Port-Royal

Hoje: 23-11-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Port-Royal. A importância da abadia francesa de Port-Royal, das freiras de Cister (cistersenses) que se denominavam Filles du Saint Sacrement (“Filhas do Santíssimo Sacramento”), deve-se principalmente a alguns intelectuais de renome que ficaram ligados à sua história, como Antoine Arnauld, Duvergier de Hauranne abade de Saint Cyran, Blaise Pascal, Jean Racine, e outros.

A abadia de Port-Royal havia sido fundada por volta de 1204 como casa Benedictina, por Mathilde de Garlande, em uma região baixa e pantanosa no vale de Chevreuse, ao sul de Versailles. Ao longo do tempo havia se tornado um lugar mundano e de excessiva tolerância moral. Em 1609 a jovem abadessa Jacqueline-Marie-Angélique Arnauld, mère Angélique, inspirada em São Francisco de Sales, restabeleceu uma disciplina severa no convento.

Em 1625-1626, por motivo de receber muitas noviças e considerando a insalubridade do lugar, a abadessa mudou suas religiosas para novas instalações construídas em Paris em um local ao fim do Faubourg Saint-Jacques. A abadia, nos dois endereços, tornou-se, pouco depois um centro de rigorismo moral jansenista e de notável influência intelectual. Essa notoriedade começa em 1625, devido à influência de Jean Duvergier de Hauranne (1581-1643), depois conhecido como “o abade de Saint-Cyran”, um sacerdote que estudara em Louvain, onde se tornara amigo do teólogo holandês Cornelius Otto Jansen, ou Jansenius, que depois foi bispo de Ypres (Em flamengo,Yeper), no oeste da Bélgica. Juntos fundaram a corrente conhecida pelo nome do segundo, Jansenismo.

Os jansenistas alegavam que os teólogos da contra-reforma, no seu combate a Lutero e Calvino quanto à doutrina da graça, haviam enfatizado exageradamente a responsabilidade humana em prejuízo da iniciativa divina, caindo assim na heresia pelagiana contra a qual Santo Agostinho havia lutado. Contra esse exagero os jansenistas colocavam a doutrina agostiniana de que o homem não pode guardar os mandamentos da Lei de Deus sem um dom especial da graça e que a graça de conversão dada por Deus é irresistível. Ao mesmo tempo acusavam os jesuítas de procurarem brechas para escapar das determinações da Lei Divina.

Residindo em Paris depois de ordenar-se padre, De Hauranne ganhou do governo, como sinecura, o cargo de abade de Saint-Cyran (1620). Tornou-se o confessor e o diretor espiritual de Mère Angélique e de suas religiosas na Port-Royal de Paris, influenciando-as em favor do jansenismo. Sonhando reformar a Igreja movendo-a da influência tomística dos jesuítas para a influência agostiniana, o abade criou os eremitas Solitaires em 1637, um grupo de padres e leigos piedosos que viviam sem votos ou regras definidas sob a sua direção espiritual. Entre os eremitas achavam-se vários membros da família da abadessa Jacqueline-Marie, inclusive o padre Antoine Arnauld. Os “solitários” ocupavam-se do ensino a jovens e criaram as “pequenas escolas” como exemplo de ensino diverso do ensino jesuítico.

Em 1638 Saint-Cyran obteve das freiras o uso do velho prédio, conhecido como Port-Royal des champs, no qual alojou os Solitaires. Mas, seus ataques aos jesuítas, feitos sob o pseudômino de Petrus Aurelius, levaram o ministro Cardeal Richelieu a mandar prendê-lo na prisão de Vincennes em 1638, onde ficou até a morte do Cardeal.

Em 1640 foi publicado postumamente um livro de Otto Jansen, intitulado Augustinus (“Agostinho”), confrontando a teologia daquele Santo Católico com as tendências da Igreja Católica de então.

Duvergier de Hauranne deixa a prisão de Vincennes ao falecer o Cardeal Richelieu em 1642. Nesse mesmo ano, o Papa Urbano VIII emitiu a bula In eminenti, condenando a obra Augustinus de Cornelius Otto Jansen, publicada sem a autorização da Santa Sé, e proibindo sua leitura. Em 1643, faleceu o abade de Saint-Cyran.

Em 1648 um grupo das freiras voltou a ocupar o prédio, e os “solitários” se instalaram em Granges, ao lado da abadia.

Outros nomes ligados à abadia de Port-Royal des Champs são os de Antoine Arnauld, Blaise Pascal e Jean Racine, os dois primeiros profundamente e envolvidos na controvérsia jansenista

O teólogo Antoine Arnauld como discípulo de Duvergier de Hauranne se dizia agostiniano, mas os jesuítas o acusavam de ser apenas “jansenista” e não verdadeiramente agostiniano. Em 1655 Arnauld escreveu dois panfletos em que afirmou o ortodoxia substancial de Cornelius Otto Jansen. Estes trabalhos acenderam uma disputa que resultou na expulsão de Arnauld da Sorbonne em 1656. Excluído da faculdade de teologia, retira-se para a abadia de Port Royal.

O cientista, escritor e filósofo Blaise Pascal, também de tendência jansenista, aparece então no centro da controvérsia, escrevendo em defesa de Arnauld uma série de cartas, Letres Provinciales (“Cartas Provinciais”) em 1656 e 1657, e por isso foi igualmente condenado pelos professores de Teologia da Sorbonne.

Jean Racine deveu parte de sua formação aos Solitaires da Abadia de Port-Royal. Nascido em 1639, passou a infância no Castelo de Chevreuse e estudou nas Petites Ecoles da abadia de Port-Royal des Champs. Outro discípulo ilustre foi o pintor Philippe de Champaigne, que deixou um retrato de Madre Angélique e de outras figuras de Port-Royal.

Quando, em 1665, a maior parte das freiras do Port-Royal de Paris se recusou a assinar um formulário condenando Jensen, elas foram enviadas a Port-Royal des Champs, onde ficaram confinadas e privadas dos sacramentos. Seguiu-se porém uma trégua de dez anos, mediante um entendimento com o Papa Clemente IX e a proteção da Duquesa de Longueville, prima de Luís XIV. Após o falecimento da duquesa, a perseguição recomeçou. Em 1705 a bula Vineam Domini do papa Clemente XI renovou as medidas contra os jansenistas e as freiras novamente se recusaram a se submeter.

Procurando eliminar o jansenismo, que crescia como uma ameaça política, Luís XIV obteve do Papa Clemente XI, em 1705, a bula Vineam Domini, renovando as condenações prévias à doutrina e em 1709 finalmente a comunidade foi extinta. O próprio Luís XIV ordenou a dispersão das freiras de Port-Royal para diversos outros conventos.

A Port-Royal de Paris depois desta dispersão esteve em poder dos jesuítas, os ferrenhos adversários dos jansenistas. Nas proximidades foi construído o Hospital Saint-Jacques du Haut Pas, situado na rua do Faubourg Saint-Jacques, por iniciativa do abade Jean Denys Cochin, em 1780. O que restou da abadia foi transformado em prisão durante a Revolução e, anos mais tarde, também em hospital, com a restauração da casa do capítulo e do coro da igreja original. Esses antigos prédios constituem hoje o Groupe Hospitalier Cochin, ao qual está associada a maternidade Port-Royal-Beaudelocque, no boulevard du Port-Royal, 123.

Quanto à Port-Royal des Champs, Luís XIV, ao final do seu reinado, depois de fazer dispersar as religiosas em outubro de 1709, terminou por mandar destruir a abadia em 1710. Nos dois anos seguintes a maior parte do prédio medieval foi destruída. As sepulturas foram violadas e hoje restam as ruínas históricas do edifício. Os seguidores da doutrina jansenista refugiaram-se na Holanda, onde criaram uma igreja independente em Utrecht, e na Itália, onde o movimento manteve-se forte por mais tempo.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 00-00-1997.

Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – NOTAS: Vultos e episódios da Época Moderna. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 1997.