As Filhas Adotivas

Hoje: 18-10-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

IRMÃ DOMINIQUE

Pela manhã a prestativa Jorgette bateu à porta de sua cabine, conforme se prontificara a fazer na noite anterior, coisa que Martine agora se felicitava por haver aceito: teria acordado demasiado tarde, depois da noite mal dormida. Porém, como as batidas persistissem, Martine atendeu à porta.

— Encontrei o seu telefone celular e sua agenda sobre a mesa do jantar – disse Jorgette. Com um sorriso meigo, entregou os objetos, mostrando-se feliz com o obséquio que fazia. Martine agradeceu, um tanto surpresa com seu descuido. Mas sua surpresa aumentou ao verificar que alguém entrara na cabine e abrira sua frasqueira; levara um dos frascos de perfume, deixando outro aberto. Certamente a mesma pessoa apanhara o seu telefone e também – ela não suspeitava para quê – a sua agenda, e os deixara depois na mesa da sala. Só poderia ter sido uma das detentas! Mas qual delas? Precisava, com urgência, ler a ficha prisional de cada uma.

*

Após o café, enquanto o barco permanecia atracado em Marseillan, Martine fez uma primeira exposição sobre o seu projeto e os problemas mais comuns da adoção. Viu-se, então, frente a um dilema inusitado. Ao lamentar que o grupo fosse pequeno – pois elas eram apenas três, mas esperava que colaborassem –, a irmã Dominique retrucou:

— Na verdade você não tem apenas três. Somos quatro: eu também sou uma filha adotiva.

Surpresa, Martine não conteve a exclamação:

— Ah! por isso o padre Justin quis incluí-la com tanto empenho!

— Eu também desejei participar…

— Não posso aceitá-la, irmã. Eu estaria me desviando da minha linha de pesquisa, infelizmente! O padre Justin cometeu um engano. A senhora não tem o perfil das outras três, é de uma outra classe, é uma religiosa.

— E se eu lhe disser que, ainda mais que elas, eu merecia estar detida?

Todas fitaram a freira, surpresas.

— Matei minha mãe adotiva. Embora ninguém queira me condenar, eu me condenei. Portanto, somos quatro condenadas!

— Irmã, a senhora não está falando sério! – disse Martine procurando manter-se calma.

Naquele momento, Gianluca tocou o sino no convés da proa, sinal de que deviam descer à sala de refeições para o almoço.

Antes de descer, Martine quis ligar para a orientadora, e dar notícia do início do projeto. Porém, a bateria do seu celular havia se esgotado. Quem se apossara dele fizera ligações durante toda a noite. Utilizou por empréstimo o de Gianluca.

Todas comeram com muita disposição, não apenas porque a reunião fora prolongada e cansativa, mas como um remédio para a emoção levantada com a revelação da irmã Dominique. Louise havia preparado um prato de ostras, um produto pelo qual era famoso o Lago de Thau.

Após o almoço, confiado em que não haveria enjôos porque não havia vento e as águas salgadas do lago pareciam quase um espelho, Gianluca movimentou o barco e deixaram Marseillan, navegando rumo ao sul, buscando a entrada do Canal du Midi, marcada pelo farol de Onglous (onglú). A irmã e as detentas reuniram-se no convés para apreciarem o cenário tipicamente mediterrâneo: céu límpido e azul, as águas cintilando ao sol e grandes bandos de flamingos. Havia muitos barcos atracados, com suas velas enroladas aos mastros aguardando o verão. Algumas lanchas brancas a motor passavam abrindo longas esteiras de espuma. Seus tripulantes saudavam as moças com buzina e acenos, o que elas retribuíam atirando beijos. Enquanto avançavam, Martine aproveitou o trajeto para pôr em ordem suas anotações em um arquivo, protegido por senha, em seu laptop.

Ao entrar no canal, Gianluca reduziu a velocidade do barco ao limite permitido, mas que seria suficiente para alcançar Agde (áde) no meio da tarde. Ao final da reserva natural de Bagnas (banhá) passaram a primeira eclusa das muitas a serem transpostas. As moças assistiram um pouco tensas as manobras de entrada do barco e o enchimento torrencial da câmara com as águas turvas do canal.

O cenário agora era outro. Em contraste com a natureza agreste do primeiro trecho, levantava-se uma linha de árvores que deitavam sombra e faziam a viagem muito mais agradável, sem impedir a vista, por entre elas, da paisagem verde, além, até o horizonte. Turistas temporões seguiam pelas margens de bicicleta ou a pé.

Na chegada em Agde, passada a eclusa aberta de La Prades (la práde), a irmã Dominique notou inquietação no olhar de Olga, quando o barco se aproximava do cais. Porém, olhando na mesma direção que ela, a irmã viu apenas carros estacionados com as frentes voltadas para o canal. Não teve tempo de observar mais, pois Martine chamava para a reunião e ela sabia que devia explicar para todas a confissão que fizera no encontro pela manhã.

*

— Minha mãe era uma solteirona milionária que adorava comer. Quando eu, já uma garotinha, a acompanhava às sorveterias, restaurantes e lanchonetes de luxo que frequentávamos, ela era capaz de trocar a minha taça pela dela, quase vazia, se achava que o meu sorvete podia estar mais saboroso que o seu. Dizia rindo, enquanto comia com suas amigas, todas gordas e divertidas, que enganara o juiz de órfãos para me ganhar como filha adotiva. Não sei o que ela fez, mas contar essa proeza provocava gargalhadas em todas elas.

— E você criou inimizade com ela a ponto de….

— De querer vê-la morta? Em minha mente de criança, esta passou a ser uma ideia muito viva a partir de um incidente que me magoou e enfureceu. A professora perguntou à minha turma na sala de aula: “De onde vêm todos os bebês?” A primeira e mais aplicada aluna respondeu prontamente: “Da barriga da mamãe!” Achei que aquela era minha chance de derrotar a sabichona da classe e, erguendo a mão, eu disse bem alto: “Mas não todos!…” – Pondo-me de pé, continuei, desafiadora: “Minha mãe disse que eu não vim da barriga dela.” – Olhei a primeira aluna da classe deliciando-me com a surpresa que lhe causei, e todos os colegas também se voltaram para ela. Mas ela fulminou: “Então você é filha adotiva!”

A irmã suavizou a voz para explicar:

— Eu não sabia o que significava uma “filha adotiva”, mas o laivo de desprezo na sentença e o olhar que me deitou a sabichona diziam tudo: era algo desprezível. Eu havia ficado de pé para falar, e sentei-me amargurada. A amargura transformou-se em raiva. Ansiava para que acabasse a aula e minha mãe viesse me buscar para cobrar dela me haver ocultado que eu era “filha adotiva”.

A irmã continuou, imitando a voz da mãe:

— “Ora, Mininha, eu já lhe havia dito o essencial e, quanto aos detalhes, pretendia contar quando você fosse mais velha.” – De pé, no banco de trás, dei-lhe um murro na nuca. Ela voltou-se, me socou a testa com o cotovelo e berrou: – “Seus pais, seja lá quem forem, não podem prestar. Foram capazes de tê-la ilegitimamente e, pior ainda, de abandoná-la.” – Eu chorei o dia inteiro.

Martine respirou fundo, como para aliviar-se da emoção ao imaginar aquela cena. Henriette ponderou calmamente:

— Esse juízo de que os pais biológicos que doam os filhos não prestam é geral, mas está longe de ser verdadeiro. Se realmente não prestassem, teriam abortado e se livrado da criança antes dela nascer. Mas não fizeram isso. Quiseram que vivesse e tivesse aquilo que eles, por alguma razão – que pode até ter sido uma boa razão –, não lhe podiam dar.

A freira disse:

— Quando a criança descobre que é adotada, ela sente como se tudo em sua vida perdesse o sentido. Perde a sua própria identidade, descobre que era falsa para si mesma. Ao mesmo tempo se ressente dos pais adotivos, por lhe terem escondido o fato. Quanto mais demoram a lhe revelar a verdade, maior o seu ressentimento. Uma meia verdade não é suficiente.

— E como você a matou? – perguntou Olga, tão friamente como um professor que pedisse a um aluno os detalhes técnicos de uma dissecação.

— Os parentes brincavam com ela dizendo que um dia ela ia morrer de tanto comer. E então eu passei a desejar que ela comesse muito e morresse logo. Lembro-me dela no clube aquele dia, tagarelando com duas amigas também volumosas e de pernas muito gordas, os maiôs parecendo mais faixas de trapos semi-ocultas pelas suas grossas pregas de gordura. Após terminar sua enorme taça de sorvete, tomou também a minha, igualmente grande, na qual eu mal havia tocado – e que deixei, bem de propósito, à sua frente –, e em seguida decidiu nadar. Então, alguma coisa lhe aconteceu; disseram que o coração não aguentou porque ela pulou na água com o estômago cheio. Ficou submersa, imóvel, estendida e voltada para baixo, seu vulto oscilando sobre o fundo de quadradinhos em azul-celeste, da piscina.

Martine meneou a cabeça e objetou, incrédula:

— Sua morte foi culpa de seu destempero; não foi a realização de seus planos infantis para matá-la. Francamente!… Não posso tomar um crime imaginário como evidência para minha tese, irmã Dominique.

Henriette quis saber:

— Você nunca procurou seus pais verdadeiros?

— Acho que nunca tive tempo para pensar neles. Mas, para mim, a paternidade espiritual do educador é o mais importante. A educação é que realmente põe a criança no mundo. Ela é a verdadeira paternidade tanto para os filhos biológicos como para os filhos adotivos.

Jorgette também estava curiosa:

— Quem passou a cuidar de você?

— Deserdaram-me. Seus parentes provaram que minha adoção fora ilegal e devolveram-me ao abrigo. Mas eu não queria ser adotada novamente. Lá permaneci até me tornar freira. Em minha adolescência decidi que essa era a maneira de pagar pelo meu crime: fazer o bem aos necessitados.

Martine pensou, desolada: precisava remover da mente de irmã Dominique aquele sentimento de culpa infundado. Mas isto teria que ser em outra oportunidade.

Louise veio lhes trazer biscoitos e refrescos.

Gianluca perguntou se podia prosseguir. Disse que, para o pernoite, seria melhor atracar o barco no cais em Vias (viá), um pouco acima no canal. Porém não pôde acionar o motor. A irmã Dominique pediu permissão para, utilizando a bicicleta de Louise, fazer uma rápida visita à catedral de Saint-Etiènne, uma fortaleza que haviam visto quase à beira do canal. Ao retornar, proclamou irritada que passaria a usar o véu de freira toda vez que deixasse o barco. Havia encontrado a catedral fechada e se aventurado a entrar na cidade, indo até a igreja de Santo André. No caminho, dois homens lhe haviam dirigido galanteios e propostas de namoro.

As moças riram e aplaudiram, mas a irmã reclamou, de mau humor:

— Nada que pudesse me deixar lisonjeada – disse. Eram dois sujeitos vestidos como palhaços, e suas bicicletas tinham discos multicoloridos presos nos aros das rodas.

Era muito tarde para que pudessem prosseguir viagem, devido ao horário de funcionamento das eclusas. Louise e Jorgette dispuseram a mesa para o jantar. Olga não teve as maneiras exuberantes da véspera; comeu em silêncio, parecia refletir sobre a solução de algum grave problema. Jorgette lhe pediu que contasse mais uma de suas anedotas, mas a resposta que teve foi um muxoxo de enfado.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 04-11-2004.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As Filhas Adotivas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.