Hoje: 03-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Um aspecto importante da corrente racionalista (Platão, Descartes e Kant) é que o pensamento racional não deve ser perturbado pela paixão. Na sua teoria das paixões Descartes taxa as emoções de “ideias confusas e obscuras”. A advertência dos austeros filósofos da época moderna era que, para se chegar aos melhores resultados, as paixões precisavam ser mantidas ao largo. Não distinguiam o sentimento como um modo particular de conhecimento.
Os sentimentos não são audíveis nem imagináveis, e assim diferem do pensamento; não são referíveis a um local físico e assim eles diferem das sensações, pois estas são referíveis a locais do corpo. Por exemplo, a sensação de prazer é referível a uma região do corpo, mas o sentimento “prazer intelectual” não é.
Os sentimentos estão, como visto, vinculados à condição química da configuração associativa. O sentimento é simultâneo com o pensamento, porque, em cada situação, o sentimento é gerado na alteração fisiológica que ocorre no sistema na mesma operação, na mesma configuração e no mesmo instante em que é gerado o pensamento, em uma situação considerada.
A fisiologia que facilita a associatividade, a fluição livre do pensamento, corresponde à condição de aprazimento para o espírito, que é o de sua liberdade no sentido da ampliação e totalização do conhecimento, por via da discriminação mais íntima das coisas. E vice versa, uma química problemática que resulta de vinculações associativamente inadequadas ou prejudicadas por deficiências anatômicas, ou hormonais, da própria rede, com a impossibilidade de viajar livremente o conhecimento, é a base para que um certo pensamento seja desagradável. É próprio do primeiro caso o sentimento de excelência pessoal, e próprio do segundo caso os sentimentos negativos que o indivíduo experimenta nas suas dificuldades psicológicas e patologias nervosas.
Do mesmo modo que o pensamento, o sentimento retorna como novo elo físico na cadeia associtativa. Se penso um objeto que me desagrada, o sentimento de desagrado que se deu como experiência de consciência em minha mente, na ideia que é pensada, é materializado de volta na fisiologia do segmento associativo da ideia que retorna ao sistema. A configuração associativa sobre aquele objeto ganha um novo elo dessa experiência, como registro, tanto gráfico do pensamento quanto também químico físico do sentimento. A configuração associativa enriquecida com essa gravação poderá suscitar em seguida um segundo sentimento, suponhamos, de intolerância, que vai manifestar-se em nova experiência com o mesmo objeto. Esse segundo sentimento só existe porque o primeiro sentimento, de desagrado, entrou fisicamente na cadeia associativa e agora compõe a configuração do novo pensamento sobre aquele objeto. O sentimento é portanto, algo que está na mente ativa, é objeto do conhecimento e no entanto não passou pelos sentidos, contrariando o dito de Aristóteles, seguido por São Tomás, de que nada existe no intelecto que não tenha passado pelos sentidos.
O aprazimento, a faculdade que permite a experiência de consciência do sentimento, refere-se ao movimento livre em que a discriminação caminha para a intimidade, tudo representando uma excelência de ser que está no próprio existir e realizar dessas faculdades. Como antes já salientado, as faculdades do espírito se realizam em si mesmas, elas estão simultaneamente em cada experiência de consciência e não se fazem suceder umas às outras nem tomam ou escolhem objetos.
Mas o sistema associativo ordena as coisas. Pertence, portanto, ao sistema associativo físico a sucessão de estágios de conhecimento e a reação que leva a um comportamento.
Por outro lado, os racionalistas atribuem importância ao pensamento, que pretendem pode alterar diretamente o comportamento. Porém, o comportamento não é precedido pelo pensamento, mas por um certo sentimento, vale dizer, é uma intuição sentimental de adequação ou inadequação que, de modo inconsciente, normalmente deflagra ou inibe uma ação. A rapidez com que o registro de resultados é novamente apresentado ao sistema criando nova intuição sensível e nova intuição conceitual, como uma retro alimentação é que vai direcionando o comportamento.
Na esquizofrenia, a alteração fisiológica no sistema promove o que discutiremos mais adiante: uma objetivação: uma condição fisiológica que gera um sentimento e um comportamento de busca de algo que sirva de alvo para esse sentimento, no caso, de pavor. Objetos inofensivos aterrorizam o doente. Porque linhas verticais afetam o sistema associativo como uma propensão agressiva, um simples poste de luz pode infundir terror a um esquizofrênico. Com a ingestão de uma droga anti-depressiva a fisiologia da associatividade muda, sem qualquer alteração das configurações, e a pessoa passará a ver sua situação de modo diverso, até como razão de alegria, quando antes era de tristeza.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 06-12-2009.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Sentimento. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2009.