Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
SUMIÇO DE OLGA
Aquele seria o último dia no barco. Martine tinha em mente realizar uma reunião final, na qual esperava poder dizer alguma coisa de útil a cada detenta, algo eficaz para que alterassem sua visão da adoção e pudessem ser felizes, quando retornassem a suas famílias. Porém, para sua surpresa e grande embaraço, ela e a irmã Dominique se deram conta, naquela manhã, do sumiço de Olga, Jorgette e Henriette. Apenas Henriette não havia levado consigo todos os seus pertences. As cabines das outras duas estavam vazias.
Gianluca havia ido em sua bicicleta fazer compras no mercado local. Ao retornar, encontrou Martine e a irmã Dominique transtornadas, e se dispôs prontamente a ajudá-las. Sugeriu que telefonassem primeiro para a polícia, e somente se as moças não fossem encontradas logo, ligassem para a diretora da prisão em Montpellier.
Um inspetor acompanhado de policiais compareceu prontamente ao barco para um breve interrogatório. Mas ninguém tinha nada a dizer que pudesse fornecer uma pista para a captura das fugitivas. Depois de anotar o nome e endereço de cada um, o inspetor afirmou que ele próprio comunicaria a ocorrência à direção da prisão em Montpellier, e avisou que todos poderiam ser convocados mais tarde como testemunhas. Gostaria que continuassem a rota pré-estabelecida; assim, se houvesse necessidade, saberia onde encontrá-los. Em seguida retirou-se com seus dois agentes.
Sem saber o que fazer, Martine aceitou o conselho de Gianluca de que continuassem e esperassem que a polícia fizesse o seu trabalho. Faltava-lhe coragem para voltar sem ter como explicar às autoridades a fuga das três moças que lhe foram confiadas. Preferia esperar que fossem localizadas e trazidas de volta ao barco. Poderiam prosseguir para Carcassonne, final da viagem, e onde, conforme previamente acertado, a van estaria aguardando na manhã seguinte para levar todas de volta a Marseillan, onde ela havia deixado seu carro.
Gianluca recolheu as amarras e acionou o motor, e se preparou para as manobras na próxima eclusa dupla de Pechlaurier (pec-lorriê).
Ninguém no Bel-Grosté conseguiu evitar o abatimento que o episódio lhes causava. Irmã Dominique, apoiada no cano de aço do parapeito, no convés da proa, mirava, desolada, o caminho marginal que ia, devagar, ficando para trás. Reconheceu, no seu íntimo, que se os dois palhaços aparecessem pedalando, naquele momento, levantariam seu ânimo: imaginou-se abraçando-os. Havia momentos assim, em que uma fome de amar, não importava a quem, assemelhava-se a uma dor aguda em seu peito. Isto punha em perigo a sua fé! Seria o amor a Deus apenas a adoração a um objeto ilusório, necessário ao homem para aplacar essa fome interior? Não, Ele não podia ser falso – pensou –, porque havia os milagres! Então pediu a Deus que Jorgette retornasse.
Após aceitarem apenas uma xícara de café oferecida por Louise, Martine e a irmã Dominique foram reunir as coisas deixando suas sacolas quase prontas para o desembarque na manhã seguinte, ou a qualquer momento que fosse necessário. Foi quando a buzina de um carro, na estrada na margem esquerda do canal, chamou a atenção de Martine. Dirigiu-se ao convés da proa e logo se juntaram a ela Louise e a irmã Dominique. Viu que, do interior de um táxi, alguém acenava para o barco, e teve o pressentimento de que era uma das moças. Gianluca, que estava ao leme, fez uma leve reversão do motor para deter o barco e aproximá-lo da mureta de pedra do canal, e saiu da sua cabine para ver de que se tratava.
Num instante Henriette deixou correndo o táxi, e saltou para o barco. Jorgette pagou o motorista, correu e também saltou.
— Trouxe apenas uma das fujonas, disse Henriette, ofegante, porém com visível alegria por se encontrarem as duas a salvo.
— Mas o que aconteceu? – quis saber Martine sem perda de tempo.
Henriette, mal recuperado o fôlego, contou sua aventura.
— Acordei com uma discussão em voz abafada entre Olga e Jorgette, na cabine ao lado da minha, e percebi que as duas saiam; vi os seus vultos no corredor escuro, por trás dos reflexos da lanterna elétrica que usavam para fugir. Vesti-me rapidamente e ainda as alcancei na entrada de um beco que saía do cais. Tive cuidado para que vocês não acordassem porque queria dissuadi-las da fuga, mas de modo que vocês sequer soubessem da tentativa.
— Não percebi nada – disse Gianluca. – Mas pela manhã dei por falta da minha lanterna.
— Eu disse para as duas que a fuga haveria de piorar nossa situação, pois também eu acabava de me envolver. Olga disse que não tinha tempo a perder e continuou pelo beco escuro, mas Jorgette, eu a segurei pelo braço. Nós duas íamos retornar quando um carrinho da polícia entrou no beco, de luzes apagadas, e sem fazer ruído. Nos vimos obrigadas a seguir na mesma direção que Olga. Então a porta de um hotel se abriu para dar entrada a um casal e tivemos tempo de entrar junto com eles. O velho que abriu a porta lhes deu a chave de um quarto, mas, quando foi nossa vez, resmungou – Henriette imitou o velho: “Por que vocês duas não vão fazer amor no parque ou debaixo da ponte do canal? Isto aqui é um hotel e não Sodoma e Gomorra.”
As duas riram relembrando a cena.
— Expliquei que nós só queríamos descansar, estávamos de viagem – disse Henriette. – E o velho: “Posso ver o que vocês têm nessa mochila? A policia costuma vir por aqui. Acaba de passar uma patrulha. Se tiverem droga, nada feito.” Vendo que éramos honestas pediu o pagamento. Eu não tinha um tostão e ia dar uma desculpa, mas Jorgette abriu a bolsa e deu-lhe os 10 Euros que ele pedia.
A alegria de Henriette por estar de volta e a sua cômica imitação da voz do velho hoteleiro já haviam desfeito o antagonismo sentido por Martine contra as fugitivas. Mas ainda havia um tom de censura em sua pergunta:
— E por que não retornaram logo pela manhã?
— Íamos fazer isto, mas quando chegamos ao cais, ainda na saída do beco, percebemos que havia policiais entrando no barco. Certamente – eu pensei – vocês já teriam dito a eles que nós éramos fugitivas e eles nos tratariam como tal, mesmo que estivéssemos de volta ao barco. Corremos ao hotel para deixar lá a sacola, dizendo que a apanharíamos mais tarde. Em seguida entramos em um café. Se a polícia aparecesse, estávamos sem a sacola e poderíamos dizer que havíamos saído apenas para tomar café em terra. Restava esperar que os policiais saíssem e se distanciassem. Infelizmente, eles entraram no mesmo café em que estávamos para também tomar café e conversar. Vimos Gialuca retirar as amarras e acionar os motores. Jorgette achava que podíamos correr e pular no convés, mas resisti: eu vi que não daria tempo. De onde estavam eles nos veriam correr, e iriam em nosso encalço. Quando finalmente acenderam seus cigarros e foram embora, pegamos um táxi e viemos a toda velocidade alcançar vocês.
Martine ligou para a polícia e disse que as duas moças estavam a bordo, e que haviam ido tomar café em terra, e apenas Olga ainda não havia retornado.
— Como a senhora explica que os armários das cabines estavam limpos? – ironizou o inspetor ao telefone.
— O senhor se enganou. Os pertences de Henriette estavam no armário e creio que também os de Jorgette.
— Vou fingir que acredito, disse o policial bem humorado. – As coisas ficarão mais simples assim.
Embora grandemente aliviada, Martine ainda teria que explicar o sumiço de Olga. Não conseguia esconder seu nervosismo principalmente por que, na vez seguinte que ligou para a Delegacia de Minervois para saber se havia alguma novidade, disseram que o inspetor era da prefeitura de polícia de Paris e havia já retornado à Capital.
— Por que um inspetor teria vindo de Paris colher informações em um barco no Canal du Midi, na distante Minervois? – cismou Martine.
Indignada com a falta de informações, Martine pediu a Gianluca que no trajeto acostasse onde o canal passasse pelo centro da vila, e em La Redorte e Marseillette se dirigiu aos respectivos distritos policiais para pedir notícias sobre o paradeiro de Olga. Para maior irritação sua, os policiais tentavam ligações, mas se confundiam sobre qual departamento da polícia poderia estar encarregado do caso: a fugitiva se enquadraria em furto, entorpecentes, pessoas desaparecidas?
*
Bastante deprimida, Martine se lembrou dos sonhos da primeira noite no barco, em que se via em criança desobedecendo os pais para fazer o que julgavam perigoso para ela: ir à praça Righe comprar chocolate. Aquela pesquisa com detentas eles também pareciam não aprovar, temerosos dos riscos, embora não lhe tivessem negado os fundos necessários para seu projeto. Ela começava a se arrepender da idéia. Poderia ter encontrado outro tema ou, no mínimo, conduzido a pesquisa de modo diferente.
Na eclusa de L´Aiguille (leguile), o desfile das cômicas estátuas de madeira, dispostas à margem do canal pelo manobrista da comporta – que era também um entalhador –, e que ela havia admirado com suas amigas no verão passado, agora lhe pareciam demônios a rir do seu fracasso e a brindar sua estultice.
Depois do barco navegar cerca de 30 quilômetros, atravessando várias comportas – e ela com um simples sanduíche por almoço –, chegaram a Trèbes, para o último pernoite.
Como nos dias anteriores, a irmã Dominique pediu para ir à igreja rezar. Retornou admirada com a altura das naves da grande catedral gótica da cidade.
Como que por força das orações da freira, um fato novo fez melhorar notavelmente o humor de todos no barco. Gianluca anunciou que teriam um jantar especial de despedida, preparado por ele e Louise, apesar de todos os contratempos. A refeição seria servida mais tarde, para que se vestissem para a ocasião.
Foi um elegante jantar, realizado à luz de velas, e se brindaram com champanhe. Henriette e a irmã Dominique, à vista do blazer azul com botões dourados de comandante de Gianluca; do vestido de seda de Louise; e do belo conjunto posto por Martine, lamentaram, com muito bom humor, não poderem se vestir melhor e não terem um calçado a mais que os tênis que usavam. Jorgette vestiu o que de melhor Henriette pode lhe emprestar.
OS PIERRÔS
Após o café da manhã, Gianluca movimentou o barco até Carcassonne, cujas magníficas muralhas podiam ser vistas do canal, à distância.
Quando o barco atracou, dois agentes de Polícia uniformizados se aproximaram, pedalando suas bicicletas. Para espanto da irmã Dominique, eram os dois Pierrôs. Haviam trocado suas vestimentas por uniformes, mas não haviam removido o papel colorido que girava entre os aros das rodas das duas máquinas. Sorriram para a irmã, certos de que ela compreenderia e os desculparia – precisavam do disfarce. Depois, voltaram-se para Martine.
— A senhora nos foi muito útil, professora. Conseguimos deitar mão em um traficante foragido, usando a namorada dele como isca. Olga, na primeira oportunidade que teve, utilizou o celular da senhora e ligou para toda a França, até que conseguiu estabelecer contacto com ele e dizer-lhe onde estava e em quais portos o barco se deteria. O mafioso dirigiu pessoalmente um plano para resgatá-la. Subordinados seus providenciaram um minúsculo mas potente telefone celular vibrador, que lhe foi entregue escondido em um buquê de rosas, para que recebesse instruções. Nós pegamos os dois com a ajuda de agentes da polícia de Paris que há tempos estavam no encalço do bandido e organizaram o plano para sua captura.
— E por que não nos avisaram que Olga já estava presa? – indagou Martine com uma ponta de revolta.
O policial se desculpou:
— Somente poderíamos dar notícia da sua prisão depois que chegassem em segurança a Paris.
Martine se sentiu enganada; fora usada em uma trama, mas estava impedida de protestar por reconhecer que a polícia fizera um bom trabalho. E se perguntou amargurada se o padre Justin, que por uma boa causa infiltrara irmã Dominique no grupo, teria também alguma coisa a ver com o esquema que fora montado.
Voltando-se para Henriette e Jorgette, o policial prosseguiu.
— Aquela madrugada era nosso turno de acompanhar o barco pela margem do canal, e vimos Olga e Jorgette escaparem, seguidas pouco depois por Henriette. Acionamos os agentes para segui-las, mas, quando fecharam o cerco, só pegaram Olga, seu namorado e seus capangas.
— Ora, disse o outro Pierrô. – Está claro que essas duas aí nos enganaram e conseguiram voltar ao barco. Vocês são muito espertas, meninas. Digam uma coisa: não querem entrar para a polícia? Seriam as duas únicas pessoas inteligentes do nosso Departamento. Riram e se foram, pedalando suas bicicletas.
Haveria mais uma surpresa: antes de entrar na van, Jorgette, num gesto rápido, tirou de debaixo da saia uma bela faca dobrável, de fecho automático, e a ofereceu a Gianluca.
— Tome, para compensar a perda da lanterna – disse com um sorriso carinhoso.
Surpreso e ao mesmo tempo admirado com a beleza da peça, o comandante logo adivinhou a origem do presente.
— O dono era chinês… – disse examinando os caracteres gravados no cabo de madrepérola.
Jorgette sorriu. Sem nada dizer, voltou-se para Martine, seu rosto iluminado pela glória do seu poder naquilo que era a sua arte.
Henriette, Jorgette e Martine seguiram para Marseillan. A irmã Dominique dispensou o transporte. Não sabia bem o que faria, mas de qualquer modo desejava ficar a sós um pouco. Decidiu ir rezar na Basílica de São Nazário, e admirar seus belos vitrais, desta vez sem recear que algum Pierrô a perseguisse.
Rubem Queiroz Cobra
NOTA: Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1. Veja, por favor, a página Livros do Autor.
Página lançada em 04-11-2004.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As Filhas Adotivas. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2004.