Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Desci as altas escadarias do Rosário e continuei pela Rua Trajano.
Pouco antes da transversal Felipe Schmidt, a via de maior comercio da cidade, deparei-me com os jardins ao fundo do Palácio do Governo e, do lado oposto, na rua estreita e de grande movimento de pedestres – o trânsito de carros era proibido –, com o elegante Golden Café. Detive-me à sua porta, lançando um olhar para o seu interior.
Havia um longo balcão com variadas guloseimas expostas na vitrine iluminada, e um luxo sóbrio em todo o ambiente. As paredes e o teto eram decoradas com madeira, ao estilo provençal. As mesas eram servidas por garçonetes com uniforme grená. Senhoras da sociedade, tendo ao lado seus pacotes de compras, alongavam o Chá conversando amenidades, e alguns senhores, que ocupavam as mesas mais próximas da calçada, tomavam calmamente o seu café, liam alguma coisa ou olhavam distraidamente os passantes.
Todas as mesas, inclusive umas poucas debaixo de guardas sois do lado de fora, estavam ocupadas. Porém, um senhor solitário acenou-me de dentro, convidando-me para ocupar o assento vago em sua mesa.
A gentileza tornava inevitável uma conversa.
Fitando-me como um clínico que examinasse a aparência do paciente, diagnosticou:
— Tu és mineiro!
— E como o senhor sabe? perguntei, retribuindo o seu sorriso amigável.
— Veja, – disse ele. — Eu servi em Minas. O mineiro tem rosto comprido, fala mansa, um jeito prudente de olhar, um modo cauteloso de se aproximar. É inconfundível. Identifiquei-te logo que assomastes à entrada do Café, avaliando o ambiente, meio desconfiado.
Meu anfitrião sorveu o último gole do seu chocolate mas não se foi. Prosseguiu, recordando seu passado:
— Foi um espetáculo do qual não me esqueço: os batalhões da Polícia Militar de Minas desfilando em Brasília com grande garbo e ao som da sua banda, o povo a bater palmas com entusiasmo, aglomerado nas calçadas e no canteiro central da Esplanada dos Ministérios. Foram de Belo Horizonte em marcha forçada, em jipes e caminhões, armados com bazucas ante tanques, e entraram na cidade sem encontrar resistência das tropas fieis a Goulart. A Polícia mineira é corajosa, patriota, e tão capaz quanto as forças federais – disse, e fez um parênteses.
— Juscelino foi Coronel Médico da Polícia Militar de Minas, tu sabes.
— Cirurgião – confirmei. — Esse desfile de que falou foi em abril de 1964?
— Ah…Sim! – concordou o meu interlocutor. — Muitos mineiros se alistaram em BH para combater os comunistas. Havia postos de recrutamento na cidade e centenas de civis estavam dispostos a seguir o governador Magalhães Pinto em uma guerra civil contra os vermelhos. Neste pais, é sempre Minas Gerais que põe ordem na casa! E pode estar perto o momento de Minas ser chamada a fazer isso novamente.
Achei graça no que ele dizia.
— Vamos por etapas… – etapas históricas! disse ele. — Para o socialista, a voz do povo não pode ser levada em conta como é levada no regime liberal, porque o povo quer sempre a coisa errada – monarquia, religião, propriedade privada, lucro, etc. A elite de uns poucos intelectuais – escritores, jornalistas, artistas e professores – é que sabe o que é bom para a Sociedade, e esta elite é que deve governar. As duas mentiras preferidas dos socialistas são Educação e Saúde de graça, e o paternalismo é sua maior paixão!
— Essa tese, de uma elite intelectual esclarecida para governar, foi posta pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau, em sua obra “O Contrato Social”.
— Positivo! – disse o meu anfitrião, como se fosse um militar. — Porém, os seguidores de Rousseau se valeram da revolta do povo francês contra os impostos, para impor sua ideologia socialista e promover o regime do Terror. Essa conspurcação da Revolução Francesa foi a primeira Gloriosa Vitória socialista.
— De fato, é sabido que muitos nobres e oficiais franceses lutaram na revolução liberal americana – Lafayette, por exemplo –, e desejavam levar o liberalismo para a França. Uns queriam uma monarquia liberal, com parlamento, como na Inglaterra, outros eram republicanos. Mais tarde, foram os Inconfidentes mineiros que pediram apoio aos liberais americanos para o levante em Minas. Só pensavam em Liberdade!
— Positivo! Positivo! – disse o homem um pouco impaciente com a minha digreção. Eram coisas que ele já sabia. — Então a França precisou de um regime militar totalitário para se livrar dos socialistas radicais. Napoleão fez esse serviço.
Concordei, mas lembrei-lhe:
— Em seguida os franceses precisaram se livrar também de Napoleão para, finalmente, chegarem à Democracia, com a restauração da monarquia em moldes constitucionais.
— A segunda Gloriosa Vitória surgiu com Marx e Engels, ou seja, o Socialismo Revolucionário Comunista, que pretendia ser Internacional. Não mais os famintos contra a nobreza, mas os operários de todo o planeta contra seus patrões. O proletariado dominaria o mundo, seria abolida a propriedade privada, e feita a nacionalização dos bancos, etc., etc. tudo consolidado em um manifesto. Marx e Engels deram aos socialistas um motivo revolucionário novo, bem mais prático e palpável que o liberté, égalité, fraternité dos socialistas franceses.
— Suponho que a vitória seguinte foi a conquista da Rússia?
— É claro! Foi a mais alta e incontestável Gloriosa Vitória do socialismo. – disse ele. Lá a matança não poupou o Czar e sua família, como também não havia poupado Luiz XVI e Maria Antonieta, na França. O genocídio e a confusão administrativa se instalaram no país. Mas a hiper-militarização soviética não deu chance de aparecer, em seu território ou em seus satélites, um Napoleão para por fim ao regime! – disse o meu companheiro de mesa, encontrando no que dissera motivos para uma risada. — Mais tarde o comunismo cairia de podre, sem que ninguém balançasse sua árvore de intrigas, denúncias, contrabando, espionagem, corrupção, e miséria – completou em meio ao riso de mofa.
— Não foi a China uma vitória maior que a Rússia? – indaguei.
— Não, por razões estratégicas. A Rússia, pela sua forte ligação com a cultura ocidental, se fez o polo da sonhada internacionalização do comunismo. A China não oferecia condições para tanto.
— Houve a tentativa espanhola. Neste caso o “Napoleão” da Espanha foi o General Franco?
— Quem mais? Ele derrotou os vermelhos com o apoio dos alemães, e governou até que, passado o perigo, entregou o poder ao Rei.
Tanto azedume tornou-me curioso de saber quem meu interlocutor realmente era. Mas como descobrir?
— Você sabe muito sobre o comunismo. Como chegou a todo esse conhecimento? – indaguei iniciando uma sondagem cautelosa.
— Na minha infância, havia uma janela bem na cabeceira da minha cama. Falava-se então das atrocidades cometidas pelos comunistas contra os católicos na Espanha. E eu estava em um internato de padres. Passei a dormir com a janela fechada com medo de um assalto noturno dos revolucionários. Mais tarde, ingressei no Comando… – ele se conteve. Mas percebeu que não tinha como evitar completar a frase – de Caça aos Comunistas – disse.
Recostei-me mais confortavelmente em minha cadeira. . “Estava explicado”, pensei. Agora eu receava que ele fosse um fanático. No entanto, tudo que ele dissera até aquele momento parecia fazer sentido.
Uma graciosa garçonete chegou trazendo meu café. O ex-comandante pediu a conta.
— Na China o Comunismo se dissipou – disse ele, voltando ao ponto em que sua fala fora interrompida por mim. — Um governo militar ditatorial vem fazendo a gradual transformação do socialismo para o liberalismo com sua economia de mercado. Mas devagar, conforme a proverbial paciência chinesa.
— A Inglaterra também passou por uma experiência, disse eu. — com uma “monarquia socialista” – se me permite a expressão.
— Que não escapou do habitual fracasso, e foi reprovada pelos britânicos. Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, foi o Napoleão de saia, lá deles – completou, com o bom humor de antes.
— No Brasil não houve vitórias, penso eu.
— Como não? Houve inúmeras! Aqui os comunistas tornaram-se os parasitas de todo movimento reivindicatório normal nas democracias. Emprestavam organização e agressividade a esses movimentos. Em outros não participaram, mas hoje contabilizam para si, como é o caso da Coluna Prestes, um grupo de militares revoltados contra o presidente da República. Prestes não era comunista, mas aderiu quando, exilado em Buenos Aires depois da dispersão da Coluna, um amigo lhe falou da doutrina e lhe emprestou livros. Foi para a Rússia estudar o regime, e retornou acompanhado de meia dúzia de agentes estrangeiros – entre eles aquela que viria a ser sua mulher – incumbidos pelos soviéticos de promover a revolução Comunista no Brasil.
Naquele instante passou ao longo do balcão iluminado um homem que se voltou em nossa direção e saudou discretamente o ex-comandante, ao mesmo tempo que olhava para mim intrigado, como se não entendesse a razão da minha presença ali. O Comandante retribuiu com um aceno tranquilizador.
— É um dos meus antigos comandados. Há um bingo no fundo do Café e nos reunimos uma vez por semana aqui. Isto ajuda a gente a se manter unida e alerta – disse o Comandante. Voltando ao assunto, afirmou:
— Como é sabido, em trinta e cinco Moscou determinou que era chegada a hora, e Prestes recebeu ordem para deflagrar a Revolução marxista no País. Os brasileiros ficaram estarrecidos com as atrocidades cometidas pelos comunistas em poucos dias.
— Mataram no Rio de Janeiro oficiais do exército enquanto dormiam – lembrei. — Foi uma outra Noite de São Bartolomeu!
— A partir de então as Forças Armadas mantiveram-se vigilantes. Repetiu-se a mesma situação do militarismo francês que pôs fim ao desvario socialista: Getúlio Vargas, militar gaúcho, cercou-se de generais e de liberais competentes, meteu na prisão os líderes da sandice comunista, e esvaziou as bandeiras comunistas promulgando ele próprio as leis trabalhistas. Mas, como Napoleão, ele haveria de cair. Veio um período democrático, que deu aos comunistas a chance de se reorganizarem, para serem novamente batidos em sessenta e quatro. Hoje vivemos um novo momento pós-militar, expostos a nova investida vermelha. Precisamos agir ou estaremos submetidos a um regime que destruirá o País.
— A Igreja também foi um obstáculo sério para o comunismo. Obviamente estão em extremos opostos, o materialismo comunista e a religião.
— Que engano o teu, caro mineiro. Na Rússia, eles conseguiram desacreditar a Igreja Ortodoxa, instigando seus prelados uns contra os outros, e assim anularam a resistência religiosa ao materialismo e ateísmo do Estado. Suas Igrejas foram transformadas em museus. No Brasil, fizeram coisa muito melhor.
— Mas a Igreja Católica se preveniu muito bem contra o materialismo e o ateísmo dos comunistas, criando a Ação Católica, que abrangia a Juventude Operária Católica – JOC –, a Juventude Universitária Católica – JUC –, e outros sub grupos muito atuantes.
O ex-comandante deu mostras de impaciência, mas argumentou com calma:
— Para vencer tais obstáculos a orientação vinda de Moscou foi a estratégia mais brilhante dos socialistas em toda sua história. Infiltraram na Juventude Universitária Católica agentes que eram universitários apenas de matrícula, e com isto conseguiram dominar a União Nacional dos Estudantes, a UNE, cuja presidência os marxistas ocupam até hoje. Misturados aos jovens católicos, lançaram a frase mágica: “a ideia central do socialismo é a ideia central da própria mensagem de Jesus Cristo, que é resgatar os pobres e oprimidos”! Iludidos por eles, vários jovens se tornaram marxistas. Continuaram católicos, porém santos por uma outra via que, apesar de liberticida e ateia, mostrava um caminho imediato para socorrer os pobres e famintos: a Revolução!
— Mas aí não houve vitória! Isto não abalou absolutamente a Igreja Católica. Apenas o Comunismo materialista e ateu passou a ter, paradoxalmente, uma Ala Religiosa, com sua teologia própria – objetei. O comandante mudou de assunto:
— E o glorioso Soixante-huitard?… Foi um desfile triunfal de baderneiros sob a liderança dos intelectuais socialistas em Paris. A baderna espalhou-se pelo mundo, como se fosse uma novidade lançada pela alta costura francesa. Nos Estados Unidos a Universidade de Berckely sediou a melhor parte da festa. A cópia brasileira incluiu a destruição da biblioteca Central da Universidade de Brasília pelos alunos, porque em suas estantes havia livros doados pelos americanos. Na França foi novamente necessário – agora com mais urgência – buscar um “Napoleão”: Charles de Gaulle.
— Aqui a ditadura militar recrudesceu sua ação repressora.
— Acuados, os comunistas então apelaram para a sentimentalidade do brasileiro através da literatura; do teatro e da música, com cenas e baladas cheias de comovedores lamentos. Escritores e dramaturgos simpatizantes estavam encarregados da guerrilha nas letras –, que continua até hoje para escorar as “indenizações”. Cantores e compositores ganharam dinheiro com os contratos para atrair gente para os comícios comunistas, como o das “diretas já”. Este foi assistido por mais de um milhão de pessoas devido 100% às notáveis atrações musicais apresentadas. Você pode dizer que estou mentindo?
Uma mulher que parecia usar uma peruca castanha ocupava a mesa próxima.
O ex-comandante avançou o rosto para me segredar:
— Repare no modo de segurar a revista desta mulher na mesa ao lado, de costas para nós. Ela arqueou o dorso das páginas para refletir o som. Sabe quem eu sou, e está tentando acompanhar nossa conversa. Age como uma ex-guerrilheira – cochichou. — A peruca é um disfarce.
Eu não me contive e sorri da sua observação fantasiosa. Mas eis que, como se houvesse escutado o que foi dito, a mulher fechou a revista em um ato reflexo. Surpreso, tomei a sério a suspeita do ex-comandante. Parece que, de fato, estivera escutando o que falávamos.
— Vês? Estão por toda parte, e vitoriosos! E o que me dizes das chamadas “indenizações”? –perguntou ele, retornando ao ponto em que interrompera sua crítica.
— Tenho dúvidas sobre isso. A guerrilha prejudicou os dois lados. Penso que todo o episódio deveria ser aceito como guerra civil, e então não caberia indenização a nenhuma das partes– arrisquei.
— Em 1964, colocar o Brasil sob o comando direto de Moscou, como um satélite soviético ultramarino, significava trair a Pátria. Não há dúvida de que a lista de nomes dos indenizados é uma verdadeira Lista de Schindler de traidores da Pátria naquela época. Mas, possivelmente tu não encontrarás mais os crimes deles nos arquivos pois, há dezesseis anos no poder, tiveram acesso aos registros e podem ter deixado lá – acrescentado de novos “depoimentos” –, só o que pretendem utilizar contra os militares, e já planejam condená-los por não haverem traído a família brasileira.
Aproveitei para lhe colocar um fato que me intrigava:
— Porque aqueles que são sabidamente comunistas não estão no Partido Comunista?
— Boa pergunta! A euforia que a Revolução de 1964 despertou na população brasileira humilhou profundamente os comunistas, porque mostrou que suas teses materialistas e liberticidas eram repudiadas pelos brasileiros em geral, católicos ou não. Isto se agravou quando o império soviético veio abaixo, com a queda do muro de Berlim. Por prudência, afastaram-se do nome pejorativo de “comunistas” e se separaram em quatro frentes: o grupo principal, que se inseriu no Partido dos Trabalhadores; um grupo mesclado de liberais e socialistas que atende pela alcunha indecifrável de “neoliberal”; um pelotão insignificante que sustenta a sigla do Partido Comunista propriamente dito; e um quarto grupo que é utilitário – tem escolas de doutrinação marxista e se exercita permanentemente nas invasões de terras –, é aguerrido, e está pronto para a ação. Esse esquema inteligente e vitorioso trouxe-os ao governo, e estão agora à beira do poder absoluto, quando então se mostrarão de corpo inteiro.
— Tenha cuidado! – aconselhei.
— Já entraram todos, disse o ex-comandante. – Contara seus homens como se tivesse recuperado seu antigo posto de comando. Pagou a conta e fez menção de se levantar, mas eu o retive ainda por um instante:
— Então eu lhe pergunto. Se a história mostra aos próprios comunistas que eles nunca conseguiram fazer nada contra a injustiça social senão igualar na injustiça todas as classes; nem melhorar as condições de vida do povo, afinal, o que ainda pretendem? Porque têm uma fé tão inabalável nesse regime?
— Porque é uma doutrina riquíssima de atrativos! O socialismo satisfaz aos sentimentos de fraternidade e compaixão das pessoas sensíveis; parece inteligente e legítimo, garante teses de mestrado do agrado dos professores socialistas que dominam as universidades, oferece miragens de poder aos que sonham com a glória, e aponta alvos para aqueles que têm necessidade de odiar alguma coisa.
— E muitos pensam que o comunismo é apenas um programa social sério que um governo democrático deveria adotar – interferi.
— Consegue mais facilmente votos para quem quer se eleger mas não tem dinheiro para bancar uma campanha, além de outras vantagens – prosseguiu ele. — Mas nunca dá certo porque condena o lucro, e o homem não cria nem produz sem lucro. Ele não quer praticar boas ações e ir para o inferno. Espera o céu como recompensa. Assim também não lhe interessa plantar ou criar gado mais do que para seu próprio sustento, se não pode vender ou trocar livremente o seu produto. O socialismo ficou marcado para o fracasso desde que nasceu, porque tira essa liberdade do homem. Quer que ele produza para receber em troca uma ficha de racionamento. Os planejadores socialistas querem que as pessoas se igualem em moradias coletivas, que percam sua individualidade, e obedeçam ao Estado sem nada questionar. Então, é claro que a “má vontade geral” haverá de derrotá-los.
De pé, o ex-comandante tocou meu ombro como despedida. A caminho da porta ainda se voltou e vaticinou:
— Escute o que te digo: em breve Minas será chamada novamente!…
Rubem Queiroz Cobra
NOTA: Há pouco tempo, o Golden Café e o bingo foram fechados.
Página lançada em 06-04-2010.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – As gloriosas e incontestáveis vitórias do socialismo no Brasil. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2010.