Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Um casal compareceu ao consultório do psiquiatra acompanhado de um de seus filhos, enquanto a secretária fazia as anotações, pai e o filho sentaram-se em duas poltronas. Mal trocavam palavras. Já a mãe, tagarelava diante da recepcionista e os demais clientes que aguardavam sentados à sala, não perdiam as informações claramente aos devires que ela passava para a enfermeira. O pai um pouco pálido, recordava-se da noite em que sua casa fora invadida por soldados da polícia política, que levaram o filho mais velho ao tempo da ditadura militar. Lembrou-se do desespero da mãe que saíra de camisola de dormir correndo e gritando pela rua de madrugada, atrás do carro da polícia que se afastava, de faróis apagados levando seu filho.
Após os cumprimentos formais, foram convidados a se sentarem pelo psiquiatra, um homem de fina aparência, cabelos ainda completamente pretos, que usava um jaleco branco por cima de um terno cinza, gravata salpicada de bolinhas vermelhas e um belo anel verde no dedo.
A mãe falou:
– O Hélio é o nosso filho mais velho – e eu acho que está muito nervoso, – não gosta muito de obedecer aos pais, não é meu filho? Disse a mãe voltando-se para o jovem.
– Depende! Besteiras eu não obedeço.
O psiquiatra interrompeu.
– Permitam, por favor, questões de família costumam ser bastante complexas, acho melhor conversarmos algumas vezes. Primeiro com o Hélio e depois com vocês, os pais dele.
Tenho um cliente com o mesmo problema. Poderia tratar dos dois, ao mesmo tempo, o que seria muito bom para ambos.
– Como seria isso? Em nossa casa?
Ambos correram os olhos pelo consultório. Uma sala ampla, com uma mesa que agora ocupavam suficiente para até meia dúzia de pessoas.
– O senhor tem espaço aqui, mas…
– Não seria no consultório, mas do outro lado daquela porta, onde teríamos melhor ventilação, luz natural através de três janelas, ar-condicionado, projetor de slides e outros recursos para terapia de grupo.
O casal ficou indeciso, não porque hesitassem entre duas técnicas, mas porque simplesmente não sabiam o que era terapia de grupo. Entreolhavam-se, voltavam-se para o psiquiatra, o pai gaguejando tentando decidir-se. Esperava por um sinal que mulher sempre dava de firmeza e determinação quando era necessário, em uma decisão grave a respeito de um assunto da família.
– Esse outro paciente aceitaria isto? Perguntou ela como um primeiro sinal esperado pelo marido. Este sentiu que podia avançar no sentido de uma resposta positiva para o psiquiatra, guiado como se fosse um cego puxado de mansinho como por um caminho entapetado de relva.
Quando ela o socorria em uma decisão, ele a via como há 15 anos atrás, quando era apaixonado por ela.
– Dora, me parece que poderia ser bom para o temperamento dele. Será muito menos embaraçado e nervoso, se estiver na presença de mais pessoas…
O psiquiatra já notava discretamente em seu celular, a submissão do marido, ao esperar que a mulher tomasse a decisão. Embora fosse capaz de esconder seu medo oferecendo a ela a oportunidade de falar primeiro como uma deferência gentil. Por sua vez ela iria cumprir diante dele o seu papel autoritário desempenhado no lar, de uma mãe, chefe de família.
– Gervasio, é para o bem do Hélio. Vamos concordar com a terapia de grupo que o doutor propõe!
No dia seguinte os dois garotos chegaram para a consulta na hora marcada. Enquanto aguardavam ser chamados, passaram os olhos pela saleta, que Gabriel via pela primeira vez. Sofás coloridos, mesa de centro com duas ou três revistas e quadros de aquarelas reproduzindo com graça e perfeição flores solitárias de cores vivas e evidentemente fies as plantas originais. Os dois rapazes eram os próximos clientes e foram chamados da porta pelo doutor, quando o cliente anterior saiu. Difícil que a esposa do médico não seja a decoradora do seu consultório, delicadeza e bom gosto estavam também na decoração do arranjo em todos os detalhes.
– Nosso trabalho deveria começar com os seus irmãos aqui presentes. Eles com certeza estão muito mais doentes que vocês dois – disse o médico.
Os dois adolescentes olhavam para o facultativo, surpresos com o que ele acabava de dizer.
– O que é que a gente tem? Perguntou Hélio.
– Então quero ir embora, disse Gabriel. Essa conversa está muito chata.
O homem é um ser racional, mas sem perceber o que está fazendo, seus pais querem que sejam irracionais, estúpidos, futuros detentos da cadeia pública, ou loucos internos em um hospício, respondeu o psiquiatra.
– Isso não é verdade. Já aconteceu comigo, mas porque eu quebrei uma tigela de louça chinesa. Eles nunca xingaram meus irmãos, ao contrário, eles os elegiam muito por qualquer
Coisa que façam. Disse Gabriel.
– Aí está o mais daninho e perverso dos jogos que os pais com maior ou menor consciência, fazem com seus filhos. É interesse deles que os filhos desenvolvam determinados traços de caráter. Que um seja mal, seja a ovelha negra da família, e o outro seja mais inteligente, o outro seja humilde e tímido, o outro seja deprimido e incompetente, preguiçoso, esperto, e outros tipos. Continuou o psicólogo – Esse jogo pode ser bom como quando os pais induzem os filhos a serem justos, simpáticos, alegres, mas será mal se a ação paterna obedece a um preconceito que é criado em relação a cada filho de modo irracional, deixando agir a parte ruim do espírito que todos podemos ter, porque fomos criados com aptidões para o bem o para o mal, e para sermos livres e eleger qualquer desses dois modos de comportamento. – Muitas coisas podem contribuir para que alguém mostre um determinado tipo de caráter, mas o principal é a permissão e o estímulo dos seus pais para isto.
– O relógio está marcando o fim da consulta, disse o Hélio. Vamos dar o fora Gabi.
O psiquiatra prosseguiu:
Além de influir no caráter, esse jogo pode ser usado para encaminhar um jovem para uma profissão, uma mãe pode induzir um filho, por exemplo, a ser sacerdote e ele resultar em um mau sacerdote, cheio de problemas e acabar abandonando o sacerdócio.
– Hélio ironicamente perguntou sorrindo. Aconteceu com o senhor de ser induzido por sua mãe a ser psiquiatra?
O psiquiatra calmamente respondeu:
– Posso dizer que sim! Sofri o mesmo que vocês dois, interferência na minha decisão, do que escolher para viver, mas ela e meu pai, acharam que não podiam permitir que eu me ocupasse com uma profissão menor que meus dotes de inteligência, e a posição social que minha família ocupava na cidade, mas se você perguntar se foi uma escolha livre a psiquiatria, respondo que não foi. Eles abriram para mim a porta de um destino que terminou por me fazer feliz.
– Com as mesmas ferramentas poderiam nos induzir ao mal? Perguntou o Hélio.
– Não! Vejam, eles não me desprezaram, não me chamaram de bobo nem de burro. Porque eu desejava algo em que minhas qualidades estariam mal-empregadas. Fizeram-me compreender isto.
O que me preocupa no caso de vocês é que manobram espertamente para arruinar as suas vidas, dizendo que vocês ou alguém em sua presença são incorrigíveis e que precisam ser excluídos da sociedade. Qualquer pessoa vai achar ao contrário. Que vocês são inteligentes e não acreditarão que sejam incorrigíveis e malucos.
Sem dar mais atenção ao psiquiatra, Hélio abriu a porta do consultório e foi aguardar Gabriel na sala de espera.
– Não sei por que o senhor não diz aos nossos pais o que pensa. Falou o Gabriel. Meu pai com certeza lhe dará um murro ou um tapa na cara. Ele é muito nervoso. Disse isto e saiu. Da porta falou… Eu venho aqui porque ele disse que me castigará além do imaginável se eu não vier ao seu consultório.
Os rapazes não apareceram por duas semanas, mas a senhora Dora telefonou para falar com o doutor.
– Antes de marcar eu tenho que saber dele quando ele poderá atendê-la. Eu lhe telefonarei informando a data que ele poderá atender, disse a secretária.
– Não é uma consulta. É que paguei adiantado seis consultas e o número de vezes que o Hélio foi ao seu consultório foi apenas duas.
– Vou falar com ele, aguarde um minuto na linha.
Retornando a secretária disse:
– Uma série de consultas, se forem pagas adiantadamente tem até desconto, posso calcular e lhe mostrar o que resta, mas para anular o contrato a senhora paga mais uma consulta porque precisará vir vê-lo pessoalmente.
– Está certo! Não esperava que vocês fossem assim tão espertinhos. Qual dia e hora eu poderei acertar com ele?
Armada até os dentes com o seu vocabulário destrutivo, a mulher compareceu ao consultório conforme agendou. Não cumprimentou o médico, apenas se pôs de pé diante dele.
– Mantenho o costume de fazer devoluções pessoalmente porque preciso saber a causa da desistência de um cliente que interrompe a terapia. No fundo é apenas um calção para que um destrato seja reconhecido. Aproveito para dizer ainda alguma coisa que possa ser útil para o cliente. Tenho o que lhe dizer nesse sentido com respeito ao Hélio é simples, apenas acho que ele sempre sofreu forte influência da sua parte, e que ele nunca aprendeu a lidar com essa influência.
– Absolutamente ele é livre para fazer o que quiser, disse a mulher.
– Para a criança não faz bem aquilo que quer, mas o que lhe traz reconhecimento dos adultos a sua volta. É assim que a criança aprende. Para o bem de seu filho, dê-lhe mais consideração e reconhecimento quando ele fizer algo de bom para a família, quando ele fizer seus deveres escolares e não quando ele se põe inconveniente.
O médico chamou a secretária pelo telefone interno e pediu que ela lhe levasse as contas de dona Dora.
– Não é bem seu filho que é um “filho problema”. A senhora, e não ele, é que precisa da iniciativa de mudar, de ter calma e para ser mais racional, de acompanhar as atividades de seu filho sempre que puder porque ainda há tempo.
– Desculpa doutor. Eu não me dei conta de que o Hélio estava estressado.
O médico lhe passou o envelope com o dinheiro que ela se apressou em contar.
-Certo! Passar bem!
Quando Gabriel não encontrou o Hélio no consultório na sua próxima consulta, quis saber da secretária se o outro deixara algum recado avisando que não viria.
– A mãe dele o tirou do tratamento psiquiátrico. Ele não virá mais.
O jovem pensou que os seus pais deveriam fazer o mesmo com ele, mas o pai, um homem violento, não permitiria que faltasse a uma só consulta.
O doutor perguntou-lhe, – qual a “qualidade que as pessoas mais admiram em você”?
– As meninas parecem que gostam da minha força, umas, e outras não gostam e não consigo que me aceitem.
– Mas sua mãe não gosta que você seja violento, e por isso trouxe-o ao meu consultório.
– Não! Ela disse que me levaria a um psiquiatra porque quebrei o braço de uma menina na escola. – Ora! Isto é que não entendo. Por que então ela se casou com meu pai, um atleta que está sempre irritado?
– De fato isto é curioso. Sua mãe está preocupada porque você está violento, e ao mesmo tempo dá provas de que aceita a violência ao escolher por marido, um homem que é violento. Vejo apenas uma explicação, que seu pai na verdade não é um homem violento, mas tem atitudes muito enérgicas. Você alguma vez o viu ser violento com alguém ou quebrar o braço de alguém? Parece-me que sua mãe gostou dele por ele ser uma pessoa decidida, firme e corajosa, talvez um pouco ríspido, mas você como criança, e agora como adolescente, ainda não distingue rispidez de violência. Aos seus olhos, de jovem inexperiente ele era violento e cruel.
Esqueça essa imagem de brutalidade que você erradamente tem atribuído ao seu pai e procura imitar a firmeza de decisões que ele tem. Está de acordo? Experimente mudar o seu ponto de vista sobre ele e verá mudar também sua própria personalidade. Aproxime-se então das meninas para que elas conheçam o novo Gabriel.
Está foi sua última consulta, tive prazer em atendê-lo. Tenho certeza de que você vai conseguir. Desejo-lhe felicidades.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 14-12-2021.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Três portas e três destinos. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2021.