Hoje: 23-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
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Introdução. Filósofo alemão que escreveu sua filosofia em linguagem altamente cifrada e, apesar de que o dizem dificilmente compreensível, é romanticamente cultuado por um grande número de admiradores de fragmentos poéticos do seu pensamento sobre o Ser. No entanto, ele próprio desistiu de suas idéias, preferindo não publicar o segundo volume de sua obra principal, “O Ser e o Tempo”. Fervoroso adepto do nazismo antes da derrota da Alemanha na segunda guerra mundial, para muitos foi um pensador original, um crítico da sociedade tecnológica do século XX. De sua obra ficou a designação de “Existencialismo” para a corrente de pensamento anti-determinista fundada por Kierkegaard, à qual se filiou. Foi um escritor prolixo: calcula-se que reunir tudo que escreveu daria uns 70 volumes.
Primeiros anos e juventude. Martin Heidegger nasceu a 26 de setembro de 1889 em Messkirch, na Schwarzwald (Floresta Negra), Alemanha, e faleceu em 26 de maio de 1976, na mesma Messkirch, então parte da Alemanha Ocidental. Seu pai foi um sacristão católico, incumbido das vestes e dos objetos sagrados, de tocar os sinos e também de cavar as sepulturas no interior do templo. Heidegger mostrou uma preocupação religiosa precoce e teve seu interesse despertado para a filosofia ainda ao tempo de seus estudos básicos, através da leitura do filósofo católico do final do século XIX Franz Brentano. Impressionou-o a psicologia “descritiva “, como é apresentada no Von der mannigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles (“Dos vários significados do Ser de acordo com Aristóteles”-1862) de Brentano. De seu estudo inicial de Brentano procede também seu entusiasmo pelos gregos, especialmente os pré-Socraticos. Após terminar os estudos básicos, Heidegger entrou para a ordem dos Jesuítas. Como noviço, estudou a Escolástica (filosofia cristã medieval) e a teologia tomista, na universidade de Freiburg.
Por toda sua vida madura Heidegger esteve obcecado pela possibilidade de haver um sentido básico do verbo “ser” que estaria por trás de sua variedade de usos. Suas concepções quanto ao que existe, é uma Ontologia (o estudo do que é, do que existe: a questão do Ser) dependente dos filósofos antes de Sócrates, da filosofia de Platão e de Aristóteles, e dos Gnósticos. Foi influenciado ainda por diversos filósofos do século XIX e do início do século XX, principalmente pelo pensador cristão dinamarquês Søren Kierkegaard , pelos filósofos alemães Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Wilhelm Dilthey (1833-1911), e pelo seu mestre e fundador da fenomenologia (o estudo do modo como as coisas se manifestam), Edmond Husserl (1859-1938).
Quando ainda em seus 20 anos, Heidegger estudou em Freiburg com o filósofo Heinrich Rickert (1863-1936), mais tarde fundador da escola de Baden do pensamento neo-kantiano, e com Husserl, que era então já famoso. A fenomenologia de Husserl, e especialmente sua luta contra a inclusão da psicologia nos estudos essenciais do homem – que ele sentiu que devia, em vez, ser conduzido no nível filosófico – determinou o substrato da dissertação doutoral do jovem Heidegger (1914). Consequentemente, o que Heidegger mais tarde disse e escreveu sobre a ansiedade, pensamento, perdão, curiosidade, angústia, cuidado, ou medo com certeza não se referia à psicologia; e o que ele disse sobre o homem, não pretendeu que fosse sociologia, antropologia, ou ciência política. Suas proposições objetivavam descobrir maneiras de ser.
Maturidade. Heidegger começou a lecionar na universidade de Freiburg durante o semestre acadêmico do inverno de 1915 e ganhou sua habilitação com um estudo do filósofo franciscano escocês falecido na Alemanha John Duns Scotus (1266-1308). Moço ainda e agora um colega de Husserl, era de esperar que levasse o movimento fenomenológico mais longe dentro do espírito de seu antigo mestre. Entretanto, de grande vocação religiosa, ele preferiu seu próprio caminho, e em 1927 surpreendeu o mundo filosófico alemão com Sein und Zeit (“O ser e o tempo”, 1962) – um trabalho que, embora quase impossível de se ler, foi imediatamente considerado da maior importância. O livro foi aclamado como um trabalho profundo e importante não somente em países de língua germânica mas também nos países latinos, onde a fenomenologia era já bem conhecida mas a língua alemã nem tanto.
Heidegger influenciou fortemente Jean-Paul Sartre, na França e outros existencialistas e, apesar dos protestos de fé do próprio Heidegger, ele foi considerado, por força deste livro, como um líder do existencialismo ateu. Entretanto, entre os intelectuais ingleses, mais avessos aos modismos do Continente, sua recepção foi um tanto fria, e sua influência foi insignificante por várias décadas.
Em “O ser e o tempo”, o propósito declarado de Heidegger é trazer à luz o que significa ser para o homem, ou “como é ser“. Pode se dizer que o aspecto messiânico da sua filosofia está em levar cada homem a fazer essa pergunta com o máximo envolvimento. Na crise atual da humanidade, já seria bastante que o homem se detivesse nesta reflexão; e se ele eventualmente chegará ou não a qualquer resposta definitiva, torna-se de importância secundária. Sem esta reflexão, o homem segue uma maneira não autêntica de ser, em uma alienação que o desenvolvimento tecnológico agrava cada vez mais.
Na ocasião da publicação de “O ser e o tempo”, Heidegger era professor “ordinarius” em Marburg onde lecionou por diversos anos (desde 1923). Renunciou a esse lugar e, em 1928, retornou a Freiburg, desta vez como o sucessor de Husserl. Seu discurso de posse na cátedra foi Was ist Metaphysik?(“Que é Metafísica?”-1929) no qual elabora um de seus temas favoritos, das Nichts; isto é, “o Nada”.
Adesão ao Nazismo. No início dos anos 30 ocorreu uma reviravolta no pensamento de Heidegger, um giro afastando-o do problema do ser e do tempo. Isto foi negado por ele, que insistiu que toda a vida, desde sua juventude, estivera fazendo aquela mesma pergunta fundamental, mas em seus últimos anos tornou-se claramente mais relutante em voltar ao assunto, e a oferecer qualquer resposta ao problema básico do ser e do tempo.
Aproximadamente na época dessa reviravolta ocorreu também sua adesão ao nazismo, curta devido certamente apenas ao desenlace desfavorável da guerra, mas nem por isso uma participação menos eloquente. Seu envolvimento com a política cultural do terceiro reich teve início mesmo antes de Adolf Hitler assumir o poder em novembro de 1933. Com o crescimento do Partido e sua penetração nos meios intelectuais, as universidades alemãs foram expostas a pesadas pressões. Esperava-se que apoiassem a “revolução nacional” e eliminassem os intelectuais judeus e suas doutrinas (tais como a da relatividade). O reitor em Freiburg, um cientista anti-nazista, renunciou como protesto, e a equipe de professores elegeu unanimemente o engajado Heidegger como seu sucessor.
Como Heidegger aprendeu com Husserl, é o método fenomenológico e não o método científico que revela os modos de ser do homem. Assim, ao seguir este método, Heidegger cai em conflito com a dicotomia da relação sujeito-objeto, que implicou tradicionalmente que o homem, como cognescente, é algo (alguma coisa) dentro de um ambiente que ele confronta. Esta relação, entretanto, deve ser transposta porque,. ao contrário, o Saber mais profundo é matéria do phainesthai (grego: “mostrar-se” ou “estar na luz”), a palavra da qual “phenomenologia”, como um método, é derivada. Algo está exatamente “lá” na luz. Assim, a distinção entre o sujeito e o objeto não é imediata mas vem somente mais tarde com a conceitualização, como nas ciências.
O discurso de posse de Heidegger na reitoria (“A auto-afirmação da universidade alemã”) foi uma ampla afirmação de Nazismo. Para garantir, ele dividiu as tarefas dos estudantes em serviço do trabalho, serviço militar, e serviço científico. Porém, para seus admiradores, ansiosos por livrá-lo tanto quanto possível de compromissos com a ideologia nazista, Heidegger estava apenas copiando a política educacional autoritária de Platão, e afinal, alegam, o discurso sequer terminou com um “Heil, Hitler!“, mas com uma citação da república de Platão: “todas as grandes coisas se expõem ao perigo”.
No entanto, em seu discurso Heidegger não mostra adesão última à filosofia nazista. No texto ele incita à pergunta “o que é ser?”, coloca sua advertência contra perder-se alguém em “coisas” que o alienam do ser autêntico (Seiendes), e opõe-se à especialização científica. Porém, entrou para o partido nazista e apesar de renunciar à reitoria em 1934, em várias ocasiões pronunciou sólidos discursos pro-Hitler. “o Führer ele mesmo,” disse Heidegger, “e somente ele é a realidade alemã, presente e futura, e sua lei”. Não é de se esperar que o defensor da autenticidade não fosse ele mesmo autêntico, inclusive enquanto nazista.
A história do Nacional-Socialismo depois de 1934, e até o fim da II Guerra Mundial, pode ser dividida em duas partes com aproximadamente igual duração de seis anos. É importante, para compreender a adesão de muitas pessoas inteligentes e sensatas ao nazismo, reconhecer que o primeiro período foi de promessas que pareciam de realização justa e eminente, e, aparentemente, apenas o segundo foi marcado por inquestionáveis crimes cometidos pelo partido até a desilusão e a derrota final. Os anos entre 1934 e 1939, foram gastos pelo Partido em estabelecer o inteiro controle em todos os níveis da vida na Alemanha. Durante aqueles anos Hitler e seu movimento ganharam o apoio e mesmo o entusiasmo da maioria da população alemã. Muitos alemães haviam crescido conscientes dos conflitos políticos, da instabilidade econômica e política, e da desordem geral que caracterizou os últimos anos da República de Weimar. Eles saudaram com crescente esperança o forte, decisivo, e aparentemente competente governo implantado pelos nazistas. Após 1934 a interminável horda de ociosos na Alemanha rapidamente diminui na medida em que os desempregados eram colocados a trabalhar em projetos de obras públicas e nas fábricas de armamento que se multiplicavam rapidamente. Os alemães foram naturalmente arrastados para esse movimento de massas ordeiro, poderosamente objetivo, destinado a restaurar a dignidade, o orgulho e a grandeza do seu país, e devolver-lhe o primeiro lugar no palco europeu. A recuperação econômica dos efeitos da Grande Depressão e o forte nacionalismo alemão eram, assim, os fatores-chave no apelo do Nacional-Socialismo para a população alemã. Finalmente, os êxitos constantes de Hitler no campo diplomático e suas conquistas externas a partir de 1934 até os primeiros anos da II Guerra garantiu o apoio incondicional da maioria dos alemães, inclusive, muitos que haviam inicialmente se oposto a ele.
Últimos anos. Em novembro 1944 Heidegger parou de lecionar. A invasão da Alemanha derrotada pelas potências aliadas tornou difícil a situação dos nazistas mais destacados. Em 1945 ele foi proibido de lecionar oficialmente e suas atividades nazistas foram investigadas. Não foi incriminado em nenhum dos crimes praticados pelos partidários de Hitler e por isso não perdeu seus direitos a uma aposentadoria. Deu regularmente influentes conferências nos anos 1951-58, e continuou um intelectual importante dentro do movimento fenomenológico internacional até seu falecimento em 1976.
FILOSOFIA
O conhecimento. Tradicionalmente, o conhecimento implicava a dicotomia da relação sujeito-objeto, em que o homem, como cognoscente, é algo dentro de um ambiente que ele confronta (separadamente um conceito de sujeito e um conceito de objeto). Para Heidegger, esta relação deve ser transposta. O Saber mais profundo, ao contrário, é matéria do phainesthai (grego: “mostrar-se” ou “estar na luz”), a palavra da qual fenomenologia, como um método, é derivada. Algo está exatamente “lá” na luz. Assim, neste conhecimento profundo, a distinção entre o sujeito e o objeto não é imediata mas vem somente depois com a conceitualização, como nas ciências . Então o homem existe segundo certos fenômenos, que são os modos como ele está lá, na luz (Dasein, “o ser” em alemão é, etimologicamente, a palavra da, que significa “lá” com a palavra sein, que significa “estar”)
Terminologia. Heidegger evita termos das ciências sociais ou da psicologia tanto quanto possível, em favor de uma terminologia ontológica. Viu-se então na necessidade de criar uma terminologia nova, palavras novas para exprimir seu pensamento. Foi criticado por desenvolver seu próprio alemão, seu próprio grego, e seu próprio tipo de etimologias. Inventa, por exemplo, aproximadamente 100 palavras complexas novas que terminam com “- sendo.” Ao ler seus trabalhos se deve, assim, traduzir muitos de seus termos chaves de volta em palavras gregas a fim de entender suas interpretações e etimologias. Isto faz um risco que, ao “interpretar” a filosofia de Heidegger, alguém esteja na verdade, criando, pelo menos em parte, “uma filosofia de Heidegger”
Os existenciais. Heidegger divide a existência em três “estruturas existenciais”: afetividade, fala e entendimento. São três fenômenos existenciais que caracterizam como as coisas do passado, do presente e do futuro se manifestem para o homem e a unidade desses três fenômenos constitui a estrutura temporal que faz a existência inteligível, compreensível.
1) a afetividade: as coisas do passado chegam ao homem como valores, afetando-lhe os sentimentos, que podem ser públicos, compartilhados, e transmissíveis.
2) a fala: no presente, as coisas se traduzem em palavras da linguagem na articulação dos seus significados.
3) o entendimento: as coisas do futuro, onde o projeto que define o homem encontrará a morte, são as coisas não garantidas, que lhe são devolvidas para gerar nele o sentimento de que não está em casa neste mundo, mesmo estando entre as coisas que lhe são mais familiares.
Portanto, no homem, o ser está relacionado ao tempo e está dado, – existe -, nestes três fenômenos, nestes três “existenciais”.
A alienação. O homem está fora das coisas, diz Heidegger em “O ser e o tempo”, nunca sendo completamente absorvido por elas, mas não obstante não sendo nada, à parte delas. O homem vive, até o fim, em um mundo no qual ele foi jogado. Sendo algo jogado em meio às coisas, estando lá (Da-sein), constitui algo à parte (Verfall) mas está no ponto de ser submergido nas coisas. É continuamente um projeto (ent-wurf); mas ocasionalmente, ou mesmo normalmente, pode ser submergido nas coisas a tal ponto que é absorvido nelas temporariamente (Aufgehen in). O homem encobre aqueles condicionantes existenciais, – aquilo que ele de fato é -, entregando-se a uma rotina de superficialidades “públicas” na vida cotidiana. Não é então ninguém em particular; e uma estrutura que Heidegger chama das Man (“o eles “) é revelada, como uma tendência da alienação de si mesmo que leva o homem à tendência de se conhecer apenas através da comparação que faz de si mesmo com os outros indivíduos seus pares.
A característica do das Man é a conversa inócua (Gerede) e curiosidade (Neugier). No Gerede, o que fala e o ouvinte não estão em nenhuma relação pessoal genuína ou em qualquer relação intima com aquilo sobre o que falam, o que, portanto, conduz a superficialidade. A curiosidade é uma forma de distração, uma necessidade para o “novo,” uma necessidade para algo “diferente,” sem interesse ou capacidade de maravilhar.
A angústia. Mas uma coisa pode acontecer que desperta o homem dessa alienação, a angústia (Angst). Ela resulta da falta de base da existência humana. A “existência” é uma suspensão temporária entre o nascimento e a morte O projeto de vida do homem tem origem no seu passado (em suas experiências) e continuam para o futuro, o qual o homem não pode controlar e onde esse projeto será sempre incompleto, limitado pela morte que não pode evitar.
A angústia funciona para revelar o ser autêntico, e a liberdade (Frei-sein) como uma potencialidade. Ela enseja o homem a escolher a si mesmo e governar a si mesmo.
Na angústia, a relevância do tempo, da finitude da existência humana, é experimentada então como uma liberdade para encontrar-se com sua própria morte (das Freisein für den Tod), um “estar preparado para” e um contínuo “estar relacionado com” sua própria morte (Sein zum Tode). Na angústia, todas as coisas, todas as entidades (Seiendes) em que o homem estava mergulhado se afastam, afundando em um “nada e em nenhum lugar,” e o homem então em meio às coisas paira isolado, e em nenhuma parte se acha em casa (Un-heimlichkeit, Un-zu-hause). Enfrenta o vazio, a “nenhuma-coisidade” (das Nichts); e toda a “rotinidade” desaparece – e isto é bom, uma vez que ele então encontra a potencialidade de ser de modo autêntico.
Assim, a angústia “sóbria” (nüchtern) e a confrontação implicada com a morte são para Heidegger primeiramente ferramentas, têm importância metodológica: certos fundamentos são revelados. A ansiedade abre o homem para o ser.
Entre as estruturas reveladas estão as potencialidades do homem para ser alegremente ativo (“conhecer a alegria [die wissende Heiterkeit] é uma porta para o eterno”). Isto não quer dizer que o Ser participa do lado negro do desespero, da angústia; o Ser é associado com a ” luz ” e com ” a alegria ” (das Heitere). Pensar o ser é chegar ao verdadeiro lar.
Por isso, dos três existenciais, Heidegger privilegia o futuro, porque é esta projeção para o advir e o golpe da devolução no embate com a morte que lá está que o leva a pensar e à autoconscientização.
O homem pode então introduzir esse conhecimento existencial no projeto de sua vida, e assim se apropriar da existência fazendo-a efetivamente sua, tornando-se autêntico, não mais um ente sem raízes.
Essa visão existencial do homem, em que ele se conscientiza das estruturas existenciais a que está condicionado e que o tira da superficialidade em que desenvolve seus conflitos tornou-se sedutora para a psiquiatria, surgindo ai proeminentes terapeutas existencialistas como Binswanger, Boss e Ronald Laing.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 16-06-2001.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Martin Heidegger. Filosofia Contemporânea. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, 2001.