso; jogos e competições esportivas.

    Em seus célebres conselhos aos governantes, Maquiavel ressalta que, apesar de que seja louvável a um príncipe viver com integridade, contudo, os príncipes que souberam, pela astúcia, transtornar a cabeça dos homens, chegaram a muito melhor resultado administrativo que o obtido pelos príncipes que foram leais. Diz, no capítulo XVIII:

    “Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes, a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe toma-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem. Isto foi ensinado à socapa aos príncipes, pelos antigos escritores, que relatam o que aconteceu com Aquiles e outros príncipes antigos, entregues aos cuidados do centauro Quiron, que os educou. É que isso (ter um preceptor metade animal e metade homem) significa que o príncipe sabe empregar uma e outra natureza”.

    “Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão”

    “Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos”.

    “Mas é necessário disfarçar muito bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador. E tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana, sempre encontrará quem se deixe enganar” … “por exemplo: de um lado, parecer a ser efetivamente piedoso, fiel, humano, integro, religioso, e de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não o ser, tornar-se o contrário”.

    “Todos vêem o que tu pareces, mas poucos, o que és realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade do Estado” (Maquiavel, ed. 1948, p.94-97).

  4. Modalidade dos apetitivos racionais, transacionais, passivos: receber reconhecimento e aclamação receber provas de submissão a ordens, o ato de aceitação de poder ilegítimo que lhe seja conferido ou consideração decorrente de temor; reconhecimento recebido dos que o temem em decorrência de poder político ou poder econômico. Auto elogio, que Erasmo aconselha, pela boca da Loucura: “De fato, que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma?” … “Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo“. (Erasmo, ed. s/d., p.15)

    O escritor e filósofo alemão Nietzsche considera justo o comportamento ditado pelo egoísmo e diz: “Arriscando desagradar a ouvidos inocentes, eu digo que o egoísmo pertence à essência de uma alma nobre, quero dizer a crença inabalável de que a um ser como “nós”, os outros seres devem estar naturalmente sujeitos, e têm que se sacrificar. A alma nobre aceita o fato do seu egoísmo inquestionavelmente, e também sem consciência de rudeza, constrangimento ou arbitrariedade nesse particular, porém mais como alguma coisa que pode ter suas bases na lei primitiva das coisas – se ela procurasse uma designação para isso haveria de dizer “É a própria justiça”. (Nietzsche, 1997, § 265)

    III. Categoria dos meta-apetitivos

  5. Modalidade dos meta-apetitivos objetivos e ativos. Comportamentos motivados por interesse social e moral. Comportamento polido, “civilizado”; consciência e controle do comportamento impulsivo e apetitivo racional segundo prescrições de uma crítica moral: contrariar impulsos em relação a objetos de prazer; jejuar, criar símbolos, imagens, etc.
  6. Modalidade dos meta-apetitivos objetivos e passivos: sofrer prova de resistência relativa a um ideal; assumir riscos.
  7. Modalidade dos meta-apetitivos transacionais, ativos: ação e reação dirigida sobre pessoas ou no interesse de pessoas com a preocupação de justiça e honradez: campanhas, movimentos, obras assistenciais, arriscar a vida pelo outro.
  8. Modalidade dos meta-apetitivos transacionais, passivos: aceitar ser objeto de reconhecimento numa medida justa.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 02-09-1998.

Bibliografia:

Aristóteles – De Anima. Trad. J. A. Smith Bekker . Classics in the History of Psychology – An internet resource developed by Christopher D. Green, York University, Toronto, Ontario, 2001

” – Ética a Nicômaco. Trad. de . Ed. Univ. de Brasília, 1990

Erasmo de Roterdam – Elogio da Loucura. Trad. de Paulo M. Oliveira, 5a. edição, Atena Editora, São Paulo, s/d. 218 p.

Machiavelli, N. – O Príncipe. Trad. de Lívio Xavier. Atena Editora, São Paulo, 1948, 167 p.

Nietzsche, F. W. – “Beyond Good and Evil – Prelude to a Philosophy of the Future, trad. de Helen Zimmern. Dover Publications Inc., Mineola, NY, 1997, § 265)

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Comportamento em Aristóteles. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 1998.