Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Hoje, é difícil saber, exatamente, por onde passei. As estradas asfaltadas pelos militares da Revolução acabaram com a velha rede de caminhos de terra que percorri. Recordo-me de haver atravessado o rio Vasa Barris, no Raso da Catarina, e ter passado por Curaçá, Carnaíba do Sertão, Salitre, Barro Vermelho e Patamuté, locais onde se extraía o príncipe dos mármores da Bahia, apelidado “Marta Rocha”, por comparação com a Miss Brasil desse nome, que passou para a história da beleza brasileira.
Ao cabo de alguns dias cheguei, já à boca da noite, em Salvador. Hospedei-me, como de costume, na Casa de Retiro São Francisco, um centro de convenções e hospedagem mantido pelos franciscanos no alto de Brotas. Estavam surgindo alguns novos hotéis na cidade, mas era ali que eu encontrava o ambiente tranquilo e ameno, e o convívio com pessoas que também preferiam estar retiradas do burburinho da cidade e do clima ardente das praias.
Quando, na manhã seguinte, após o café, passei pela saleta da portaria para deixar a chave, a diretora da Casa atendia a um senhor franzino e de cabelos grisalhos. Magro e energético, estava de bermudas, e um dos seus joelhos sangrava. Tinha nas mãos um martelinho de ferro, um pequeno cinzel de talhar, e um pedaço de madeira. – Somente um entalhador iniciante poderia usar um martelo de bater pregos em lugar de um macete – pensei. A Irmã lhe deu algodão e um frasquinho de mercúrio para tratar o ferimento e ele se foi. Era um hóspede vindo do Recife, ela esclareceu. Bem cedo ele fora passear na horta e havia, inadvertidamente, se aproximado dos cães que – somente soltos à noite – eram mantidos, desde a manhã, presos em correntes atrás do prédio. Chamava-se “O”.
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Havia dois itens importantes na minha agenda, que cumpri naquela manhã. Na Rua Guindaste dos Padres n.º 11, na Cidade Baixa, entrevistei o Sr. José Carlos e este, conforme me fora recomendado, mostrou-se realmente conhecedor da produção e do mercado de mármores na Bahia. Fui recebido por ele com uma efusão de mostras de consideração e boa vontade em me informar, dissertando com entusiasmo sobre o assunto de meu interesse. Suas informações foram ainda enriquecidas com referências aos mármores italianos. Saí da sua loja com a fotografia da grande lavra de mármore travertino situada a vinte e quatro quilômetros de Roma.
O segundo item foi uma entrevista com os empresários que haviam descoberto, a oeste de Belmonte, um mármore que consideravam ainda mais bonito que o Marta Rocha, do Norte do Estado. Eles queriam um empréstimo para explorar a descoberta e eu deveria dar um parecer sobre a proposta. No luxuoso escritório da empresa me foi dito que, em Belmonte, eu encontraria o geólogo Natal, que viera do Rio de Janeiro para mostrar-me a nova jazida.
Após esses contactos, ao caminhar pela Cidade Baixa, me chamou a atenção a vitrine de uma casa de ferragens. Entrei, atraído por alguns modelos de formões para talha em madeira, dos quais adquiri alguns. Tive ainda a ideia de levar um macete para dar de presente ao industrial, o senhor que eu vira utilizando um inadequado martelinho de ferro para talhar.
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Depois do almoço vi o industrial, e fui oferecer-lhe a ferramenta que comprara para ele. Disse-lhe que também eu fazia talhas, mas ele, para constrangimento meu, pareceu pouco interessado, e não se entusiasmou com meu presente. Compreendi – depois dos incidentes que aconteceriam naquela tarde –, que ele talvez encarasse a talha apenas como uma terapia, assim como a pessoa nervosa amassa uma bola de borracha nas mãos para extravasar o nervosismo. Porém, ainda sem suspeitar disso, convidei-o a visitar o atelier de um entalhador que eu conhecia no Rio Vermelho.
Viera almoçar comigo meu irmão Roberto, que passava uns dias em Salvador. Naquele momento ele havia se afastado, e conversava no terraço da entrada com uma moça que mais tarde me disse que era M., filha do industrial. Ela o convidou para uma excursão pela cidade, e à noite iriam ao Teatro Castro Alves. Não estava com os pais na casa de Retiro, mas na praia, em casa da família P.
Fui só com o industrial, que fez questão que fôssemos em seu próprio automóvel. Como era adequado para o clima, ele trajava calças claras e uma leve camisa de mangas curtas aberta ao peito. Muito inquieto, os olhos vivos, impacientes, falou de seus negócios no Recife, enquanto dirigia. Havia começado com uma tecelagem de sacos de juta na Rua da Aurora. Comprara depois a fábrica de tecidos T.S.A.P. que ficava em Moreno, mas tinha sua sede em uma imponente casa na Avenida Visconde de Suassuna. Eu conhecia essa sede e também o quarteirão de casinhas para seus funcionários na rua por trás daquela avenida. Fiquei sabendo também que, além da filha que estava em sua companhia, tinha mais sete filhos.
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Fomos recebidos com simpatia e respeito pelo artesão, um mulato claro, de seus quarenta anos, de cabelos bastante crespos, e sua mulher, um pouco gorda e de cabelos já com alguns fios grisalhos. Sua modesta casa, caiada por fora de azul esmaecido e com janelas de verde colonial, ficava ao pé do Morro do Conselho, voltada para a praia da Mariquita, pouco além do mercadinho do peixe do Rio Vermelho, em uma ruazinha que terminava no mato da encosta. O local permitia uma imensa vista para o mar aberto e para toda a fímbria de praias que dali se estendia para o sul, até o farol da Barra. O interior da casa, que eu já conhecia, era de poucos cômodos; os móveis modestos mas polidos, tinham paninhos de renda sob algumas jarras e pequenas peças de decoração. A limpeza e a ordem eram como um sinal de devoção da mulher pelos deuses e orixás esculpidos com arte ingênua pelo marido, vários dos quais pendiam das paredes caiadas de branco.
— Você poderia mostrar ao nosso amigo a sua oficina, algumas de suas obras e as ferramentas que usa para talhar? – pedi-lhe.
Eu estava convencido de que o industrial deveria em primeiro lugar conhecer melhor as ferramentas empregadas naquela arte.
O artesão conduziu-nos da sala de lustroso piso de cimento vermelho até o barracão no quintal, onde lavrava suas talhas. Mas aquelas coisas não interessaram ao industrial. Sempre inquieto e nervoso, tomou nas mãos algumas ferramentas, olhou-as com desdém, e as lançou de volta na pequena caixa de madeira, com rudeza. Falou de ferramentas elétricas que seriam mais eficientes, e também não se interessou pelas imagens de candomblé feitas pelo artesão. Deu-nos as costas, e foi liderando o caminho de volta para a casa, irritado, como se tivesse se dado conta de haver seguido uma pista falsa.
Na sala, o artesão, magoado, pediu-me:
— Não traga mais ele aqui.
O industrial ouviu o que foi dito às suas costas, voltou-se, e esbravejou:
— Eu não volto em casa onde não sou bem tratado!
Tudo aquilo era lamentável e incompreensível para mim. Apressei nossa saída, pedi desculpas ao artesão e retornamos à cidade. Não nos falamos no trajeto.
Temos sentimentos assim, que nos assaltam por associação entre fatos, mas cuja ligação lógica entre si nos escapa, e daí não entendermos a paixão que nos violenta, ou a angústia que nos abate. Sem dúvida que aquelas ferramentas de talhar haviam remetido o industrial. à sua fábrica, aos seus funcionários manhosos, aos mestres incompetentes, aos fornecedores espertos e desonestos, aos fiscais corruptos que tinha que subornar, e aos seus próprios erros de cálculo, que o atormentavam. Seu comportamento com certeza tinha mais a ver com o que ele buscava esquecer naquelas férias, do que com a realidade do momento.
Na estreita e movimentada Rua Sete de Setembro, o industrial novamente me surpreendeu. Parou o carro frente a uma loja onde lhe ocorreu comprar alguma coisa, provavelmente para sua mulher. Logo se acercou de nós um guarda para advertir, e o fez educadamente, que ali era de todo proibido parar um carro. Mas o industrial sacou da sua carteira uma nota de apreciável valor, e a deixou ostensivamente na mão do policial que de pronto emudeceu. Era o golpe seguro do empresário habituado a premiar a inépcia quando esta lhe poderia ser útil, tanto quanto a castigar a ineficiência dos que lhe davam prejuízos no seu negócio. Apressado, cruzou a rua movimentada e desapareceu pela porta de um grande magazine. Fiquei a esperar, sentado no carro, e a observar pelo espelho o guarda, que olhava em todas as direções, com certeza temendo que algum colega ou um superior seu o flagrasse naquele inusitado ato de tolerância. Temeria um castigo ou ter que dividir a propina?
Mas o industrial. não precisava ter subornado o guarda, porque multas de trânsito eram importâncias insignificantes para ele e, além disso, naquela época, ocorrências registradas em um Estado dificilmente eram cobradas em outro! Não estaria ele apenas e simplesmente a repetir aquele gesto de solidariedade que era tão comum aos pernambucanos, que por um nada logo davam uma moeda de gratificação? – Lembrei-me do bom Paulo José Duarte, comigo em uma visita à Assembléia Legislativa de Pernambuco, quando o vi colocar uma cédula na bandeja do garçom que nos serviu um cafezinho e do agradecimento daquele homem. Tinha um brilho nos olhos como o daquele policial ao receber a cédula dada pelo industrial.
O industrial retornou afinal, cruzando a rua a passos rápidos, trazendo um pequeno pacote. Entrou no carro e rumamos para Brotas.
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Aquela não foi a última vez que vi o industrial. Eu ainda o veria em Pernambuco, em companhia da esposa, assistindo à missa em uma tarde de sábado, na Capela de Santana, na praia do Rio Doce. Quanto à sua filha, Roberto chegou a encontrar-se com ela em Olinda, onde ela residia com os pais, mas o romance não foi adiante. Ela se casou com outro. Lamentavelmente veio a falecer num acidente de automóvel entre Salvador e Recife quando retornava de sua lua-de-mel.
Rubem Queiroz Cobra
NOTA: Este conto está no livro de R. Q. Cobra AS FILHAS ADOTIVAS. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1. Veja, por favor, a página Livros do Autor.
Página lançada em 12-12-2003
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – Retalho de Memória. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2003.