Hoje: 21-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Sartre – Grande filósofo! – sentava-se a uma das mesas do Café de Flore para escrever seus artigos e livros, e receber as visitas agendadas de seus admiradores. O De Flore, na confluência do Boulevard Saint Gérmain-dês-Prés com a Rua Saint Benoit, é famoso até hoje devido a esse freguês ilustre.
Mas em época anterior a Sartre, já era costume dos intelectuais terem o seu ponto de encontro em torno à mesa de um Café.
Na Rua Garrett, no Chiado, em Lisboa, na calçada – ou esplanada – do Café A Brasileira, há uma estátua em bronze de Fernando Pessoa sentado a uma mesa, à esquerda de quem chega. Naquele estabelecimento o poeta se encontrava com outros poetas e pensadores portugueses, para beber e conversar.
No Rossio, o Café Nicola foi o predileto dos intelectuais lisboetas por varias décadas. Em suas mesas fazia ponto Manuel Maria Barbosa Du Bocage.
Essa coisa de ter um Café – e se possível uma mesa cativa – para encontrar colegas das letras e admiradores, foi um prazer cultivado também pelos poetas e escritores mineiros. No Café Estrela, que abria para a Rua da Bahia, nº 1005(**), na confluência desta com a Rua Goitacazes, Carlos Drumond de Andrade, Ciro dos Anjos, Pedro Nava, Emílio Moura, João Alphonsus e Belmiro Braga se encontravam para comentar a vida belorizontina, fazer a declamação experimental de seus versos, e esboçar ilustrações e temas de suas futuras obras, inovadoras da literatura nacional. Em seu livro de memórias “Beira mar”, editado pela Nova Fronteira em 1985, Pedro Nava, já então morador no Rio, confessa:
“As mesas brancas me tentavam. Eu sacava do lápis e ia enchendo o mármore de meus esboços, tal qual contou Drummond em poema recente e magistral.
Tua cerveja resta no copo, amarga-morna.
Minas inteira se banha em sono protocolar.Nava deixou, leve no mármore, mais um desenho.
É Wilde? É Priapo? Vem o garçom apaga o traço.”
Mas, as razões que levavam os citados autores a se encontrarem todas as tardes nos seus Cafés prediletos, eram bem diferentes dos motivos de Sartre. O celebre escritor e filosofo francês não dispunha de uma residência na qual pudesse trabalhar, receber amigos e conceder entrevistas. Sua morada, no Havre e em Paris, foi sempre um quarto alugado com vários lances de escadas para subir, em velhos prédios de fachadas encarvoadas, em ruas estreitas e secundarias, junto a docas e terminais ferroviários barulhentos. Essa a razão de fazer de sua mesa no Café de Flore o seu escritório. Por isso Sartre não conta!
Hoje, as esquinas e cafés mudaram-se para a internet – criaram-se as redes de relacionamento virtual –, mas eu queria aquela experiência dos antigos. Então, excluído Sartre, teria eu que me ombrear em importância e fama com os mineiros que citei, para merecer o direito a ter o meu Café? Eu não esperaria por isso! Nunca seria capaz de escrever, como eles, crônicas gentis e mansos sonetos para serem lidos com prazer até o fim. Acredite-me o leitor! Tinha apenas o desejo humilde de passar uma ou duas horas fora da minha biblioteca, trabalhando em um lugar aberto e agradável. Em meu laptop de 500GB de memória, eu podia consultar meus livros eletrônicos e todos os meus arquivos de trabalho. Acrescente-se o celular!
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Logo descobri uma mesa à qual me sentar. Vou dizer onde – e isto não é propaganda.
O Café Empada Brasil integra um projeto de Shopping Center com lojas de muito movimento, mas ao qual apenas recentemente se adicionou uma escada rolante. Além de um ponto estratégico, o Café é muito agradável – Patrícia e suas colegas se excedem em solicitude e competência no atendimento aos clientes. Um pequeno armário de livros à disposição dos fregueses, junto a uma das mesas, criava um recanto discreto que me habituei a ocupar.
Há muitos outros shoppings de alto padrão nas vizinhanças, mas que não misturam lotéricas, cafés, bancos e um supermercado. Por esse fato mesmo, não se verá lá o que se vê aqui: pessoas de variados níveis sociais e culturais, estrangeiros e nacionais, caindo em categorias e tipos na medida que o observador inventa critérios para diferenciá-los.
Assim, enquanto tomava um cappuccino lungo e revisava os meus textos, não pude deixar de observar algumas mulheres – jovens ou maduras –, de presença bem marcante, que transitavam por ali.
Meu interesse por elas surgiu depois de, casualmente, identificá-las nas revistas e jornais da cidade, onde comentavam suas festas, falavam da decoração exótica de suas casas e jardins, e até –Pasmem!– esmiuçavam para o público o conteúdo de suas vistosas bolsas de dez e vinte litros. Desfilavam em suas páginas com vestidos de marca, saltos decimétricos, e joias caras cujos desenhos imitavam adereços baratos de bijuteria. Vanguardeiras radicais da moda, não hesitam em usar qualquer lançamento bizarro que os enfeitadores italianos promovessem em Milão ou Nova York. Quando entrevistadas sobre suas viagens, acabavam se traindo: No seu “circuito gastronômico e cultural” estavam como pontos prioritários as suntuosas Disneylândias da moda na Bahnhofstrasse de Zurich, na Montenapoleone, em Milão, na New Bond Street de Londres, na Fifth Avenue em Nova York, ou – com filas, empurrões e cotoveladas para entrar – na Avenue des Champs Elysées e Rue Saint Honoré, em Paris.
Tal orgia de exibicionismo espicaçou minha curiosidade. Parecem ter uma incontrolável necessidade de se promoverem publicamente. Apelidei-as “As enfeitadinhas” – as Cleópatras de nosso tempo. Não é, portanto, difícil de entender que, para uma enfeitadinha, até estacionar o carro de través, ocupando duas vagas, seja uma forma de brilhar, como uma baronesa da impunidade.
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Um sacerdote zeloso e culto que por algum tempo visitou a paróquia, logo distinguiu a enfeitadinha e o seu par simétrico, o superboy dono de coloridas, espelhadas e rasteiras papa-léguas Lamborghini, Porsche, Ferrari, e outras. Preocupado em apontar falhas sociais em relação a certos parâmetros da dignidade humana, e em exaltar as virtude que lhes correspondem, pronunciou um sermão ácido, vitriólico, condenando a vaidade, as festas, e a ostentação das riquezas.
concordo que a enfeitação é um vício. Porém é um mal apenas relativo. Quanta gente na China e na Índia não depende, para sobreviver, de que as vaidosas enfeitadinhas comprem as bolsas de Louis Vuitton em Paris?
Está muito claro que os arquitetos, decoradores, joalheiros, cabeleireiros, e toda gama de enfeitadores adoram as enfeitadinhas. Convidam-nas para desfiles, inaugurações e coquetéis de lançamento de suas coleções; em torno delas gira todo o seu negócio, e elas representam a sua salvação.
E não é somente na economia que, da vaidade, pode resultar algum bem.
Porque precisam aparecer no suplemento dominical, as enfeitadinhas promovem festas, recepções, premiações, e saem à cata de personagens às quais homenagear. É da sua índole considerar os diplomatas o extrato mais nobre da sociedade e por isso estão mais que prontas a promover homenagens às embaixatrizes que chegam ou que estão de volta aos seus países. É um grande serviço! Graças a elas os funcionários estrangeiros que servem no Brasil levam o testemunho da generosidade e do calor do povo brasileiro, o que é muito bom.
Mas, toda mulher rica é uma enfeitadinha? Obviamente, não! Quantas mulheres elegantes não passam por ali, a observarem as vitrines mais conservadoras! Não estão preocupadas em brilhar, apenas obedecem, com suas roupas e joias, a um estilo sóbrio de elegância, adequado ao que fazem, ou em respeito ao ambiente que frequentam. Absorvem-nas os interesses da família e a prática de ideais profissionais que julgam enobrecedores.
É dever do filósofo moralista apontar as falhas sociais em relação a certos parâmetros da natureza humana e às virtudes que lhes correspondem. O ser humano não pode trair aquelas faculdades da alma com que foi agraciado, e que o diferenciam dos animais. É racional e não pode proceder de modo irracional; é livre e não pode escravizar-se ao vicio; tem sensibilidade e não pode agir como um ser insensível e ofender a sensibilidade alheia; é social e não pode se fazer egoísta e antissocial. Portanto, considerados os dois últimos predicados citados, a elegância é uma espécie de “dever estético”, do qual não se pode fugir. A enfeitação é um vício; a elegância, ao contrário, é prazer bem dosado, e cria o que é fundamental no convívio social: a simpatia!…
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— Por favor, Patrícia! Você pode me trazer mais um café?
Rubem Queiroz Cobra
(*) No prefácio ao livro Ágape, do P. Marcelo Rossi (Editora Globo, 2010).
(**) Número indicado por Eunice Vivacqua à pg. 23 do seu livro “Salão Vivacqua” (Ed. Fund. João Pinheiro, B.Horizonte 1997).
Página lançada em 31-10-2010.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As enfeitadinhas do Lago Sul. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2010.