Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
OLGA
Gianluca dirigia o barco com perícia, sem deixar de atender à curiosidade das moças. Na eclusa à saída de Agde, explicou-lhes, em correto francês, que aquela era a chamada eclusa Redonda, talvez a única no mundo com três comportas, de modo que os barcos vindos de Agde podiam seguir tanto para o leste como para o oeste. Passaram por Vias (viá) e mais adiante cruzaram a série de arcos com comportas corrediças, as chamadas “obras do Libron”, destinadas a manter o nível do canal enquanto durassem as cheias violentas do rio Libron. Seguiram-se a reserva natural de Roque Raute (roc rôte), à esquerda, – de onde saíram as pedras para a construção do canal – e, mais adiante, as vilas de Porte Cassafières (por kessefiér), Portiragnes (portirrânhes) e Ville Neuve (Vílenêv). Vencidas as várias eclusas desse trajeto, o barco passou frente à cidade industrial de Béziers (bêziê).
A vista da grande Catedral, plantada majestosamente no ponto mais alto de Béziers e sempre visível à distância, despertou na irmã Dominique o desejo de ir visitá-la. Mas, face ao que acontecera na véspera, Gianluca a dissuadiu. Poderia ser novamente molestada, mesmo que usasse seu véu de freira. Era meio-dia, as ruas estariam cheias de imigrantes entre os quais predominavam gatunos, traficantes de drogas e prostitutas. Além disso, a cidade era mal cuidada, e desagradável subir por suas vielas e escadarias, estreitas e sujas, até o alto onde estava a Catedral.
Passado o aqueduto navegável, construído sobre arcos de pedra por cima do rio Orb na saída de Béziers, chegaram às eclusas de Fontserannes (Fontsserrâne). Gianluca sugeriu que as moças caminhassem pela via lateral até o alto, enquanto ele manobrava pela escada de sete eclusas sucessivas que elevariam o Bel-Grosté até o novo nível do canal, mais de 20 metros acima.
Martine se protegia do sol com um pequeno chapéu de artesanato trentino; a irmã e as detentas com bonés de feltro colorido emprestados por Gianluca. Aquela curta caminhada a céu aberto, em meio a grupos de turistas que, da margem, acompanhavam curiosos a subida de suas lanchas e o funcionamento das comportas, foi o primeiro momento em que as internas sentiram o gosto da liberdade de que estavam privadas. Martine convidou-as para tomar um sorvete em um café-restaurante de onde podiam ver o movimento da gente, as manobras de elevação dos barcos, e a bela paisagem que se estendia para além, a começar da linha de altos pinheiros à margem da estrada, até o horizonte distante em que se via parte de Béziers. Mas a irmã Dominique ficou inquieta, notando que os dois palhaços fantasiados de Pierrô, que haviam tentado abordá-la no dia anterior, também subiam pela estrada ao longo das eclusas. Empurravam suas bicicletas, sem darem importância ao quanto pareciam cômicos aos turistas com que cruzavam pelo caminho.
Mas não foram os Pierrôs os únicos sujeitos estranhos a aparecer. Entrou no café-restaurante um chinês que, em meio a muitas mesuras, distribuía flores às mulheres presentes.
— Casa de Flores do China! China dá flores pra mulher bonita! – anunciava.
As moças aceitaram, encantadas, os ramalhetes. Aproximando-se de Olga, entregou-lhe o mais farto e belo de todos, e lhe disse quase ao ouvido:
— Aí tem telefone. – Olga recuou fugindo do seu péssimo hálito.
— Podem telefonar – disse o chinês dirigindo-se a todas. – China entrega flores qualquer lugar do canal.
Dito isto o oriental saiu apressado como se fugisse de uma imaginária fiscalização.
Para alívio da irmã Dominique, depois de mais de hora e meia de lenta passagem do barco de uma eclusa a outra, reembarcaram sem que as moças chegassem a notar os dois pierrôs.
*
No movimentado cais de Colombiers, (Colombiê) Vila para a qual era importante o negócio de aluguel de lanchas para passeios no Canal du Midi, Gianluca deteve o barco para o almoço e reabastecimento de combustível. Aquela tarde Martine escolheu ouvir a Olga. A jovem se mostrava inquieta e alheia ao grupo, e ela decidiu forçar sua integração e participação. Foi categórica:
— Vocês tiveram permissão para colaborar com minha pesquisa, e acredito que isto contribuirá para antecipar a liberdade condicional. Olga! se você mudou de ideia e não deseja mais participar do trabalho, seja franca e telefonarei para que venham buscá-la ainda hoje.
Martine não esperava chocar a loura altiva e arredia do modo que chocou. Ela empalideceu por um segundo, antes de protestar:
— Mas eu quero colaborar! Não me custa nada!
Após respirar fundo, como que para se refazer do susto, prosseguiu:
— Meus pais adotivos disseram que o temperamento é coisa hereditária. Eu era independente, rebelde, não ligava muito para as coisas, e isto com certeza era herança de meus pais biológicos. Se eles não prestavam, nada de melhor se poderia esperar de mim. Reclamavam que eu era causa permanente de discussão entre eles e assim, em lugar de ser um elo de união, como uma boa filha, eu estava, ao contrário, prestes a causar a separação do casal.
Olga fez nova pausa, em que acabou de se recompor. Martine se perguntava porque ela havia se mostrado tão assustada.
— Minha mãe dizia que, devido à minha origem, eu procurava amigas e amigos na classe baixa, entre gente que também não prestava e que, por essa razão, ela não podia convidar nenhum deles para meus aniversários. Uma vez disse que seu marido – meu pai adotivo – não seguira as recomendações dela, e escolhera mal a criança, e desde o início ela vira que não ia dar certo: “Uma criança de nariz arrebitado não podia prestar!”
As colegas não puderam conter o riso, mas Olga prosseguiu no mesmo tom. Parecia estar de novo no inteiro comando de suas emoções.
— Para acabar com todo aquele inferno saí de casa e fui morar com meu namorado e, é claro – agora foi sua vez de sorrir –, eu precisava ajudá-lo a vender o pó. Portanto, o que sou nada tem a ver com o fato de ter sido adotada, mas sim com a minha genética.
— Esse é precisamente o tipo de tratamento que faz a criança assumir uma identidade negativa: dizer que ela já nasceu ruim – disse Martine. – Mas independência e rebeldia podem ser qualidades positivas, se você souber tirar o melhor dessa herança. Por que não procura fazer isto?
Irmã Dominique acrescentou:
— Deve ser bem mais fácil transformar um filho que é adotivo em um delinquente que transformar um filho biológico em um criminoso, porque o pai adotivo tem muito mais armas para ferir.
— Porém, tudo depende da perícia em desconsiderar dos pais, e um pai biológico poderá ser tão ou mais eficiente nisto que um pai adotivo – contrapôs Martine. – As prisões estão cheias e lá quase ninguém é filho adotivo.
— Os pais adotivos dela é que deviam estar presos! – sentenciou Jorgette para o grupo, em apoio de Olga.
Ao fim da tarde, o barco passou por uma outra atração do canal: o pequeno túnel de Malpas (malpá). Gianluca explicou que havia ali três passagens sobrepostas. Logo abaixo do túnel navegável pelo qual passavam havia um outro túnel, mais longo, construído para a via férrea que ligava o litoral mediterrâneo a Bordeaux (bordô, ou aportuguesado: bordéus). Por baixo deste corria um terceiro túnel, construído por monges de um convento havia séculos, para escoar as águas do antigo pântano de Montady , e eliminar os miasmas que causavam doenças na região. Bel-Grosté passaria a noite no cais em Poilhes (poále). Irmã Dominique, protegida tão-somente pelo poder do seu véu de freira para enfrentar os Pierrôs, pegou a bicicleta e foi à vila assistir a missa da tarde na igreja de Saint-Martin (san martan).
Para o jantar Gianluca preparou um saboroso primeiro prato, Canederli agli Spinaci. Ele sabia que era um dos pratos preferidos de Martine nas temporadas de sua adolescência em Madona de Campiglio.
Gianluca e Louise não deixavam de colocar um pouco de cuidado em todos os aspectos das refeições, principalmente em respeito a Martine, quem eles sabiam que estava habituada ao mais fino padrão de tratamento. Todas as manhãs bem cedo faziam compras de pães, presunto, ovos, queijo, para o café, e o que mais necessitassem para a dispensa de bordo. Junto ao cais, em cada parada, havia sempre padarias, sorveterias e pequenas mercearias e frutarias. As refeições, servidas ao modo de bufê, em bonita louça, cristais e valiosa baixela, constavam em geral de pasta, saladas, além de pratos suplementares como sopas, assados e queijos. Para si mesma e para as detentas, Martine permitia cerveja ou um pouco de vinho apenas ao jantar, mas nenhuma outra bebida alcoólica durante o passeio. Sempre havia alguma excelente sobremesa e um saboroso café ao final de cada refeição.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 04-11-2004.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As Filhas Adotivas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.