Contos: A Intertextualidade

Hoje: 21-12-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

A expressão “intertextualidade” foi criada por Julia Kristeva na década de 1960. É a relação que une um texto literário novo, a outro texto pré-existente. Esta relação pode ser de natureza variada, e ocorrer de forma explícita ou oculta. O texto novo é o intertextualizante e o texto antigo – que é citado, ou foi inspirador, ou é de alguma forma aproveitado no novo trabalho –, é o texto intertextualizado.

Muitos pretensos sinônimos, como “releitura” e outros, têm significados que não contemplam todas as formas de intertextualidade. Este recurso literário é mais facilmente explicado através de exemplos. Apresento abaixo alguns tipos de intertextualidade:

  1. Como é sabido, as fábulas de Æsopo e Phædro são um bom exemplo de intertextualidade. Elas estão em boa parte intertextualizadas nas Fábulas de La Fontaine. Podemos então dizer que as fábulas de La Fontaine são intertextualizantes das fábulas de Æsopo e Phædro.
  2. Na classificação de textos em gêneros literários já está implícita a idéia de que, em cada gênero, um texto é sempre criado de uma certa maneira, com certas características que os une em uma relação intertextual uns com os outros. Ao listar os livros policiais que conhece, o autor da lista pratica intertextualização. Ele recolhe todos os títulos de romances nos quais encontrou – como lugar comum –, alusões a crimes, mistérios políciais, etc., alusões que que são os elementos da intertextualidade presente em sua lista.
  3. Um exemplo meu: Beatriz Pianalto de Azevedo (https://cucadeprata.blogspot.com.br), descrevendo sua escalada do pico da Canjerana, na serra do Caraça, diz:

    “Lá pelas tantas, ironia das ironias, considerando-se o santo lugar onde o parque se encrava, surge a tal da (………..), uma flor de coloração lilás”.

    A escalada em meu conto “O Cão de Siegfield” é feita no mesmo pico, e pelo mesmo caminho descrito por aquela autora, pois se trata de uma caminhada tradicional no Caraça, MG, a partir do Colégio, que eu conheci ainda primitivo. A intertextualidade não está ai, mas sim na flor de coloração lilás a que ela se refere, e que eu desconhecia, e que introduzi em meu conto dizendo:

    “O que Lucas lhes disse em voz baixa provocou fortes gargalhadas entre eles. Intrigado, Peter foi ver de que se tratava. Voltou sorrindo e, sem nenhum pejo, explicou:

    —Estão rindo por conta de umas flores que se assemelham à estrutura do órgão reprodutor da mulher.

    —É a Clitoria ternatea ‒ disse o Irmão, com indiferença. —O povo coloca muitos apelidos maliciosos nessa flor.”

  4. Outro exemplo meu: Neste mesmo conto, “O Cão de Siegfried”, utilizo a intertextualidade em outro sentido, como aproveitamento de uma idéia de outro autor, para criar o meu próprio episódio.

    É a ideia de criar um incidente entre um casal de idosos e uma jovem, passageiros do vagão de um trem, a exemplo de uma das cenas do romance do escritor inglês Graham Greene (Trem de Istambul, tradução de Brenno Silveira (Ed. Civilização Brasileira S. A., Rio, 1960, 2ªed., p. 123). Excluído esse episódio, as duas histórias – a criada por Greene e a criada por mim –, divergem em tudo o mais.

    O romance de Greene é bastante fiel em sua descrição da viagem em um trem de passageiros, mas quanto a isto (funcionamento, partes de uma composição, movimento nas plataformas, etc.), segui minha própria experiência. Viajei muitas vezes nos velhos trens de madeira da Central do Brasil, e também me encantava observar as locomotivas e suas manobras, quando passava férias no interior, no sítio do meu avô materno, frente à uma estação daquela ferrovia. A propósito, Greene esqueceu-se de vestir seus personagens com o guarda pó, que era quase obrigatório para quem viajava naqueles trens com máquinas a vapor: era necessário para proteger a roupa da poeira de carvão e do cheiro de fumaça.

A intertextualidade é um tópico comum ao romance e ao conto. Diferentemente do plágio, ela representa uma interpretação diferente, ajustada ao que o autor que a pratica tem em mente. Mas o leitor bem informado reagirá à uma matéria intertextualizada se perguntando: “Onde vi isto antes?”

Rubem Queiroz Cobra

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NOTA: Julia Kristeva nasceu a 24 de junho de 1941, em Sliven, Bulgária. Bacharelou-se em Letras na Universidade de Sofia em 1966 e nesse mesmo ano ganhou uma bolsa para fazer seu doutorado na França.Permanecendo em Paris, foi redatora no jornal Tel Quel, critica literária, romancista, psicanalista, educadora e feminista, com artigos publicados em todas essas áreas, pelos quais se tornou conhecida nos meios intelectuais da Europa e das Américas.

Página lançada em 15-08-2016 e revisada em 15-08-2016.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Contos: a intertextualidade. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2016.