Hoje: 30-10-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Em um bairro importante da Capital, não havia ainda uma igreja evangélica!
A forte influência católica naquela área havia até então desestimulado os protestantes de nela se estabelecerem, por receio de conflitos. No bairro estavam localizados o palácio do bispo e os principais colégios dirigidos por freiras e padres de prestigiosas irmandades religiosas. Mas o ecumenismo – pregado pelos papas modernos -, tornou-se uma postura bem aceita por todas as religiões. Em muitos casos, as relações acirradas entre inimigos históricos tornaram-se em convívio harmonioso. Mesmo assim, seria um despropósito e poderia ser considerado um gesto de desrespeito e provocação, que um templo protestante fosse erguido em frente ou parede-meia com o palácio episcopal católico.
Com fundamento nessa tolerância um pastor evangélico foi incumbido de criar ali uma nova igreja. Caberia a ele adquirir um local, terreno ou prédio, que fosse bem situado e providenciar a sua compra. O pastor foi advertido pelo Conselho quanto à observância de limites que não causassem constrangimento aos fieis de qualquer outra religião.
Recebida tão insigne incumbência, o pastor tornou-se um assíduo leitor das páginas de anúncios dos jornais da cidade, à cata de um imóvel desocupado que fosse uma boa localização para o novo templo. “Deus é fiel, e o Seu Espírito me ajudará na difícil missão” – pensou com humildade e fé.
Não demorou muito para que um anúncio atraísse a sua atenção, e fizesse que saísse apressado, pelo medo de perder o negócio. A Diocese católica estava a negociar um terreno onde havia uma capela a ser demolida – “Mas que talvez pudesse ser adaptada como igreja evangélica” –, calculou o pastor enquanto dirigia seu carro para o endereço indicado no anúncio.
Ao chegar à rua, deu-se conta de que no anúncio não constava o número do imóvel. Mas um moleque de rua lhe disse que estava a poucas quadras dali, a capelinha que ele procurava.
—Custa vinte reais a informação que lhe dei – disse o garoto, estendendo a mão para receber o pagamento.
—Meu filho, me desculpe. Eu não tenho sequer um real comigo!
—Dê alguma coisa por conta – insistiu o moleque elevando a voz, inconformado e irritado.
—Pensei que você informaria o local sem nada exigir em troca, como uma ajuda. Agradeço-lhe muito. Deus o abençoe! – respondeu o pastor colocando o carro em movimento, sem dar mais atenção ao moleque que ainda lhe gritou: —Vai se arrepender!
O terreno era largo e plano, completamente gramado exceto pelo caminho pavimentado entre a calçada e a porta do pequeno templo. Sacrificando parte do gramado, poderia ser construído um estacionamento para muitos carros. O interior do templo era decorado com imagens de santos e uma série de quadros representando a paixão de Cristo.
O pastor fez um gesto de desaprovação e esconjuração de toda aquela iconografia católica, como se as imagens lhe causassem náuseas, mas prosseguiu sua inspeção. De cada lado da passagem central havia uma fileira de bancos de jacarandá, envernizados como novos.
No outro lado da rua, havia uma praça ajardinada, com muitas flores, em sua maioria de pétalas vermelhas. A miúda grama esmeralda, cuidadosamente aparada, forrava as áreas livres entre as ilhas verdes e à volta de arbustos isolados, e havia caminhos com pisos de seixos brancos, para passeio entre os canteiros.
Ao contrário do que esperava, foi muito fácil falar com o bispo.
Uma porta que dava para o espaçoso hall de entrada deixava ver uma sala de atendimento. Aproximando-se do balcão, viu que o um casal jovem preenchia os papeis para o seu casamento. Estavam de pé, junto ao balcão, pressurosos em informar todos os dados exigidos, algumas vezes com visível esforço de memória, outras, apresentado algum documento antigo. Entreolhavam-se com ternura e alegria a cada passo vencido no preenchimento do formulário.
Um segundo funcionário veio ao balcão para atender ao pastor. Este perguntou onde falar com o bispo sobre a compra do terreno noticiado no jornal.
Sem nada dizer, o jovem apontou para uma porta no outro extremo do hall. Era a porta de uma antessala de passagem para um escritório amplo, com armários de livros e uma escrivaninha antiga, atrás da qual um homem volumoso, vestido com uma batina roxa, se esparramava em uma cadeira larga e de encosto alto.
—O senhor é o bispo? Estou interessado no terreno com a capelinha, disse o pastor adiantando-se para cumprimentá-lo. O bispo, talvez cioso de sua alta posição, ou porque estivesse cansado, não se ergueu. Apenas endireitou o corpanzil e estendeu-lhe uma mão gorda por sobre o seu bureau.
—Sente-se, disse o bispo, lacônico.
O pastor acomodou-se em uma cadeira de braços frente ao bureau.
—É um terreno de um hectare e o preço é cinquenta mil – falou o prelado.
O pastor mostrou-se surpreso, e repetiu com espanto o valor incrivelmente baixo dito pelo bispo.
—Acha muito? – indagou o bispo ao ver a reação do comprador.
—Ao contrário. Estou surpreso que peça tão pouco pelo terreno e a capela. Desejo muito comprá-lo e poderíamos fechar o negócio agora mesmo, mas não quero prejudicar a sua Igreja em favor da minha. Sou pastor evangélico. Vou utilizar a capelinha, que está como nova, para instalar ali um templo que atenda os nossos fiéis deste bairro.
—Pela sua indumentária eu vi que era um religioso e imediatamente suspeitei que estaria interessado na boa localização da capela. Mas o preço que pedimos é bom negócio para nós e, fico alegre de saber que o imóvel continuaria a ser casa de Deus.
—Não poderíamos pedir uma avaliação?… O imóvel vale muito mais que os cinquenta mil! —Minha consciência não permite que eu pague tão pouco por um bem que é de grande valor. Vou pedir a um corretor uma avaliação e lhe pagarei corretamente o que for indicado por ele – disse o pastor com determinação.
—Mas isto já foi feito! – objetou o bispo. —Consultei uma imobiliária que mandou lá os seus avaliadores. Eu, do mesmo modo que o senhor, digo: minha consciência não permite que eu cobre por um bem mais do que seu verdadeiro valor! – O cenho franzido do bispo mostrava o quanto ele estava perplexo com a atitude do pastor. “O ecônomo da Cúria fez a sua própria avaliação, mediante pesquisa, e achou que aquele era o preço a pedir, o mesmo indicado pelos peritos da imobiliária” – pensou ele já a ponto de se aborrecer.
“Não é absolutamente o momento para contestar a quem oferece um negócio tão vantajoso para a minha igreja” – pensou o pastor. Comunicou-se com o Conselho da Igreja, através do seu telefone, pedindo que o procurador do Conselho viesse encontrar o secretário geral da Cúria católica para conhecer o imóvel, efetuar o pagamento, e providenciar a assinatura da escritura.
Um seminarista, vestido com uma batina preta encimada por um colarinho de celuloide branco, e com um guardanapo grande dobrado sobre o braço esquerdo, à semelhança de um garçom, surgiu à porta do escritório e anunciou que o lanche da tarde estava servido. Convidado pelo bispo, o pastor acompanhou-o até a copa onde uma mesa forrada com uma toalha branca de damasco, aparelhada com talheres de aço inoxidável, copos de cristal, xícaras e pratinhos de porcelana estava posta com simplicidade e requinte para um lanche com quitutes, leite e café.
Enquanto comiam, o pastor prometeu:
—Vou mandar que lhe entregarem os objetos de adoração que lá ficaram.
—Não temos na Igreja católica nenhum objeto de adoração, Pastor – disse o bispo um tanto agastado. —Se ainda lá ficou alguma coisa, será incluída no negócio da venda. O que queríamos reter conosco, já trouxemos para a cúria, como foi o caso da pedra com relíquias, objeto de veneração que nossas igrejas conservam, incrustada no altar principal. Trouxe também esse confessionário, concluiu o bispo, voltando-se para apontar com o queixo um móvel todo em mogno, talhado na forma de uma capelinha gótica, e que estava encostado a um canto da saleta.
—O nome litúrgico, “sacramento da penitência”, me parece limitado, e lembra em nosso inconsciente os sambenitos da Inquisição – continuou o bispo. —Gostaria que fosse chamado “sacramento da purificação” – é um desejo do próprio Cristo. Ele disse: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, eles serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, eles lhes serão retidos” ( Jo 20, 22-23). Ele não fala em penitência, fala em perdão.
O Pastor preferiu remanejar o diálogo para área dos recentes escândalos da política.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 04-07-2018 e revisada em 12-07-2018.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Pastor Evangélico e os Cabilos do Mal. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.