Não Somos Responsáveis por Nosso Primeiro Sentimento

Hoje: 21-11-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Retiro de São Francisco, circa 1970

Depois de me hospedar uma vez no então célebre Hotel Bahia, nas vezes seguintes me achei tão bem, ou melhor, hospedado na Casa de Retiro São Francisco, em Brotas(*), principalmente por uma particularidade: diferentemente do que acontece nos hotéis de maior rotatividade, na Casa os hóspedes se faziam amigos. Vindo da cidade baixa, subi a Avenida Dom João VI até a Rua Valdemar Falcão, pouco adiante do Hospital. – Dobrada a esquina, cheguei ao meu destino.As freiras eram poucas; usavam hábito de saias brancas, longas e amplas, com um lenço branco que cobria os cabelos e caía sobre as costas.

Um pequeno incidente, ao chegar naquele escurecer da tarde, gravou em minha memória o reencontro com irmã Ana Maria do Menino Jesus, a diretora, uma freira branca, magra e alta, e a irmã Corina, morena, baixa e forte, a tesoureira da casa: as luzes subitamente se apagaram. No escuro da pequena sala da portaria, não pude pegar a chave que a irmã Corina me estendia.

Naquele momento, dois bem-humorados hóspedes que entravam no grande hall às escuras, desinibidos com a escuridão, fizeram ressoar pela casa um canto litúrgico gregoriano de rara beleza.

Suas vozes autenticamente masculinas, graves e potentes, contagiaram as duas freiras e também elas, por um instante, se libertaram de sua própria inibição, para expressarem com risos e chistes femininos o seu excitamento. Mas, em poucos minutos, os cantos e os risos foram cortados de um golpe, pelo retorno da luz.

Os dois cantores eram o bispo auxiliar americano e o seu secretário, que residiam na Casa de Retiro, informou a irmã Ana Maria no seu tom recomposto de irmã superiora, voltando a folhear alguns papéis sobre a escrivaninha. A irmã Corina, com um restinho de sorriso e claramente embaraçada, revolvia os escaninhos a procurar inconscientemente a chave que já estava em sua mão. É curioso – pensei – como um instante entre cortinas de escuridão pode fazer vibrar em nós um sentimento virgem, como expectativa de uma surpresa que não se realiza. Ora, uma vez que nosso coração dispara por si mesmo, ninguém tem culpa de seu primeiro sentimento! – peguei a chave e segui para o meu quarto. – A verdadeira questão moral está em como reagimos a esse primeiro impacto em nossa alma – concluí para mim mesmo.

*

A empresa telefônica ocupava um pequeno edifício moderno e recém inaugurado – um ambiente agressivamente iluminado por luzes fluorescentes –, naquela noite, cheio, quente e abafado. Cruzava o ar todo tipo de conversa, algumas quase gritadas. Turistas brancos falavam nas cabines, mantendo as estreitas portinholas abertas por causa do calor, a maioria dando conta a parentes no Rio ou em São Paulo de como iam passando suas férias na Bahia. Uma mulher preta, miúda, mas bem vestida, suplicava notícias ao namorado em dificultosa ligação para um navio sueco nas trevas do Atlântico.

Depois do telefonema, foi um alívio caminhar para o carro pela calçada do jardim do Campo da Pólvora, rumo à Faculdade de Direito, respirando o ar fresco da noite.

Pouco adiante, uma mulata dormia em um banco, sob a luz de um poste. Deitada de lado, abraçava contra o peito, como somente uma mãe abraçaria, um menino que também dormia na mesma posição que ela. A brisa que espalhava o perfume de flores noturnas havia soprado a pequena e leve saia branca da mulher, descobrindo-lhe as nádegas escuras. Ela não tinha o corpo esquálido de uma mendiga e certamente também não era uma prostituta nem uma alcoólatra.

A plácida nudez da mulher era um apelo quase irresistível aos sentidos. No entanto, me afastei, irresoluto, confuso; era a nudez obviamente involuntária e não consentida de uma mãe que protegia o filho em seu regaço, o que feria à consciência contemplar. Ou seria, na verdade, não a minha consciência, mas a fuga covarde das minhas pernas, pelo temor de ser flagrado naquela contemplação? Qualquer passante, por menos respeitável que fosse, teria autoridade moral para condenar e castigar minha curiosidade. Quando o temor existe, ele é um triste sinal de que não teríamos, por dignidade pessoal, contenção igual à que o medo nos despertou.

*

Na manhã seguinte, conforme combinado de véspera em seu escritório, Grimaldi estacionou sua limusine preta no jardim da Casa de Retiro. Minha ida a Salvador relacionava-se à aprovação de um empréstimo para a cerâmica que ele desejava montar no Centro Industrial de Aratu.

Alguns detalhes daquela manhã ainda são nítidos em minha memória. Seguimos em seu enorme carro com ar condicionado (ainda uma raridade naqueles anos). Havia canaviais de um e outro lado da estrada. A certa altura, Grimaldi deteve o veículo. Olhando na mesma direção que ele, vi um grupo de negros reunidos em uma clareira frente a um homem que discursava. Os homens vestiam trajes escuros formais, e as negras usavam chapéus e vestidos elegantes. Várias limusines pretas, iguais à de Grimaldi, brilhavam ao sol, estacionadas a esmo no canavial, em volta da clareira.

― É o governador – disse Grimaldi com certo brilho nos olhos e um acento de alegre confiança na voz. E acrescentou lacônico, com uma ponta de orgulho: – A pedra fundamental de uma nova fábrica!

O governo revolucionário estimulava fortemente o desenvolvimento industrial e havia determinado a instalação de distritos industriais junto a todas as cidades mais populosas do país, principalmente às capitais.

Poucos quilômetros adiante, chegamos ao seu lote. Havia sinais de uma excelente matéria-prima.

― É o mesmo material que usa o Cícero Simões – disse Grimaldi. – Sabe quem é? Está no ramo há muito tempo e também é o dono do jornal A Tarde.

Realmente a Cerâmica Senhor do Bonfim, do bom e simpático professor Cícero Simões de Freitas, utilizava uma ótima argila, de boa plasticidade e pequena retração no cozimento, na aparência a mesma do terreno em que pisávamos agora. Várias outras fábricas usavam a mesma argila, como a Cerâmica Esmeralda e a Poty, que eu havia visitado em outras ocasiões. O terreno que Grimaldi me mostrava era deveras valioso.

Muito branco, de provável ascendência italiana, Grimaldi era uma pessoa objetiva e dinâmica, como muitos novos empreendedores que surgiam então, bafejados pelo pródigo positivismo do governo militar. Sua objetividade, ao expor seus planos, conquistou minha confiança. No caminho de volta convidou-me para ficar até o fim da semana na cidade; gostaria de me levar em sua lancha para um passeio a ver as ilhas da baía. Convidou-me também para jantar aquela noite em um restaurante na praia. Realmente, parecia que ele tinha como óbvio – contando ele com o apoio do governo para o seu projeto e com o melhor barro da região – que eu não devia me preocupar mais com o meu relatório e sim aproveitar a viagem para usufruir as belezas de Salvador. Porém, declinei do convite, com certo orgulho em manter meu profissionalismo e poder agir com independência de qualquer obséquio ou favor.

Após o almoço na Casa de Retiro, rumei em meu carro para o escritório técnico do Centro Industrial, na Avenida Centenário. No mapa que o engenheiro Antônio Muniz abriu sobre a mesa, o lote doado a Grimaldi não era aquele que ele havia me mostrado e, confrontado com o mapa geológico do distrito, não teria a matéria-prima indispensável ao projeto.

Não escondi do engenheiro a minha decepção. Se somos enganados, não somos totalmente culpados disso – pensei. Nosso primeiro sentimento é o de confiança em nosso semelhante, mas a relação humana é essencialmente predatória, e por isso aprendemos a ser cautelosos, e assim a confiança natural e espontânea tende a desaparecer de nossas vidas.

Embora esse pensamento me ocorresse, eu estava certo da lisura de Grimaldi, e de que o engenheiro, sim, é que provavelmente estava desinformado de gestões havidas a nível governamental. Tentei imediatamente falar por telefone com o empresário sobre aquela divergência, mas ele não estava mais no escritório. Lamentei haver recusado o seu convite para jantar, pois o encontro teria permitido esclarecermos a questão naquela noite mesma.

*

Tomei o rumo da praia. Acontecia no Rio Vermelho a festa anual de Iemanjá, a Rainha do Mar, a Mãe d’Água, a mãe dos orixás, simbolizada numa sereia, venerada pelos pescadores como sua protetora junto com Nossa Senhora de Santana. No escritório local da minha Agência, o Sérgio, um entusiasta da cultura e do artesanato da Bahia, havia me falado dessa festa. Ele também sabia onde se podia adquirir tapetes de Genaro, nos quais me achava muito interessado.

O largo da capela de Santana era o centro de grande ajuntamento de gente. Homens jovens e maduros, negros e mulatos, batiam tambores e sopravam trombones acompanhando um grupo que cantava em uníssono uma letra pornográfica (Advertência do Sérgio: – “A maioria transforma a festa sacra em carnaval profano”). Havia barracas de vendedores de flores, de artigos religiosos, de cerveja e churrasquinhos. Negras com seus turbantes, balangandãs de prata, pulseiras coloridas e largas saias brancas enfunadas com anáguas – já um tanto amarfanhadas naquele fim de tarde –, sentavam-se atrás de seus tabuleiros de quitutes servidos quentes. Das frigideiras pretas sobre fogareiros acesos no chão subia o cheiro de tempero e frituras, e muita fumaça que a brisa fazia passear, esgarçada, sobre a multidão. Na praia, um indivíduo recebia espíritos e dançava em convulsões em meio a uma roda de curiosos.

Turistas brancos caminhavam a observar e fotografar, vestidos pobremente para se confundirem com o povo local; mas não enganaram a alguns mulatos magros e ágeis, que seguiam nervosos os seus passos, à espera da oportunidade de lhes surrupiar a carteira ou de se fazerem salvadores para receberem alguma recompensa.

No mar flutuavam, na crista das ondas, ramos verdes e corbeilles de flores brancas ofertadas à deusa. A barca, que levara as autoridades e os sisudos chefes religiosos até o mar alto, podia ser vista de volta sem as coroas lançadas em águas distantes (“Há uma minoria que tem fé e faz a festa com seriedade”, outro dito do Sérgio).

Na verdade, todo aquele ruído, a multidão, a mistura de fé e paganismo, a mestiçagem promíscua de culturas e de forças religiosas antagônicas, tudo permeado de marginalidade e oportunismo, era uma festa sem anfitriões, um terreiro sem dono, um caos de sensualismo. Eu me sentia uma coisa propositadamente excluída e ignorada na gigantesca manifestação.

Prossegui até o aeroporto. Na minúscula livraria junto à entrada do salão de embarque e desembarque de passageiros comprei um livro de Jorge Amado e, no bar que ficava ao fundo, fiz um lanche antes de retornar à cidade.

*

Já havia escurecido. No Centro, encerrado o comércio, as pessoas fluíam pelas ruas e travessas mal iluminadas, em busca do transporte coletivo. Era aquela variedade de tipos africanos e mestiços documentada por Pierre Berger, o fotógrafo francês que havia adotado a Bahia como pátria e vivia em Salvador, na Rua do Corrupio, na Vila América, Engenho Velho de Brotas – um endereço que eu esperava ainda visitar.

As fotos de Berger me lembravam as negras de corpo esbelto, grandes traseiros e peitos nus, e os pigmeus caçadores, das fotos em brilhante papel couchê, de antigos livros franceses sobre a África. Eu os folheava de respiração suspensa, em minha adolescência, na biblioteca administrada por minha tia Alice. Talvez fosse por isso que as cenas em preto e branco de Berger me parecessem um retrato mais exato da Bahia que as fantasias banais de Jorge Amado ou os rabiscos em verde e vermelho de Carybé.

O ruído dos passos apressados dos transeuntes nas calçadas, ou sobre as pedras cinzentas e úmidas da rua, era adiante abafado pela música, pelas vozes e as gargalhadas que vinham do interior de um bar ou café, quando não era tudo superado pelo ronco selvagem de ônibus lotados, fumarentos e enegrecidos de fuligem.

Chamou minha atenção uma pretinha que seguia pelo outro lado da rua, porque cruzamos olhares casualmente. Ela caminhava com calma, em contraste com a pressa geral do povo. Usava um vestido branco com rendas e laços, farto e decotado, e cabelos presos em coque acima de uma nuca alongada. Tinha lábios finos e um nariz delicado, raros de se ver na gente de sua cor. Súbito, desapareceu pelo vão escuro da escada de um daqueles prédios velhos e pardos, que oprimiam as ruas estreitas. Aquele em que entrou tinha em baixo um amplo bar com mesinhas de tampo de mármore branco desgastado e cadeiras de metal enferrujado, e na entrada ao lado o nome quase ilegível de um sindicato em uma placa de latão acobreado.

Da calçada oposta, pude ver a pretinha ressurgir no andar de cima, um salão iluminado por muitas lâmpadas, com portas amplas escancaradas para pequenas sacadas de grades de ferro, rentes à desordenada fiação elétrica dos postes da rua. Agora a via de costas, sentada diante de um preto que lhe passava instruções. Foi uma entrevista breve. Levantou-se logo, e a perdi de vista por um instante, até reaparecer na rua.

Ao atravessar para o meu lado, a pretinha cruzou comigo um olhar discreto, agora por certo nada casual. Acompanhei-a, a certa distância, descendo a rua movimentada e barulhenta, até uma baixada escura pouco adiante, onde se viam em fila, na calçada, os vultos de pessoas que aguardavam o ônibus, imóveis e silenciosas. Não pretendia abordá-la. Mas, por ter sido objeto de seu olhar furtivo, aparentemente ingênuo e inconseqüente, sentia uma forte curiosidade e uma atração sobre a qual acreditava ter inteiro domínio.

Restou, por coincidência, um único lugar no ônibus, justamente ao seu lado. Sentar ali foi obrigatório. Porém, com certeza, todos que disfarçadamente me observavam não acreditariam em acaso, numa terra de orixás malandros e dos espíritos matreiros do candomblé. Ela não me olhou mais; porém, aconchegou-se a mim comprimindo seu braço nu contra o meu, fortemente, os seios escuros e túrgidos arfando de excitação sob o laço de fita branca do decote.

Muitos erram por pensar que têm sempre o domínio das situações e que, inclusive, podem gozar uma doce tentação, sem resvalar para o pecado. Porém, a realidade pode ter mais força que o esperado. A atitude da pretinha me surpreendeu e boa parte da minha segurança e frieza desapareceu. Agora sentia certa premência em abordá-la, em explorar aquela intimidade que se estabelecera já como um compromisso. Desci quando desceu.

O ônibus, com suas janelas iluminadas, afastou-se com sua carga de pretos e mulatos, lento e pesado, em longos roncos sucessivos, e logo tudo ficou em silêncio. Ninguém passava por ali, apesar de não ser assim tão tarde.

Com sapatos baixos, ela caminhava de modo muito natural e macio, com um leve gingar inocente e lascivo, devagar, os olhos baixos como a perpetuar seu assentimento. Tomou por uma rua transversal, de casas comerciais com portas de madeira, entremeadas de pequenos chalés, e iluminada por longa carreira de postes de luz que se apequenavam com a distância. Deixei-a afastar-se um pouco, como uma estratégia para me arrefecer e refletir.

Agora não era como na noite anterior, no Campo da Pólvora: não havia medo. No entanto, meus sentimentos pareciam desajustados do meu Eu. O certo – pensei – é que eu não estivesse ali, a ponto de abordar uma “pretinha” naquela rua de um subúrbio pobre. Se houvesse aceitado o convite de Grimaldi, estaria com ele, e provavelmente com sócios seus, a jantar e discutir seu projeto em algum restaurante elegante, na Barra.

Então me contive. Mas minha desistência teve um motivo imperdoável: deveu-se puramente à soberba, à consciência da minha condição social e de quanto minha auto-estima estaria depois prejudicada, se desse aquele passo. O narcisismo, essa espécie de intimidade indecente que a alma busca consigo própria, foi o que me deteve. A decência deve valer por si mesma, sem mancha de preconceito, covardia, ou altivez. Como na parábola do sepulcro caiado, por orgulho evitar um pecado pode ser pecado maior que o pecado evitado – refleti depois.

O modesto chalé, onde o vulto sedutor havia entrado, tinha sobre o muro da frente um patamar elevado, em parte iluminado pela lâmpada da rua. Ela voltou a aparecer ali, acompanhada de uma menina, possivelmente uma irmã menor, e ambas se curvaram sobre a mureta buscando me ver. Olharam apenas brevemente: a garotinha puxou a irmã – como se fosse a sua consciência moral, ou porque zombasse da minha indecisão –, e ambas correram com vivacidade e se fecharam na casa. Ficou apenas a rua deserta, a luz dos postes criando sombras enigmáticas nas fachadas amareladas das casas, trancadas e silenciosas.

Restava-me fazer o caminho de volta. Retornei ao ponto do ônibus.

*

Eu não queria dar a noite por terminada. Havia bares semidesertos no centro, mas não me atraíram. Na Praça Castro Alves alguns pretos notívagos urinavam em roda, à volta do monumento ao poeta. Peguei meu carro e segui devagar pela Barra onde o movimento também era inexistente. Lembrei-me do livro que tinha comprado e senti um súbito gosto em retornar ao Retiro para lê-lo.

No conforto do apartamento, li noite adentro o romance de Jorge Amado. Sendo ele, então, um porta-voz da cultura, o que ele dizia das baianas seria para se acreditar. Cada personagem mulher do seu romance, xodó dos melancólicos coronéis do cacau que punham tocaia por conta de terras e impunham a lei da obediência nas alcovas e bordéis, me recordava a pretinha daquela noite; sua aparência ingênua, suas formas sensuais, o seu olhar ao mesmo tempo submisso, interrogativo, e imperativo.

Era com esse amor sem leis, terno e convidativo, que as pretas retinham, naquelas ladeiras de igrejas, quiosques e pardieiros, a muitos estrangeiros desavisados. Sua cor era um imã que atraía para a liberdade e fazia desaparecer o pecado. Elas não impediriam seus marinheiros brancos de se fazerem ao mar azul quando quisessem; nem eles, os coitados, acreditavam em feitiço capaz de retê-los, ou de fazê-los voltar àquele país exótico. No entanto, uniões improvisadas, de um primeiro impulso, e que deveriam ser efêmeras, duravam para sempre.

*

Grimaldi não compareceu a um encontro marcado por telefone. Sem a definição de qual o verdadeiro local de sua reserva mineral, eu nada podia fazer. Deixei no seu escritório uma mensagem informando-o de que a aprovação do seu financiamento dependeria da apresentação de provas da posse efetiva de matéria-prima, e do direito de lavra mineral concedido pelo governo.

Parti após o almoço. Quando alcancei Neópolis, era o final da tarde. Passei o rio São Francisco, e por não desejar dirigir à noite até o Recife, me detive em Penedo, cidade sempre acolhedora, fundada pelo célebre Duarte Coelho e onde os holandeses construíram um forte.

O Grande Hotel de Penedo era excepcional para aquela região, com instalações e serviços próprios dos hotéis de classe das Capitais. Seu edifício levantava-se como um prédio largo e sólido, frente de vidro e cimento, linhas modernas, numa transversal da ladeira que descia para o cais. Em toda oportunidade que se apresentava, sempre tinha muito prazer em pernoitar ali. Possuía um excelente restaurante, onde o hóspede era atendido à la carte, por um maître auxiliado por garçons corretamente vestidos e instruídos. Das amplas vidraças em cada apartamento de frente, se podia ver enorme extensão de paisagem, toda ela dominada pela vastidão do rio.

Naquela noite havia um luar claríssimo. Metido em meu pijama, permaneci por algum tempo no escuro, frente à vidraça do janelão, a contemplar aquele cenário noturno magnífico. Aos meus pés tinha os telhados do casario colonial, ladeira abaixo, até a praça do ancoradouro. Sobressaíam ao luar a cobertura e as duas torres da Igreja de Nossa Senhora da Corrente e o telhado e a fachada de sete portas térreas e sete sacadas superiores da casa dos Lemos, a montante da atracação das balsas. Essa antiga mansão era também chamada Paço Imperial, por ter, muitas décadas atrás, agasalhado a família do imperador Pedro II, em sua visita à cidade.

Contrário à correnteza, lentamente deslizando nas águas negras com cintilações do luar, passava um veleiro, com velas triangulares brancas como a lua. Distante, além da ilha fronteira, além da fímbria escura da outra margem, além do minúsculo Sergipe, estava a Bahia, que para mim eram duas, uma o avesso da outra, uma pagã outra cristã. A Bahia litorânea, das úmidas florestas de cacau, do apetite, dos sabores, das artes e das paixões, passadiço de intelectuais vadios; terra de um povo sem individualismo de raízes, com um orgulho humilde da origem comum em uma África desaparecida; terra dos Orixás… E do outro lado da longa estrada de transportar pobreza que segue para o Sul está a Bahia interna, das chapadas e das serras, da seca, do garimpo, da fome e da emigração… e da vida árdua dos padres da Missão! Essas duas partes criam no forasteiro um primeiro sentimento de luxúria que um segundo, de angustia, amarga e constrange.

Mas, tudo isto já faz muito tempo!

Rubem Queiroz Cobra

(*) À época destas lembranças, a Casa de Retiro tinha dois prédios com térreo e primeiro andar, um frente ao outro, e entre eles um espaçoso jardim em suave declive. No prédio principal, na parte mais alta do terreno, as religiosas hospedavam pessoas recomendadas que visitassem Salvador. No outro prédio eram recebidos hóspedes para repouso e recuperação de saúde. Esse segundo edifício tinha um belo salão de jogos como anexo no seu extremo esquerdo, e no extremo direito, próximo do portão de entrada do jardim, uma casa que era um pequeno ambulatório. À esquerda do portão, alongava-se um telheiro sustentado por arcos em alvenaria com incrustações de pedras, que abrigava os carros dos hóspedes e visitantes.

Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85 905519-1-1. Veja, por favor, a página Livros do Autor.

Página lançada em 20/11/2002

Após ler este conto (número 4) envie, por gentileza,

uma nota de 0 a 9 através do CONTATO. O conto melhor

avaliado, desejo transformar em um romance. Obrigado!

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – Não Somos Responsáveis por Nosso Primeiro Sentimento. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, Brasília, 2002.