Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
JORGETTE
Em Le Somail (le somáie), o canal passava pelo centro da vila. Gianluca falou a Martine da livraria de livros antigos e do museu de chapéus da vila. Mas, como havia grande quantidade de embarcações para aluguel atravancando o porto, prosseguiram em busca de melhor local para amarração. Mesmo fora da alta estação, este era um dos lugares mais animados do trajeto.
Atravessado o aqueduto navegável, alto de 20 metros sobre o rio Cesse – que também datava de fins do século XVII –, e passado ainda o centro vinícola de Ventenac (vantenac), Gianluca amarrou o Bel-Grosté no cais de Paraza (parazá), uma cidadezinha dominada por seu castelo. Após o almoço, convidou as moças para tomarem sorvete e café em terra firme, no Caffé du Port (cafê di por).
*
Aqueles quatro dias decorridos foram suficientes para Martine fazer um juízo da personalidade de Jorgette. Observou que a detenta havia se afeiçoado primeiro a ela, prontificando-se a acordá-la no horário todas as manhãs, e a pôr em ordem sua cabine. Depois se prendera a Gianluca: queria ajudá-lo nas manobras em cada eclusa, na amarração e no reabastecimento do barco. Em seguida se passara a Louise, que aceitava sua ajuda na cozinha com bom humor e evidente gratidão, tal como teria aceito a de uma passageira excêntrica quando o barco subia o canal lotado de turistas, no auge da temporada.
— Vamos chamar isso de “Desordem afetiva de apego”; depois encontrarei o termo técnico adequado – comentou Martine com a irmã Dominique. – Essa disfunção psíquica ocorre em crianças que vivem os primeiros anos sob os cuidados sucessivamente de várias pessoas. Nessa situação há uma busca indiscriminada de contacto sem nenhuma distinção ou preferência emocional: a criança não vê diferença entre uma pessoa e outra e seguirá um estranho que sorri para ela.
— Ontem, ao jantar, me pareceu que ela agora está mais ligada à Olga – disse a irmã. – Ela se antecipava ao garçom para servi-la.
O diagnóstico feito permitiu a Martine prever que Jorgette fora adotada com certa idade.
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À tarde estavam novamente todas sentadas à roda da mesa, sob o amplo guarda-sol, no convés da popa. Sem que nada lhe fosse perguntado, mas porque já conhecia o protocolo da pesquisa, a própria Jorgette iniciou seu depoimento. Seu sorriso meigo era encimado por um par de olhos estreitos, que fitavam agudamente, como se ela tivesse um plano para enfrentar com habilidade as perguntas da psicóloga. Agora sua sentença de prisão parecia ajustar-se melhor a sua pessoa – pensou Martine –, pois o juiz havia escrito: “personalidade dissimulada, oportunista, cleptomaníaca”, o que até ali lhe havia parecido algo descabido.
— Fui retirada do asilo aos seis anos de idade. Meu caso é, portanto, bastante diferente do de vocês três, que foram adotadas recém-nascidas. Penso que me achavam uma menina muito miúda e esquálida, eu não atraía o interesse das madames que apareciam na creche “para dar uma olhada nas crianças”. Poucas pessoas me notavam. Lembro-me de uma freirinha que me pegava pela mão e ensinou-me a desenhar, mas pouco depois ela foi transferida para um outro estabelecimento das religiosas. Senti tanto a sua falta! As outras irmãs estavam mais interessadas em como as meninas podiam cooperar na limpeza e nos serviços da casa. Vocês já perceberam como eu gosto de ajudar as pessoas. Aprendi no asilo que servir é o caminho para não sofrer! – finalizou, sorrindo com humildade, sem que seus olhos deixassem de ser vigilantes.
A irmã Dominique reagiu como se tivesse o dever de desculpar o tratamento que as irmãs davam às crianças no orfanato de Jorgette.
— Não acho que o modo como a criança é tratada no asilo deva se tornar uma lição de vida para ela – ponderou a irmã –, pois nisto as freiras podem cometer tantos erros, ou mais, quanto os pais adotivos ou os pais biológicos.
Jorgette não fez caso das palavras da irmã, e acrescentou:
— Ah! E havia também o padre que brincava de roda com as crianças no recreio ao anoitecer, após o Ângelus, depois de celebrar a missa e de jantar com as freiras. Era um orgulho para mim ajudar a noviça que o servia à mesa.
Martine notou, no semblante de Jorgette, que por uns instantes ela deixara cair a guarda, parecendo recordar-se de um pouco de felicidade a muito tempo esquecida. Aproveitou aquela brecha para indagar:
— Mas você foi adotada. Os seus pais adotivos, eles a amavam?
Jorgette olhou para ela embaraçada como se nunca tivesse pensado que podia ter sido amada por alguém. Hesitou em responder. Era evidentemente a passagem para um capítulo ainda menos atraente de suas memórias. Olhou para Olga, e recebendo de volta um sinal encorajador da amiga, prosseguiu:
— Diziam que me queriam bem, mas, tal como no asilo, nossa comunicação era um diálogo de ordens e determinações, e de respostas que não lhes interessavam. Haviam me adotado para fazer companhia a uma filha única, de minha idade, e eu devia seguir suas recomendações de como respeitar e tratar bem a minha “irmãzinha”. Apesar de ter apenas seis anos, eu tinha consciência da situação. Quando as freiras me entregaram ao casal, decidi que não deixaria escapar os dois pais que elas queriam me dar. Eu fazia o jogo da criança doce e afetuosa enquanto intimamente eu era muito independente e teimosa, e, acima de tudo, tinha secretamente minhas próprias regras. Quem eram eles para me dizer o que fazer e o que não fazer!…
— Consta de sua ficha que você responde por furto…
Jorgette ficou rubra. Não sabia até onde iam as informações obtidas por Martine a seu respeito. Explicou:
— Pelo Natal e em outras datas, quando a família se reunia em festa, eu era o objeto dos primos “legítimos” para tudo que eles, felizmente ainda ingênuos, desejassem. Minha completa submissão era o único modo de me integrar, de fazer parte. E quando queriam alguma coisa, esperavam que eu me dispusesse a roubar para eles. Adquiri habilidade em fazer isso… – disse com um riso nervoso.
— Aceitar roubar para se integrar é apenas uma questão de aprender esse caminho e não receber dos pais nenhuma orientação moral – disse irmã Dominique. Tocada pela fragilidade e pela sina infeliz de Jorgette, a freira sentiu por ela aquela intensa ternura que realizava a felicidade em sua vida religiosa. Naquele instante decidiu que cuidaria de modo especial da moça, quando retornasse ao seu trabalho na prisão.
*
O Bel-Grosté retomou sua marcha passando pela Vila de Roubiá (rubiá). O sol se punha, emprestando à paisagem um brilho dourado sobre o verde suave dos vinhedos até onde a vista alcançava, para além da linha de troncos finos das árvores à margem do canal. Como recortes animados contra o fundo iluminado, os dois Pierrôs passaram pedalando pelo antigo caminho das mulas que, em outras épocas, arrastavam os barcos pela água. Acenaram para as moças; elas responderam tibiamemte, das chaises-longues em que descansavam preguiçosamente no convés da popa.
Em Argens–Minervois (arjân minervoá), o pernoite era quase obrigatório. Depois de um longo trecho a um só nível, deviam se preparar para as muitas eclusas a vencer até o ponto final do trajeto. O porto era movimentado. Ainda na prolongada luminosidade do entardecer, jovens jogavam bola e velhas senhoras conversavam sentadas nos bancos de um parque próximo. Enquanto nos bares, sob os toldos coloridos, grupos terminavam a cerveja da tarde esperando o anoitecer, vários restaurantes ao longo do cais começavam a receber fregueses para jantar.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 04-11-2004.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As Filhas Adotivas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.