Diálogo com um Ateu

Hoje: 21-12-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Foi um encontro casual, em uma tarde, no alto do Cabo de Santo Agostinho, um penhasco na fímbria do mar, no extremo nordeste do Brasil. Voltando de uma longa caminhada pela mata, decidi descansar por alguns instantes no forte português abandonado, gozando a brisa fresca, nas sombras da tarde. Um homem de idade aparentando uns 60 anos, vestindo uma bermuda branca e uma camisa de seda azul que o vento agitava velozmente nas suas costas, estava sentado sobre um velho canhão. A peça de ferro, recém-pintada em preto luzidio, apontava para o horizonte na posição, talvez, de seu último tiro contra as esquadras holandesas.

Acercando-me do homem, mantive-me de pé junto ao parapeito de pedras. Era provavelmente um turista de recursos, e uma pessoa excêntrica, por estar ali completamente só –, comentei, para iniciar uma conversa:

— As caravelas portuguesas disparavam salvas, quando passavam à vista deste cabo, para saudar a Nossa Senhora de Nazaré, que tem sua imagem na ermida junto ao farol…

Ele, que já me fitava, respondeu com vagar:

— Gastavam pólvora assim? Pobre gente! – disse. – Tipos supersticiosos, aqueles nossos avós. Corajosos no mar e ao mesmo tempo medrosos do destino; hoje somos escravos de crenças ridículas transmitidas por esses nossos ancestrais ignorantes.

— Não tem religião? – perguntei-lhe.

— Sou ateu, respondeu ele. – Mas não sou esse ateu comum, que nega sem pensar e sem refletir. Eu refleti e gastei muito tempo para chegar à convicção de que Deus não existe. E, esse assunto para mim não tem interesse algum.

— Sou católico – disse eu.

— Ah!… Humm… A maioria é… – Ironizou o ateu. Observou-me em silêncio enquanto eu me acomodava sobre a muralha, onde também coloquei minha mochila. Lá em baixo, as ondas avançavam com violência e estrondo sobre as rochas do penhasco, para recuar mansamente espalhando sua espuma branca entre labirintos de pedras negras. O céu ganhava tintas alaranjadas, reflexos do sol que se punha do lado oposto, oculto pela mata luxuriante. Tanto poder e beleza, não seria uma prova de que Deus de fato existe?

Era a primeira vez que eu falava com um ateu convicto. Encarei-o com um sorriso – para evitar qualquer suspeita de antagonismo da minha parte – e indaguei que razão tinha para não crer. Sua fisionomia permaneceu calma e amistosa, enquanto respondia:

Acompanhe o meu raciocínio – pediu ele. – Se Deus existe, não poderia existir sem ter criado este mundo que conhecemos. E neste mundo predomina o mal, ele está cheio do mal. Portanto ou – primeiro –, Deus criou o mundo e também o mal que nele vemos, e então não é um deus perfeito; ou, – segundo –, criou o mundo e não tem poder bastante para afastar o mal, logo não é infinitamente poderoso; ou – terceiro –, colocou propositadamente o mal no mundo para nos afligir e, nesse caso, não é sumamente bom e misericordioso.

Ensaiei interrompê-lo para protestar, mas ele se antecipou:

Não me diga, como o seu filósofo Agostinho, que o mal não tem existência própria, e apenas significa a ausência do bem. Não concordo. Ele mesmo considerava como mal alguém agir contra as Tábuas da Lei. Portanto, o mal existe e pode ser praticado. Ora, se Deus criou o bem e o mal para ver qual dos dois vence na alma de uma pobre criatura, isto ainda é pior.

Você falou de alma… Acredita que o homem seja corpo e espírito?

Não acredito em almas, retrucou. – Apenas citava o seu filósofo. E posso dizer que, se existem almas e Deus perde uma delas, esta perda é um mal que atinge a Deus, e ser atingido pelo mal não vai bem com a idéia de perfeição e infinito poder. O que me diz?

Posso facilmente responder-lhe, por partes, porque são duas as consequências de haver Deus dado ao homem a vontade livre. A alma somente é perdida quando exerce sua vontade para pecar. Seria uma contradição se Deus a impedisse de pecar, pois teria criado uma falsa vontade livre, e um falso livre arbítrio. Portanto, não é uma imperfeição de Deus que Ele perca uma alma.

Mas, e o sofrimento? Um mundo que, como lembrou Voltaire, sofre tragédias como a de um grande terremoto, com perda de milhares de vidas, não é um mundo impregnado do mal?

Ora! Você sabe que Voltaire criticava o relativismo de Leibniz e de São Tomás, para os quais do mal podia resultar algum bem e neste caso o mal era bom. Mas eu vejo o mal por um ângulo muito diverso: ele em hipótese alguma é bom ou pode ser tolerado. Deixa-me dizer por quê: Deus criou as leis que regem o universo, as quais, seguidas à risca pela natureza, surpreendem os homens a todo instante e, quando as desconhecemos ou não podemos vencê-las, elas são a origem do sofrimento para nós. Porém, essas leis eram necessárias! Não seria possível a vontade livre se nada se movesse, se o mundo fosse rígido, imóvel; e também não seria possível exercê-la se, ao contrário, o mundo fosse completamente caótico.

Dito isto, pensei: “se não existissem as leis naturais, os milagres também não aconteceriam!…” – mas prossegui:

Talvez o homem conhecesse perfeitamente essas leis naturais – esse conhecimento explicaria sua felicidade e sua pureza no Paraíso -, mas tenha perdido sua sabedoria devido a um primeiro pecado, conforme as escrituras, não por praticar o mal, mas por orgulho…

— No paraíso?… – perguntou o ateu com polida ironia. Apesar de irônico, era evidente que a questão o interessava. Talvez não fosse um ateu tão convicto quanto acreditava ser.

Sim – respondi-lhe –, e tem, na Terra, que lutar para redescobri-las, a fim de dominar a natureza, evitar o sofrimento, e reconquistar sua felicidade. Porém, quando descobre uma dessas leis, não a reconhece completamente. Precisa procurar também os princípios dos quais ela deriva e chegar a princípios e leis anteriores, de modo que busca incessantemente as causas das causas. A ciência cada vez mais sente a necessidade de uma fórmula universal, um princípio que ela não possa desmontar e reduzir a outros princípios. Assim, a ciência, sem o saber, está procurando Deus, que é essa causa última.

Aristóteles parece que foi o primeiro a falar de uma causa suficiente das coisas. Mas isto não é uma prova da existência de Deus – alegou o ateu. – Em todo efeito permanece alguma coisa do que foi a sua causa, e nas coisas do mundo não vemos nada que tenha pertencido a algo ou alguém senão ao mundo mesmo. Existem os princípios da física, os princípios da química, eles, sim, princípios perfeitos e eternos, leis imutáveis, indiferentes ao bem e ao mal.

Não há nenhum vestígio de Deus no mundo por que Deus não se confunde nem é parte da coisa por Ele mesmo criada. Se você olha um quadro pintado a óleo, também não encontra nada do pintor, se ele não deixar seu nome escrito. Se você não quisesse acreditar na existência do pintor, você teria que supor que o pincel que deixou as marcas na tela seria a única razão do quadro existir. A ação do pincel estaria muito bem explicada pelos princípios da química e da física. Estes princípios lhe diriam, por exemplo, a força com que o pincel atingiu cada parte da tela. A disposição das linhas lhe permitiria descobrir as leis da estética aplicadas à pintura. Porém, a rigor, o quadro jamais lhe provaria a existência do pintor mais que as coisas do mundo provam que Deus existe.

O velho ergueu-se da ponta do canhão, bateu alguma poeira de sua bermuda branca e veio apoiar-se na muralha, fitando o mar. De perto, deu-me outra impressão. Talvez seu rosto não tivesse tantas rugas quanto seria de esperar devido à aparência alquebrada e gasta de sua figura. Já não lhe daria mais que uns cinquenta e poucos anos de idade. Parecia disposto a continuar a me ouvir.

Retornando à questão do bem e do mal, é quando cremos em Deus e na palavra revelada – continuei –, que podemos distinguir o que pode ser o verdadeiro bem e o verdadeiro mal para nós. Então se torna importante o problema da conduta moral. É incerto o que esperar de quem não tem Deus como referência moral!

Não diga isso, por favor! protestou o ateu. – A filosofia pode nos fornecer regras para a boa conduta. Temos um dever natural que é usar nossa razão para fazermos somente o que for mais adequado, e fazê-lo segundo um raciocínio o mais amplo possível. Deus fica totalmente fora disto. Há, portanto, como ser um bom ateu desde criança – arrematou ele.

Porém sem incluir Deus, o raciocínio não será cabalmente completo e abrangente, não será “o mais amplo possível” como você exige. Seria, como no exemplo que dei, raciocinar sobre um quadro sem levar em conta o seu autor. Afinal, quem fez o homem? Quem lhe deu consciência? Foram os princípios da física? Isto, sim! é impossível. E se você sabe que existe um Criador, você quer conhecê-Lo e ouvir Sua palavra.

Ambos falávamos sem nos exaltar – a serenidade em nosso diálogo permitia que fizessem parte do momento sensações várias que estimulavam nossa reflexão: a visão do mar azul, a brisa morna, o borrifo das ondas que vez por outra nos atingia sobre a muralha, algumas aves…

— Deixa-me devolver-lhe a pergunta – disse ele. – Você tem algum motivo que não aquele da “causa última das coisas” ou “porque fui educado na santa fé católica” e coisas do gênero, para acreditar em Deus?

Sua pergunta me fez sorrir.

— Sou um geólogo! – respondi. – O estudo da Terra leva qualquer um a refletir sobre um Criador. Imagina aqueles que estudam os astros!…

Foi só então que finalmente nos apresentamos, sem que ele dissesse muito a seu respeito. Apenas que era do Sul, estava num programa de turismo de grupo e que os companheiros haviam decidido ir até São José da Coroa Grande, e o apanhariam ali no retorno.

Está hospedado na pensão? – perguntei-lhe. – Lá poderemos continuar a discutir o assunto, esperando pelo jantar. Talvez Dona Baixa nos ajude com alguma luz sobre a questão.

Descemos a senda do penhasco sem pressa, alcançamos o baixio que ia dar na praia norte e, pelo caminho entre os coqueiros, fomos nos acercando do aldeamento de pescadores, nos últimos momentos da luz da tarde. A pensão era um casebre um pouco mais amplo que os demais, numa posição privilegiada na longa fileira de choupanas, com um extenso coqueiral e a ampla praia bem à sua frente. Entre os coqueiros havia um pequeno coreto de paus roliços, com uma lanterna a gás pendurada no centro do teto de palha. No mar, as ondas rolavam sua longa faixa de espuma já sem brilho, em um vasto arco que atingia ao mesmo tempo as areias ao longo de toda a praia próxima e distante.

No trajeto havíamos conversado sobre os hábitos daquele povo simples e ao jantar, tendo o sulista se interessado pelo que lhe falei do meu trabalho, não retornamos ao assunto de nosso debate anterior.

À noite houve um ensaio de música para uma festa tradicional que estava próxima. Alguns músicos, sentados nos bancos toscos do coreto no meio dos coqueiros (uma cabana aberta com um parapeito circular e teto de palha), tocaram pífaro e uma rabeca, e alguns pescadores cantaram versos ligeiros de muita rima, um canto meio gritado e aflito, até que as rodadas de cachaça reduziram o canto a conversas arrastadas e muito riso. Já havíamos nos recolhido aos nossos pequenos quartos quando as vozes cessaram e apenas o ronco das ondas vez por outra se fazia ouvir no silêncio da noite. No entanto, eram apenas 9 horas!

Na manhã seguinte, levantei-me cedo, e saí para fazer observações no penhasco e nas rochas vulcânicas circunvizinhas cobertas pela mata. Após um dia de trabalho, caminhando para oeste até onde principiava o canavial, e retornando pelo sul ao cair da tarde, foi com verdadeiro prazer que, depois de um mergulho no mar e um banho de caneco para retirar o sal, voltei a encontrar o ateu na pensão. Como eu, ele ia passar ainda uma noite no local.

Ao jantar, depois de trocarmos algumas palavras sobre o nosso dia, de prosearmos um pouco com Dona Baixa e saborearmos o seu pirão de peixe, voltamos ao assunto da véspera:

— Você ficou me devendo a resposta à minha pergunta – disse-me ele. – Além de uma conjectura sobre a “causa última”, ou do fato de ter sido educado católico, existe na verdade algo que o convença da existência de Deus? Nos distraímos com outros assuntos e você não chegou a expor suas razões.
— Bem… Uma coisa que me impressiona muito são os milagres – respondi. – Eu os tomo como a principal, e talvez a única prova direta que se pode ter da existência de Deus, e também dos Santos, de Maria e de Cristo.

— Fale-me apenas de Deus – atalhou ele.

— Mas você certamente considera ridículo alguém acreditar em milagres…

— Oh, não! Não considero essa crença ridícula. Na verdade, porque a ideia da bondade infinita faz parte da ideia de perfeição, a um ser que fosse perfeito não poderia faltar o deixar-se provar concretamente. Se Deus existe como os judeus e os cristãos o idealizam, como um ser perfeito e misericordioso, negar Ele próprio a prova de sua existência haveria de contrariar Sua perfeição. Apenas não entendo porque os milagres seriam prova, uma vez que não passam de fatos mal interpretados, como está definitivamente demonstrado.

A conversa que iniciamos à hora do jantar, continuamos depois à beira da praia, sob a luz de intenso luar, sentados na borda de uma jangada deixada na areia ao pé dos coqueiros.

Não seria possível provar Deus somente no campo físico, como se prova em laboratório a pressão dos gases, a dilatação dos metais. As provas da existência de Deus precisam ser buscadas onde a Sua natureza e a natureza do homem se tocam, ou seja, onde a espiritualidade e acontecimentos extraordinários ocorrem juntos. E também não seria possível essa prova, sem que fosse vontade Dele. E, para mim, os fatos que representam essa convergência das duas naturezas e das duas vontades são principalmente os milagres. Deus se deixa provar numa relação de Sua vontade com a vontade humana, justamente quando concede o milagre. É uma relação íntima em que apenas o indivíduo que recebe o milagre tem absoluta certeza de que é um ato extraordinário em que Deus se manifestou, e somente para ele trata-se de uma resposta às suas súplicas e à sua fé.

Esperei por uma objeção que não veio. Meu companheiro, curvado e algo absorto, desenterrava uma pequena concha da areia. Vez por outra pequenos caranguejos emergiam de seus buracos e saíam a andar de lado; alguns se detinham para nos fitar.

Como o ateu nada dissesse, prossegui:

— Para me fazer mais claro, deixa-me dar um exemplo. Um colega meu, passando por um lugar ermo ao norte da serra da Bocaina, em Minas, soube de uma criança que fora mordida por uma cascavel. Tomou a criança dos braços da mãe e a levou em seu carro para um hospital distante algumas centenas de quilômetros, em tempo de salvar-lhe a vida. Ora, somente para a mãe da criança o acontecido foi um milagre em resposta às suas orações. Qualquer outra pessoa dirá que não foi nada de particular entre Deus e aquela mãe, e que foi apenas sorte.

Então, Deus apenas manipula probabilidades?

Não digo isso, mas, ainda que Ele intervenha e inverta a ordem natural, o milagre é sempre contestável, sempre é explicável como simples fenômeno físico, ou como um fenômeno psicológico ou simplesmente atribuível à sorte, a uma certa probabilidade estatística, como se nenhuma lei da natureza houvesse sido transgredida.

O ateu objetou:

— Mas o significado de Milagre é, sabidamente, o contrário do que você diz: de acordo com a palavra latina miraculum, é alguma coisa maravilhosa, que é evidente para todos.

Perfeitamente! O indivíduo se maravilha e em grande emoção paga uma promessa difícil, quando ele ou a sua família recebem um milagre como clara resposta às suas preces.

Mas teria que ser algo inquestionável, como um homem que não tivesse as duas pernas e de repente se apresentasse com elas! – impacientou-se o ateu. – Uma coisa assim jamais aconteceu… Que eu saiba!

Veja! Se tal fato acontecesse, estaria claramente e perante todos violada a lei natural. Não sobraria para ninguém aquela margem de dúvida que, em minha opinião, caracteriza o milagre. O poder de Deus estaria claramente manifestado a todos, o que tornaria completamente dispensável uma fé previamente existente. Para acontecimentos assim, capazes de despertar a fé naqueles que não a têm, deveríamos reservar a expressão testemunho.

O milagre – prossegui – resulta de uma súplica feita com fé, enquanto o testemunho é um ato espontâneo de Deus. O milagre é secreto; o testemunho, ao contrário, é público e precisa ser investigado. O milagre, mesmo quando pedido simultaneamente por muitos, é para cada pessoa um entendimento particular com Deus. O testemunho apenas raramente é dirigido a um só homem, como foi excepcionalmente no caso do apóstolo Tomé. Enquanto o milagre inunda de felicidade, o testemunho infunde respeito e temor.

Fico surpreso! – disse o outro. – Os fatos que estão no chamado Novo Testamento, em que a natureza teria sido claramente contrariada, assim como Cristo caminhar sobre as águas ou elevar-se ao céu ou, no que é dito ser o Velho Testamento, a travessia do Mar Vermelho pelos judeus, são narrados como milagres.

O filósofo David Hume faz uma crítica aos fatos bíblicos dessa natureza – respondi. – Mas lhe faz falta essa distinção que eu faço, entre milagres e testemunhos. Apesar de que ele se refere indistintamente às duas coisas, seu texto é dirigido mais ao “testemunho”, e neste caso está também São Tomás, de quem se pode ver que Hume tomou parte da sua definição de milagre.

— Entendo seu ponto de vista – disse o ateu. – Resumindo: não se prova a existência de Deus com a evidência própria do método científico, porém está ao alcance do homem encontrar essa prova de modo particular, nos milagres…

— E como todo aquele que procura tal prova com certeza a encontrará, ela tem a universalidade necessária a toda demonstração científica – completei sem vacilar.

A lua cheia trouxera a maré alta; franjas de espuma arrojavam-se aos nossos pés. A aldeia estava adormecida; já passava muito das nove horas!

Ergui-me, mas o ateu permaneceu sentado. Olhava o mar que se avolumava mais a cada onda, como se estivesse hipnotizado pela massa negra que agitava tentáculos para nos alcançar. Surpreendeu-me o tom amargo de suas palavras quando disse, a voz embargada pela emoção:

Sabe?… Eu e minha esposa nos separamos, por culpa minha! meus filhos não me perdoam. Viajo a fim de esquecer a coisa toda.

Ao ouvi-lo percebi, consternado e surpreso, que ele realmente sofria. Já o considerava um amigo. Diante do seu abatimento, esvaiu-se de súbito o meu entusiasmo pelas minhas teses. Porém, forçado a ser coerente com tudo que havia dito, ainda lhe disse, hesitante: – Confie em Deus!

Ele baixou a cabeça e nada disse, talvez resignado a fazer uma concessão absurda.

Retornamos à pensão, passando pelos casebres brancos, fechados e silenciosos. A noite havia esfriado. A maré trouxera um vento frio; o farfalhar das palmas do coqueiral agora era mais forte e opressivo, e no céu a lua começava a ser oculta por farrapos de nuvens escuras que se moviam ligeiro para o continente.

*

Passado não muito tempo, tive notícias do meu amigo. Sobre a mesa em meu escritório, no Recife, estava um envelope com carimbo do Sul. Continha uma fotografia em que, bastante rejuvenescido, ele tinha um braço sobre os ombros de uma mulher, olhando-a com ternura, os dois ladeados por um casal de jovens, todos sorridentes. No verso havia apenas uma frase: “Caro geólogo, anote este milagre!”

Rubem Queiroz Cobra

NOTA: O argumento sobre os “milagres” o autor mencionou anteriormente em seu livro Filosofia do Espírito (Ed. Valci, Brasília, 1997, ed. esgotada). A crítica de David Hume está no Capítulo X (Parte I e II) (“Dos Milagres”) do seu Enquiries Concerning Human Understanding. O trecho sobre milagres em São Tomás está na Summa Contra Gentiles, PARTE III, e a posição a respeito do mal é uma contestação a Leibniz, na sua Teodicéia, feita por Voltaire, no Cândido.

Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1.

Página lançada em 04-12-2000.

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – Diálogo com um Ateu. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2000.