Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
O detetive Mignone tinha novo endereço. Suas economias lhe permitiram adquirir aquela nova morada no primeiro quarteirão da principal rua do bairro, que começa onde termina o parque, e bondes vazios faziam a volta circulando na praça para retornar ao bairro. Ele era um homem de aparencia determinada. Seu porte ganhava com o uso de um sobretudo folgado que comprara em Buenos Aires. Era uma capa de chantung parecida com a do detetive londrino Cherlock Holmes. Os bolsos largos e fundos lhe permitiam carregar consigo as provas que colhia no local de um crime. Uma pelerine cobria-lhe as costas, do pescoço até o cotovelo, fazendo dele uma figura simpática. Seu auxiliar Aroeira dormia e trabalhava no quarto contiguo ao escritório. A primeira reunião do dia era ao café da manhã, mas detetives não tem hora certa para trabalhar. Quando dona Maria avisou que o café estava pronto, parecia que um dia rotineiro começava. Ela sempre deixava o jornal sobre a mesa, junto ao guardanapo, aberto na página que continha alguma coisa de interesse para o patrão. Havia um retrato de uma mulher da sociedade impresso, e abaixo dele a descrição de coisas roubadas aquela noite em sua casa.
–“Joias, sempre as joias”, resmungou a empregada.
Daquela vez, como de vezes anteriores, o delegado pediu a colaboração do detetive. Passou-lhe a pasta contendo tudo que a polícia já anotara no local do crime, mais o depoimento da socialite dado aos policiais que atenderam o seu chamado pela madrugada.
— Uma imagem lasciva, com uma camisola de rendas pretas. Veja como ela se mostra, observou o detetive. Parece que se preparou para ser fotografada. Está longe de ser o rosto vincado por um desespero de quem perdeu o marido e um monte de joias, como ela afirma. O ladrão certamente havia obrigado o marido a levantar-se, e o levara amarrado depois de esvaziar o cofre.
O grupo de policiais voltou à residência durante a manhã, e o detetive, juntando-se ao batalhão, teve a sua primeira impressão confirmada quanto à personalidade da vítima: pouco sensivel, altiva, autoritária e determinada. Os policiais não encontraram o que perguntar diante da sua aparente arrogância. Retornaram à delegacia e o detetive ficou a sós com a vítima para uma conversa em que queria esclarecer alguns pontos.
— A senhora deve me dizer tudo que possa me ajudar a encontrar seu marido e suas joias, disse o detetive com um sorriso, tentando ser amável. Mas no íntimo sabia que, nos anais do crime, fosse por vingança, ambição, ou paixão, geralmente eram as mulheres que eliminavam seus maridos.
Sem esconder sua má vontade, ela respondeu que tinha uma relação amistosa com o seu marido, que nunca brigavam, mas não sabia o que havia se passado porque o quarto em que ele dormia era no outro extremo da casa. Disse mais… que tinha apenas uma irmã morando na cidade, que era religiosa e morava numa casa conventual. Chamava-se Mayla. “Ela é a proprietária desse matagal ao lado de minha casa”, disse.
O detetive anotou o nome da irmã freira, e a orientação de como chegar à casa conventual; desculpou-se pelo incomodo que lhe causava e avisou-a de que depois de analisar os dados que a polícia já tinha em mãos voltaria para conversar mais uma vez. Estava ansioso por conhecer essa irmã na casa conventual.
O perfume do campo invadiu seu carro, seguido do cheiro do laranjal do pomar, quando estacionou na calçada do convento. A noviça Laura o aguardava, aguando alguns vasos de flores em pilares de pedras no jardim. O detetive estendeu-lhe a mão, e sentiu o calor de sua simpatia, e correspondeu com um largo sorriso como quem encontrasse uma amiga de muitos anos. Ela era aparentemente humilde, disposta a ouvir e não deixava dúvida de que cooperaria no que lhe fosse solicitado.
A noviça o conduziu para a sala em que as irmãs recebiam suas visitas. Sentaram-se, ela e o detetive. Ele colocou-a a par da sua missão de esclarecer sobre desaparecimento do marido da socialite, e do sumisso de suas joias.
Laura disse que Mayla não estava no convento. Ninguém sabia aonde fora. Se queria informações sobre ela, precisava falar com a madre superiora.
A oração da tarde não terminara. Sentados na sala de espera, ouviam a reza na capela ao lado.
A superiora surgiu na porta da sala – a reza havia subtamente terminado. Estava acompanhada de várias freiras, que a deixaram para irem reassumir suas atividades de rotina, cada uma tomando um caminho diferente.
A superiora dirigiu-se diretamente ao detetive.
— Presumo que a senhora já soube pelos jornais sobre o desaparecimento de um homem, e o roubo das joias de sua mulher.
— Sim, disse a superiora. A mulher e seu marido são nossos conhecidos. Eles são benfeitores desta Casa.
— A polícia já tem o depoimento dela, a senhora Leonine. Vim até aqui para saber da irmã dela, a freira Mayla, alguma coisa que interesse ao caso, mas soube pela noviça Laura que ela está ausente. O que a senhora pode me dizer sobre a irmã da vítima do roubo? Por exemplo, pode comparar essas duas irmãs?…
–Ambas têm temperamento parecido, embora sejam pessoas boas. Parece ser questão de educação. Elas têm um jeito autoritário, duro, às vezes quase belicoso.
— O marido, o Sr. Ebert, então tinha motivos para se queixar dos modos como era tratado pela esposa? Sabe se chegaram a brigar?
— O sr. Ebert é uma pessoa de fino trato. Vinha pontualmente trazer sua colaboração, e eu sempre o retinha para um café. Mayla quer ser freira. Está aqui para verificar sua vocação. É hospede, como retribuição pelo que recebemos do senhor Ebert. Desde o dia primeiro, Mayla simplesmente desapareceu. Sumiu também o nosso jardineiro. Desculpa-me, é só o que tenho para informar. A superiora estendeu a mão para o detetive, com um sorriso nos lábios. Ele não teve alternativas senão sorrir também, agradecer e deixá-la.
Quando o detetive parou o carro de volta da visita ao mosteiro, mal conseguiu alcançar a porta de tantos repórteres que o aguardavam. Havia muita agitação, barulho e muitas perguntas ao mesmo tempo.
“Acha que resolverá esse caso também? Terá a mesma sorte?”, perguntou um deles. Já entrando na delegacia, apesar de ser quase impossível caminhar, respondeu o detetive: “Tenho já uma boa pista”.
O detetive, fechando a porta do gabinete do delegado, ajudado pelo guarda da entrada, pediu um pouco de tempo mais ao delegado para concluir o inquérito. Nesse instante, recebeu um telefonema da socialite, dizendo que iria colaborar no que fosse possível e por isso se julgava livre para fazer uma curta viagem para descansar. O assédio dos repórteres à sua residência estava insuportável. Ela disse que estaria de volta ao final da semana seguinte. O delegado e o detetive concordaram. .
O detetive tinha a intuição de que encontraria um corpo enterrado próximo da sua casa. Pediu um militar para auxiliá-lo, pás e um carrinho de mão, e seguiu para o endereço da suspeita na caminhonete da polícia.
Podia ver que a casa da mulher que investigava estava de fato fechada, sinal de que ela viajara como havia dito. Não procuraria no seu jardim que tinha piso espesso em concreto e cerâmica, como observara, mas no lote vizinho, da sua irmã. Abriu o portão de ferro da entrada do lote procurando indícios de escavação, e começou a examinar o chão, ele e os outros dois homens. O terreno não era de todo plano, e havia muitas moitas de capim. Seu auxiliar Aroeira logo fez-lhe um sinal para ver o que encontrara no canto mais afastado do terreno: manchas de barro vermelho, como se após um serviço, uma pá houvesse sido arrastada por alguém sobre a cobertura de capim e arbustos baixos.
Encontraram onde cavar logo perto, e deram com o que procuravam. Jubiloso com o achado dos corpos, o corpo do senhor Ebert por baixo do corpo de um homem negro, o detetive teorizou que Leonina matara e enterrara o marido, como ele havia intuído. Mas não havia como explicar o corpo do negro e onde estaria a caixa de joias.
Os restos mortais foram entregues ao legista na delegacia. A fama do detetive voltou a crescer. Na tentativa de encontrar alguma pista sobre o segundo corpo, o detetive Mignone voltou ao local acompanhado apenas de seu auxiliar Aroeira. O morto talvez fosse alguém que morasse na mansão e que – porque flagrara o crime – fora também assassinado.
Usando de toda cautela, entraram na mansão, e chegaram perto da lavanderia. Uma mulher tentava remover manchas de sangue com um produto bastante forte. Quando estendeu a peça para secar, parecia ser o hábito de uma religiosa.
Em um lance rápido, os dois homens prenderam e algemaram a mulher. Mesmo algemada, ela tentou pegar uma pistola sobre a máquina de lavar roupa. Aroeira foi mais rápido e desarmou-a. Os dois retornaram levando a presa à delegacia onde houve novamente um grande reboliço.
O detetive pediu à superiora do convento, que viesse para identificar os corpos. Ela concordou apenas em enviar a Laura. O detetive foi buscar a noviça acompanhado de um cortejo de carros de repórteres. Laura prontamente identificou a mulher presa como Mayla, e os dois homens como o senhor Ebert, que estava desaparecido, e o jardineiro do convento que era muito amigo de Mayla.
CONFISSÃO DE MAYLA
Ante o fato de que foram descobertos dois corpos enterrados na sua propriedade, a futura freira confessou que planejara matar o marido da irmã para junto as duas instalarem uma indústria no seu terreno. Como parte do investimento inicial, ficaria com as joias. Pretendia se tornar freira para não levantar suspeitas. Convencera o jardineiro do convento a ajuda-la guardando absoluto segredo, prometendo-lhe como paga favores sexuais.
Após a liquidação do marido da socialite, deixado numa cova aberta, Mayla matou com um tiro o jardineiro, que caiu morto sobre o corpo do homem na vala que ele própio abrira.
Leonina antecipou sua volta porque era solicitada a identificar a irmã, e colaborar em várias providências indispensáveis. Mayla confessou que as joias estavam escondidas no convento em uma caixa enterrada sob um pé de laranjeira no pomar.
O detetive sofreu com o bom humor dos repórteres, porque “atirou no que viu, e acertou no que não viu”.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 06-07-2024.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Crime na Casa Conventual. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2024.