Hoje: 22-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
É importante considerar o fato de que o acaso faz por nós mais que conseguimos por nossa vontade. O encontro entre os dois homens não foi por iniciativa própria de nenhum deles, foi por um acaso mais bem urdido do que conseguiriam por desejos seus. Como o detetive poderia sair do escritório com a intenção de encontrar o jardineiro e de fato encontrá-lo, ou, o jardineiro buscar o detetive? Tudo aconteceu engendrado pelo acaso. Foi como se os fatos fossem preparados em diversas instancias independentes, para pouco adiante convergirem na solução do crime.
Um novo caso sempre deixava o detetive em mal estar e tédio, incerto de estar investindo seu tempo e seus recursos em algo que valia a pena.
Mas ali estava, com contrato assinado em seu escritório, contratado pelo dono de uma mansão para uma espionagem; pago para lhe apresentar um relatório sobre a amante que julgava que o traia.
Fazer o relatório lhe renderia dez mil reais. Poderia ter pedido mais que isso, tal o interesse do dono da mansão em saber a movimentação da mulher, pela qual estava apaixonado.
Aquele era um bairro de gente rica, as mansões se sucediam rua abaixo. Havia entre elas largos espaços de jardins impecavelmente aparados, com suas calçadas sinuosas de seixos brancos impecavelmente limpas. Os arquitetos não se davam conta de quanto agora eram vulgares e desinteressantes os seus jardins geométricos, plantados com arbustos de grandes folhas traficados da Amazônia, do tempo quando plantas exóticas, gramados e palmeiras anãs formavam os jardins da moda.
Na esquina havia uma padaria montada com muito luxo. De suas mesas o detetive podia ver, sem obstáculos, através das grandes janelas de blindex, a frente e uma das laterais da casa em que morava seu contratante, a qual teria que vigiar de modo que ninguém entrasse ou saísse sem que ele visse e registrasse em seu bloco de notas. Enquanto era servido pela garçonete, entrou na padaria um homem em mangas de camisa, calçando botas, pediu um café e foi sentar-se junto à janela, em uma mesinha ao seu lado.
– Curioso? – Perguntou o recém-chegado ao detetive, notando o quanto aquela casa era objeto de interesse dele.
O detetive ignorou a rispidez da pergunta. Sem revelar o verdadeiro motivo de estar ali, voltando-se para o indivíduo que o abordava, retrucou: -“Estou tentando identificar as plantas daquele jardim, disse indicando com um aceno de cabeça o imóvel do doutro lado da rua.
– Posso lhe dizer o nome de qualquer uma daquelas flores, jactou-se o homem.
– É um cenário que acalma e traz alguma paz, disse o detetive. Sempre que vier aqui, não deixarei de admirar aquele gramado tão bem aparado e as flores tão exóticas e desconhecidas para mim. Conhece o dono da casa?
– Obrigado por seus elogios. Sim, conheço o dono. Sou o jardineiro dele.
“Aquele homem, de aparência rude, mas de olhos brilhantes e inteligentes, seria exatamente aquilo que imaginara: alguém que poderia ser muito útil para seu trabalho”, pensou o detetive. Morava no mesno endereço em que trabalhava a “cuidadora de idosos” que ele deveria investigar.
Mas o jardineiro também pensou: “Talvez ele possa me ajudar; parece sério e inteligente”. Pensando assim, sentiu-se movido a entreter um diálogo e revelar sua inquietação. Parece que alguma coisa que via ali o preocupava muito, antes porém comentou:
– Talvez eu tenha que sair do emprego. O que vejo acontecer naquela casa, me revolta! Não me faltaria onde trabalhar, disse o jardineiro.
Mansamente, como convém quando há o receio de que o outro mude de idéia, o detetive perguntou.
– O que de tão grave acontece lá, que o faz pensar em deixar o emprego? O tom moderado de sua fala e suas feições tranqüilas na verdade escondiam o súbito interesse despertado nele pela confissão do seu interlocutor. Vislumbrava a possibilidade de se juntarem.
– Acredito que o que aconteceu ali levou ao assassinato da minha patroa, respondeu o jardineiro emocionado. Seus olhos molharam-se com as lágrimas contidas. Não tenho nenhuma dúvida de que sua cuidadora, Rosana a matou.
– Mas é apenas uma suposição ou você tem provas? – indagou o detetive cautelosamente.
– Comecei a desconfiar. Fiz uma lista de acontecimentos estranhos, e tive uma idéia de quem estava a frente desses fatos: Rosana.
– Que acontecimento, por exemplo?
– “Posso abrir qualquer coisa” – foi o que ela me disse quando entrou na casa uma manhã, sem que ninguém tivesse aberto o portão, fechado durante a noite por um cadeado com corrente.
– Estranho que uma mulher diga isso, falou o detetive.
– Outra coisa, continuou o jardineiro, foi o desaparecimento da aliança de casamento da minha patroa. Quando ameacei chamar a polícia, a aliança reapareceu jogada no chão do escritório. Muita coisa estava sendo roubadas da casa, coisas da copa, ferramentas, roupas de cama etc. Logo desapareceu também um brilhante guardado no cofre; dele ficou o estojinho vazio, caído no chão.
Passados uns dias, houve um assalto, e o que eu vi? Rosana prendendo os cachorros no canil para os ladrões pularem a cerca.
Enquanto roubavam e acomodavam as coisas no meu carro, e no carro de Rosana que tambem ficava na garagem, os ladrões nos deixaram trancados no quarto da minha patroa, que dormia e felizmente não acordou. Só depois que os bandidos foram embora, a própria Rosana chamou o filho da patroa que chegou com a polícia para nos libertar. Ao delegado, mentiu dizendo que não tinha o celular consigo para avisar a polícia do assalto, mas foi seu próprio celular o que ela usou, depois que os bandidos foram embora, para chamar o filho da patroa. Ele destrancou a porta pelo lado do corredor.
— Ficaram com os carro dela e do seu patrão, que usaram para transportar o fruto do assalto?
— O carro de Rosana ela pediu bandidos para esconderem até que ela conseguisse receber o seguro. Com o dinheiro do seguro ela comprou um carro mais moderno. Mas o carro do patrão, “seu”Venâncio”, ela mandou que os melientes abandonassem na rua e a polícia entregou ao dono.
O detive falou:
– Você foi bastante perspicaz! Gostaria de ser assistente de um detetive?
O jardineiro sorriu com grande surpresa.
– Você é um detetive? Perguntou.
– Sim.- Escute o que poderemos fazer, disse o detetive. Vou escrever um relatório e entregá-lo ao “seu” Venancio, seu patrão, que, por coincidência foi tambem quem contratou o meu trabalho. Então, eu e você, ficamos esponando a mesma pessoa. Eu vi essa mulher de quem você fala, em um restaurante perto da casa dela conversando e bebendo com um estrangeiro. Pude ver que ele usou de muita insistência para que fossem para um hotel, mas ela só queria seduzi-lo para ganhar um jantar caro, e deu um jeito de se livrar dele após o último gole de vinho italiano. Com base neste fato direi ao sr. Venâncio, no meu relatório, que ela me parece uma mulher honesta e que não o está traindo. Ele deverá me pagar o que acertamos pelas minhas fotos e depois vamos estudar como vamos criar nossa sociedade.
– Quanto a mim está ótimo, disse o jardineiro alegremente.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 19-10-2021.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Jardineiro Perspicaz. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2021.