Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Apesar de as famílias, hoje em dia, procurarem reduzir a sua dependência de serviços domésticos prestados por profissionais, o número de serviçais em uma casa pode ainda ser alto. O chofer, o jardineiro, a cozinheira, a passadeira de roupas, a faxineira, a arrumadeira, a babá, o enfermeiro, o cuidador ou a cuidadora de idosos, e possivelmente outros mais, podem se tornarem indispensáveis. Resultam em um grande número de pessoas a residir na casa durante a semana, e aí fazem suas refeições,e alguns pernoitam. Além desses, comem também à mesa – embora alguns tragam sua própria comida – os trabalhadores autônomos como pedreiros, ajudantes de pedreiro, pintores, marceneiros ou carpinteiros, técnicos em informática, eletricistas, etc., que estejam prestando serviço em horário que inclua a hora do café, do almoço e do lanche da tarde, sendo raro porém que jantem no serviço.
Não se espera que a dona da casa convide as pessoas que trabalham para ela, a fazerem a refeição junto com a família, ainda que sejam umas poucas. Mas acontece, quando a senhora e seu marido consideram que não é “politicamente correto” determinar onde devem comer os serviçais, por enxergarem aí uma forma de discriminação. Portanto, não se espante o leitor se um dia for convidado por um casal amigo para almoçar, e se deparar com um jardineiro de botas e um chapéu de palha na cabeça, comendo na mesma mesa com ele e seus anfitriões. Tal convite será com certeza constrangedor para um empregado cuja ocupação no jardim o deixa com as botas sujas e as roupas molhadas de suor. E grande parte das situações de constrangimento no relacionamento entre as pessoas interessa a Boas Maneiras e Etiqueta, como é o caso.
Também o oposto pode ser constrangedor, quando alguém se sente ofendido por não estar à mesa dos anfitriões, onde julga que deveria estar em respeito ao seu status social.
A questão lembra-me um conflito entre o filósofo Rousseau e madame de Beuzenval (Bêsanval).
Rousseau (Russô) ao chegar a Paris, onde passaria a residir, e quando seu dinheiro já acabava, tentou empregar-se em uma casa nobre, como professor de música. Foi aconselhado a procurar a senhora baronesa de Beuzenval, cuja filha, a senhora marquesa de Broglie (Brolhe), desejava aprender teoria da música, matéria que o filosofo dominava bem, e na qual já se fazia conhecido em Paris. Após as demonstrações que fez, ao despedir-se, Rousseeau foi instado por madame de Beuzenval a jantar no palácio. Aceitou de bom grado mas, quando percebeu que os preparativos eram para que ele comesse com os criados da casa, sentiu-se ofendido e a pretexto de um compromisso imaginário, despediu-se para ir embora. Madame de Broglie notou o seu desaponto e segredou à mãe que ela convidasse o filósofo para jantar no salão com a família e seus convidados, e não na companhia dos lacaios. Madame de Beuzenval prontamente reformulou seu convite. Rousseau então aceitou, e durante o jantar entreteve a todos com tal arte que, em dado momento, o filósofo viu a filha sinalizar para a mãe o quanto havia valido à pena tê-lo alçado da mesa da copa para a mesa no salão principal. O filósofo tornou-se amigo da família, mas o fato de detalhar o incidente em suas Confissões é uma evidência de que não se esqueceu da afronta que inicialmente lhe foi feita (As Confissões, Livraria José Olympio Editora, São Paulo, 1948, trad. de Wilson Lousada,p.260-262).
Mark Girounard nos fornece, em seu livro Life in the English country house, a distribuição dos serviçais em quatro mesas, em uma casa nobre do início do século XIX. Vê-se claramente que não havia outra intenção dos senhores da casa senão a de favorecer a ordem e a normalidade no convívio doméstico dos empregados, reunindo em cada mesa um grupo de pessoas, segundo suas ocupações e afinidades culturais, de modo que a refeição em suas mesas fosse um momento de prazer e restauração.
Atualmente, o número de empregados em uma casa não é muito menor que na era vitoriana ou antes, no século XVIII. Várias profissões domésticas desapareceram, mas apareceram novas, e outras persistem, apesar de modificadas. Ter muitos empregados porém, não é mais fonte de prestigio social, como antigamente, quando o numero de lacaios que caminhavam a pé seguindo o Senhor e a Senhora na rua, ou corriam ao lado do coche em que passeavam, era indicação da importância e poder de seus patrões. O filósofo Blaise Pascal aceita esse critério de importância social, e o coloca como base para o respeito à precedência. Dizia no seu Pensées (319, trad. de Sérgio Milliet, Ed. Tecnoprint S.A., s/d), que o reconhecimento da precedência era necessária para a paz, e que, embora os homens fossem iguais, merecia a precedência aquele que tinha quatro criados em relação ao que tivesse apenas um serviçal.
Em meu quadro, abaixo, listo as profissões domésticas modernas mais comuns, de maneira simplificada, considerando a casa de uma família medianamente abastada, buscando responder à questão “onde comem os serviçais?”. Em meu exemplo há seis mesas a serem ocupadas:
- Grande mesa da sala de jantar, reservada aos donos da casa, parentes, convidados e visitantes ilustres. Embora sempre no lugar do conviva menos importante, nela tem assento também o administrador geral das finanças, bens e serviços da casa;
- Mesa da copa, onde comem as cuidadoras e cuidadores pessoais do senhor e da senhora, e também a secretária e a bibliotecária;
- Mesa da saleta do mordomo, onde, além do mordomo, comem os subordinados diretos do administrador geral (registros de despesas, exame de propostas de serviços, relatório das despesas com pagamento de pessoal, reparos, controlador de estoques, etc), o chefe da cozinha, o chefe dos choferes (Não os choferes) e os “boys” (antigos pagens).
- Na mesa da cozinha comem os homens e as mulheres que servem na cozinha, menos o chefe da cozinha.
- Em duas mesas no “hall” ou “varanda dos empregados”, em uma, a mesa dos choferes, comem – além dos choferes – os garçons, os porteiros, e outros serviçais que possam estar sujeitos a horários especiais para suas refeições. Na outra, os jardineiros, as faxineiras, e trabalhadores ocasionais e estranhos ao staff doméstico.
OBSERVAÇÕES:
- O superior sempre come em uma mesa de mais importância que aquela em que comem os seus subordinados;
- As refeições poderão ser em dois ou três turnos, como a dos garçons, que comem antes dos demais para servir enquanto durar a refeição na mesa principal, ou os servidores da cozinha que comem em um turno posterior ao turno principal.
- Os garçons se incumbem de servir apenas os que comem na mesa principal. Os empregados terão acesso a um bifê na cozinha para fazerem seus pratos.
- O salão da mesa principal precisa estar ao abrigo dos ruídos da copa, da cozinha e dos locais das demais mesas seja pela disposição arquitetônica, seja por recursos como portas à prova de som.
- Mesas de refeições colocadas perto de lixeiras, de depósitos de lixo seco ou orgânico, de paredes mofadas, representam desconsideração grave feita aos que ocuparão o lugar.
- Os ambientes de refeição devem ser iluminados e arejados e não cantos escuros ou abafados.
Com a distribuição acima, creio que nenhum dos funcionários da casa se sentirá constrangido ao fazer sua refeição, como aconteceria se tivesse que partilhar a mesa com pessoas de maior cultura, mais cerimoniosas à mesa, desinteressadas em conversar com pessoas de nível inferior em modos e conhecimento. Uma distribuição sábia, ao contrário, deixará todos à vontade e felizes.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 16-08-2018.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Onde comem os serviçais? Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.