O Capitão do Terceiro Reich

Hoje: 18-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O enferrujado cargueiro do Capitão Klein estava novamente atracado no cais de minério da Companhia Inglesa, na costa do Brasil. Aquela era a última viagem do Capitão ao Atlântico Sul.

Como todos os capitães alemães da marinha mercante que serviam a outras bandeiras, ele fora convidado a se alistar na armada alemã, então em acelerado processo de expansão e modernização. Esse convite mudara sua vida. Contava que, em vista de sua longa experiência no mar, o fariam Almirante. Assumira a arrogância de futuro oficial graduado e membro convidado do Partido. Não mais se misturava aos seus subalternos para beber e farrear com mulheres, em cada porto.

Na verdade, sua pele tisnada pelo escaldante sol tropical o faria confundível com sua própria tripulação, não fosse sua estatura mediana um pouco superior à dos seus marujos orientais. Mas os bons tratos devidos a uma patente do Alto Comando do Terceiro Reich haveriam de lhe recuperar a cor rosada e o louro dos cabelos, acreditava. Passou a andar de cabeça erguida e pescoço retesado para parecer mais alto e fidalgo.

Durante a viagem fizera muitos planos e haveria de executá-los com as proverbiais precisão e meticulosidade germânicas, a começar pelo desvio da carga, o que lhe renderia milhões de marcos. Tinha seus planos também para a mulher que o seduzira na viagem anterior. A parte humana que restava do seu coração a desejava ardentemente. Poderia levá-la como uma serviçal, um modo de esconder que tinha por amante mulher de raça inferior. Confiava em sua autodisciplina e estava certo de que, quando encontrasse a fêmea germânica ideal, despacharia a mulata de volta ao seu maldito país tropical. Queria filhos louros, arianos puros como ele próprio.

*

A Companhia inglesa aproveitara o mar represado por trás do arrecife para construir o porto. Este se resumia a um trapiche com a forma de um “T”, de tábuas espessas de madeira resistente às intempéries, sustentado por troncos roliços fincados na lama escura da praia. Uma longa estrutura de ferro sustentava, sobre roldanas inclinadas, a correia côncava, carregada de minério, que deslizava dos silos até a beira do cais, onde um segmento móvel elevava sua ponta para deixar cair o pedregulho diretamente sobre os compartimentos de carga dos graneleiros. Terminada a atracação, o gerente da mina subiu a bordo.

— Aquela mulher, lembra-se?… Da outra vez?…– perguntou-lhe o Capitão, enquanto examinava superficialmente os papeis respectivos à carga de minério. Ambos estavam de pé frente à vidraça da ponte de comando. — Diga-lhe que trouxe um pequeno presente para lhe dar.

— É uma pena Capitão, mas ela não mora mais nos barracões com as outras, disse o gerente cauteloso. — Mora com um sujeito que recolhe o jogo do bicho aqui no escritório e na mina. – completou, evitando olhar o Capitão, temeroso da sua reação. — Até ofereci um emprego a ela, para que continuasse aqui, mas recusou.

Os sinais de desapontamento nas feições subitamente endurecidas e no estreitamento dos olhos azuis do Capitão impressionaram o homem. Achou melhor não estar ali, e voltou-se para sair. Mas, precisava dos papeis assinados. Tentou remediar a situação:

— Eu lhe mandarei uma outra, Capitão… – se o senhor quiser. É muito calma e obediente, para tudo o que o Capitão desejar. E se não lhe agradar, poderá dispensá-la e tentaremos mais outra.

— Onde está ela? – perguntou asperamente o comandante.

Diante do olhar de aço do Capitão, o gerente não teve coragem de mentir. Suado e gaguejando, disse, contrafeito, onde ele poderia encontrá-la.

O Capitão devolveu as folhas autografadas sem se preocupar em examiná-las com atenção – o que inquietou o gerente –, e abriu a portinhola para o estreito passadiço externo, frente à ponte de comando. De fora, a vista era a mesma que do interior da cabine, porém desimpedida das vidraças. Via-se, lá em baixo o trabalho dos marujos a remover as pesadas pranchas de ferro que vedavam as bocas dos porões que receberiam a carga de minério. Para além, os recifes se perdiam no horizonte, parecendo se unirem ao continente. O gerente se sentiu obrigado a acompanhá-lo.

— Para o caso do Capitão não ter reparado, desta vez a carga destina-se ao porto de Antuérpia – advertiu.

— Em meia hora poderá acionar a correia, disse secamente o capitão, sem se voltar. — Preciso do carro da companhia…

Iria procurá-la com a proposta que lhe parecia irrecusável, de que fosse com ele para a Alemanha.

— A caminhonete está à sua disposição, Capitão, junto ao primeiro silo. O chofer está lá perto – disse o gerente, retirando-se.

*

No alto do morro, o Capitão perguntou a um grupo de mulheres – que conversavam no meio da rua, apenas enroladas em toalhas de banho e pedaços de lençol –, onde encontrá-la.

— Com uma lua destas, Capitão? É meio dia!…– gracejou uma delas.

— Vem a sonhar – quem vem do mar – e não pode esperar – p’ra vadiar! – cantarolou outra.

— Mora com o Magrelo na casa em frente. – disse uma mais séria, deixando cair parte da toalha que lhe vestia a nudez, para apontar a casa com a mão livre.

Ao assomar à porta do casebre o Capitão percebeu um vulto que se escondia, fugindo por uma porta ao fundo. Porém, tinha olhos apenas para ela, seus cabelos negros em contraste com as grandes argolas douradas nas orelhas e o vestido azul e verde que lhe salientava a cor morena da pele –, de pé, ao lado da mesa em que estava servido um almoço disposto para dois, de arroz, feijão e bolinhos gordurosos.

— Tenho um presente para você no barco. Disse ele.

— Não posso Capitão… Eu estou casada. – mostrou-lhe uma aliança que lhe pareceu ser inteiramente ouro. Aquela pequena joia, de alto preço, indicava um compromisso que era real, pensou o comandante com um acesso de ciúme que mal conseguiu controlar.

— Eu sei que está casada. Mas passe lá para pegar o presente, como uma lembrança minha – tomou-lhe a mão e beijou-a. — Madame! – e arrematou o galanteio batendo os calcanhares, como futuro oficial nazista.

Saiu com uma promessa manhosa feita por ela de que haveria de ir até o porto.

Ao passar pelas mulheres ouviu risos e cochichos a meia voz. “O Magrelo correu com ele” – pensou ter ouvido. Mas isto não o afetou, pois a dor que sentia era maior que o sentimento de humilhação que lhe desejassem causar com seus motejos, as três prostitutas.

Começou a descer o morro com os olhos anuviados, um frio nos pés, o estômago nauseado e a camisa molhada de suor. Acertou o passo, a cabeça erguida, para manter uma aparência altiva e inabalável. O brilho do sol e a atmosfera límpida deixavam nítidos os detalhes da bela paisagem tropical, que do morro se descortinava por sobre a mata. Via-se, distante, o navio atracado, pequeno como um brinquedo de criança. Para o sul e para o norte estendia-se um imenso mar verde esmeralda com fimbrias de espuma avançando lentamente para as praias – todo aquele rico cenário ele tivera pelas costas ao subir, e agora, que o ciúme o cegava, não podia ver, ao descer.

Naquele miserável estado de ânimo em que estava, ainda sofreria mais aborrecimentos. Era sem dúvida do bicheiro – que ele havia percebido na casa a esconder-se –, o vulto que agora o perseguia pelo caminho, ladeira abaixo.

O esperto Magrelo aparecia e chamava o Capitão de onde ele menos esperava: por trás de uma moita, por trás de uma pedra, de cima de um barranco, a dizer impropérios, a maioria endereçada à mãe do futuro condestável da armada tedesca. Saltava, rodeava, passava-lhe pela frente, com a agilidade e leveza de um gato brincando com sua presa. Era graças à sua extraordinária mobilidade que era imbatível numa briga de faca.

O Capitão caminhava a passos regulares, mas sem o desejado aprumo, devido à declividade do terreno e o cascalho no chão. Olhava para a frente, como se o seu provocador não existisse. Mas estava atento a uma oportunidade. Um momento em que o mulato apareceu agachado sobre uma pedra, à beira do precipício, ele sacou instantaneamente da sua Mauser 6.35mm e, sem mesmo olhar na direção dele, acertou-lhe um tiro que o fez voar para trás, rolar e desaparecer entre as bananeiras na encosta do morro.

Sem se deter, o comandante guardou a arma novamente e continuou a descer o declive com seu andar metódico. Encontrou o motorista dormindo. Apenas jogou-se pesadamente no assento e o homem acordou, levando automaticamente o dedo ao botão de ignição no painel, para dar partida ao motor. A velha caminhonete Leyland foi se sacudindo e cacarejando de volta para o porto.

*

O gerente o saudou à distância, quando desceu do carro frente aos silos de minério. Ao caminhar pelo píer de madeira, o Capitão procurava aparentar calma e preservar sua figura de grande oficial. Foi, porém, tomado de súbito acesso de fúria ao perceber que seu navio estava fortemente inclinado para a proa, e a popa já mostrava a ponta da hélice. — Maldito javanês, disse entre os dentes.

Ele recomendara ao contramestre que destinasse a carga alternadamente aos porões da proa e da popa, para não por em risco a estrutura do barco. Mas este – supunha o Capitão que por preguiça – carregara consecutivamente dois porões dianteiros, para o que lhe bastara mandar afrouxar as amarras e deixar a correnteza das águas do canal mover o barco ao longo do cais, sem precisar ligar as máquinas à ré.

Sua ira contra o oriental canalizou sua raiva por tudo que acontecera aquela manhã. Afrontou o javanês com um tapa no rosto, puxando a Mauser para evitar que o marujo destravasse a faca que já tinha na mão. Ameaçou deixá-lo em terra quando zarpasse e prometeu meter-lhe uma bala na cabeça se novamente o desobedecesse no mar. O javanês limpou o sangue do nariz com as costas da mão e se afastou impotente, com um ódio que lhe arrancava lágrimas.

*

Em meio à tarde um marujo veio avisá-lo de que um homem da Terra o esperava no salão do barco. O Capitão desceu incontinente os dois lances da escada de chapas de ferro. O estranho apresentou-se: era o delegado da cidade vizinha do povoado. De pele azeitonada, baixo e volumoso, vestia um terno branco de linho, amarfanhado e já um pouco amarelecido pelo uso. Respeitosamente removeu da cabeça um chapéu de panamá. O Capitão convidou-o a subir com ele para sua cabine, onde conversariam a salvo da curiosidade da tripulação.

A presteza com que a polícia viera no seu encalço não o surpreendia. Se não fora visto atirando, com certeza o tiro fora ouvido pelas mulheres. Ainda assim pretendia negar o crime, e ganhar tempo para zarpar. Ofereceu à visita uma cadeira junto à mesa de navegação. Porém, atento ao leve vibrar causado pelas máquinas, pediu licença para observar da janela o reposicionamento do barco para o carregamento de mais um compartimento.

O delegado, segurando com ambas as mãos o chapéu apoiado sobre a mesa, aproveitou aquele instante – enquanto o Capitão olhava pela janela – para observar os objetos espalhados sobre os móveis ou fixados nas paredes da cabine. Desviou os olhos do retrato do Füher, em um quadro de moldura preta – com seu bigodinho e seu olhar determinado posto no sonhado futuro milênio de dominação germânica – para pousá-los sobre outro, de moldura branca, de uma mulher de olhos e cabelos claros, que supôs fosse a mulher do Capitão. Mas era a mãe dele quando jovem, e o Capitão lembrara-se de fixá-lo como testemunha para si mesmo da pureza racial em sua origem ariana.

Quando se reaproximou, o capitão ocupou a cadeira na outra ponta da mesa. A distância ajudava-o a vencer a repugnância em sentar à mesma mesa com um mestiço.

— Cheguei a aprender um pouco de sua língua, disse amigavelmente o delegado. — Minha mãe, que era africana (evitou a palavra “escrava”) casou com um português, comerciante em Salvador – um pai generoso que pagou meus estudos.

Por um instante o olhar do Delegado se perdeu em visões da infância na Cidade Baixa, proximidades do Guindaste dos Padres… Parecia não ter pressa alguma. Voltando a si, prosseguiu:

— Estudei Direito no Recife, naquela célebre Escola onde os grandes mestres e seus melhores alunos liam alemão. Pretendiam aplicar o pensamento de Haeckel à teoria social do Direito. Este ilustre cientista e filósofo era do seu país, Capitão. Ele dizia que nem todos os povos haviam se separado suficientemente do macaco ancestral, e o senhor sabe, ele se referia a pretos, índios e mulatos…

O Capitão enrubesceu. Não que tivesse vergonha da tese do seu compatriota, mas por ignorar um nome ilustre de sua raça. Precisava adquirir cultura – mais do que os rudimentos aprendidos na Escola de Marinha Mercante na Inglaterra –, a fim de se colocar no mesmo nível dos altos oficiais da SS, ou não lhe dariam o cobiçado Almirantado. O Delegado, olhando pensativamente suas mãos escuras que seguravam sobre a mesa o seu chapéu, comentou:

— É lamentável, mas o conhecimento torna a uns sábios e humildes diante do Mistério, mas à maioria faz orgulhosa. Até o conhecimento dos livros sagrados gera soberba, ou não haveria a Guerra Santa.— A África e os africanos sofrem muito, Capitão, e não mereciam essas teorias abomináveis. O que chamam “Continente negro” com certeza é – devido à humildade e ao sofrimento do seu povo – a parte mais clara e mais luminosa do Universo aos olhos de Deus.

O delegado levantou a vista para um livro espesso, na prateleira de um pequeno armário com porta de vidro, com o título Die Heilig Bibel impresso na lombada – um exemplar que o Capitão usaria eventualmente se tivesse que casar passageiros ou lançar um corpo ao mar.

— Segundo a Bíblia – prosseguiu – o orgulho é o pior pecado, o mais difícil de ser perdoado pelo Altíssimo. Eu cresci católico e prefiro ser imperfeito e pecador – por causa da minha fraqueza – mas acreditar Nele, que ser metido a doutor em Leis, e não conhecê-Lo. No último minuto, quando eu me separar de vez do meu chapéu, Ele me perdoará.

A conversa do delegado passava tão longe do suposto objetivo que o Capitão atribuía à sua visita que ele começava a se impacientar. Então o Delegado colheu-o de surpresa. Como se fosse segredar alguma coisa, esticou-se na direção do Capitão, ao mesmo tempo que fazia deslizar o chapéu rumo ao peito, e disse:

— Veja, Capitão. Não estou armado nem trouxe qualquer escolta. Mas poderia lhe dar voz de prisão!

A virada brusca talvez fosse um recurso de interrogatório inventado pelo delegado, pois não deixou de abalar perceptivelmente o interrogado.

— Não compreendo do que o senhor está falando…– disse o Capitão com uma comprometedora falha na voz. O delegado não fez caso de suas palavras. Sentindo-se seguro, ponderou, como se buscasse um acordo:

— O que desejo é apenas uma reparação. Mil e duzentos dólares o senhor com certeza terá no seu cofre. Passarei esse dinheiro para a viúva, pode confiar.

Em seguida, confidenciou-lhe as vantagens do negócio:

— Se o senhor concordar poderá ir tranquilo. Quando voltar a este porto, nada lhe acontecerá. Sabe o que farei? Mesmo um réu confesso será absolvido se, no inquérito policial, o delegado tratar de implantar algumas dúvidas sobre a sua culpa. Isto pode ser necessário, quando um pai extremoso não quer ver o filho na cadeia, mesmo que este tenha confessado seu crime. Isto é meio secreto, Capitão, mas posso lhe garantir que vale mais – e será mais barato –, conquistar um delegado, que ter no bolso um colegiado de juízes ou um time de dispendiosos advogados na barra do tribunal.

Continuando a negociação, o Delegado revelou quais seriam, no caso, as dúvidas salvadoras:

— O motorista, que podia vê-lo descendo o morro, não o viu cometer o crime, e posso fazê-lo jurar seu depoimento no tribunal. O gerente da mina sabe a hora que o senhor voltou ao barco, bem anterior à fixada pelo legista para a morte da vítima. Não pode ser o culpado! Imagina! Um tiro só, certeiro no coração da vítima! Um disparo de tal precisão – foi alguém de tocaia no caminho, quem atirou. Uma vingança traiçoeira entre marginais.

Porém, mudando para um tom ameaçador, o semblante subitamente carregado, o Delegado revelou como poderia chantageá-lo para obter o que queria:

— A bala, do mesmo calibre da sua bela Mauser alemã obviamente não irá aparecer. Ela atravessou o corpo da vítima e se perdeu. Mas, o senhor sabe, eu a tenho em meu poder e posso apresentá-la como prova.

O Capitão sorriu.

— Mas, conforme o senhor diz, poderia ser duvidoso que eu tivesse uma Mauser, não é?

O delegado contrapôs, com determinação:

— Cabe a mim levantar todas as dúvidas ou não haverá nenhuma, e os juízes o deixarão esquecido, mofando na cadeia lá no Presídio da Mata Escura.

Dito isto o Delegado levantou seu chapéu e apareceu debaixo dele a pequena Mauser de bolso do Capitão.

— O senhor a esqueceu sobre a mesa e não fiz mais que colocar sobre ela o meu chapéu, disse o Delegado, como uma desculpa irônica.

O capitão, de onde estava, não podia alcançar a arma. Ergueu-se, sem nada dizer, e dirigiu-se a um armário para apanhar uma garrafa de xerez e dois copinhos de cristal de fundo maciço e pesado. Serviu um ao delegado e se reservou o outro. Depois, com a bebida na mão, caminhou imerso em pensamentos para a ponte de comando, contigua ao seu gabinete.

O delegado, para não ser deixado só, sorveu de um gole o xerez e o seguiu, a passos apressados, com seu chapéu de panamá na mão. Alcançou o Capitão já do lado de fora, no passadiço fronteiro às janelas de vidro da cabine. O oficial observava a cascata de minério que a esteira transportadora despejava com um ruidoso farfalhar, lá embaixo, sobre a ampla e negra abertura do porão, as pedras rolando como uma torrente de almas a gemer, precipitando-se nas profundezas do inferno.

Sem que o delegado percebesse, enquanto bebia do pequeno cálice que tinha na mão esquerda, com a direita o Capitão empurrou lentamente a lingueta da tranca que fechava um segmento móvel do corrimão do passadiço, deixando livre. Essa parte, girando sobre uma dobradiça, abria passagem para uma escada de alças de ferro que descia verticalmente, colada à parede de metal da ponte de comando, até o convés.

Nesse momento o delegado fez um gesto que dispensou ao Capitão dar seu golpe final. Apoiou-se na parte móvel do corrimão e esta, destrancada, abriu-se prontamente. O chapéu na outra mão atrapalhou-o ao tentar segurar-se na ponta firme ao seu alcance. Percebendo em uma fração de segundo o que acontecia, fitou de olhos esbugalhados o Capitão. Seu corpo despencou em queda livre da ponte sobre a borda do convés e repicou para o fundo do compartimento de carga, bem por baixo das pedras que jorravam do alto, da ponta da esteira rolante. Seu chapéu, o vento levou para o mar.

*

Magrelo – que não sofrera qualquer arranhão – e seu amigo Ferrolho esperaram pacientemente, durante a madrugada, o momento propício para subirem a bordo sem serem vistos. Corpos de marinheiros e mulheres que dormiam semidespidos depois da orgia da noite juncavam a sala de estar do navio, onde havia um pequeno bar para o comandante e o limitado número de passageiros que um cargueiro tinha permissão de receber. Na verdade, aqueles que vieram no graneleiro, em número de doze, haviam ficado em Salvador para conhecer as igrejas. Lá o barco, depois de carregado, os receberia de volta a bordo – não fossem outros os planos do Capitão Klein. Um cheiro nauseante de álcool, cigarro e perfume denso e barato misturado a suor empestava o amplo compartimento. Alguns roncavam em um sono inquieto. Espalhados sobre o linóleo molhado do assoalho, cacos de copos, garrafas vazias e pontas de cigarro. A profusão de luzes acesas aquecia ainda mais o ambiente.
Os dois, com cuidado, subiram a escada para o convés superior. No caminho Magrelo revistava as cabines e saletas na esperança de encontrar o amigo Delegado, que ele acreditava estivesse amarrado em algum lugar do navio. Ao chegar ao nível da Ponte de Comando, ouviram uma voz. Era o Capitão que, trancado na sala do telegrafista, falava em sua língua gutural, silenciava para ouvir, e gritava sua resposta. Valia-se do fato do rádio funcionar melhor com a temperatura mais baixa, durante a madrugada. Fazia acertos com alguém, e o seu diálogo dava aos dois intrusos tempo para agir.

Enquanto Magrelo mantinha guarda junto à porta, Ferrolho foi direto ao cofre e ocupou-se de abri-lo. Não precisou de nenhuma de suas ferramentas. Surpreendentemente em poucos segundos abriu a portinhola pesada e recolheu um grosso maço de dólares. Ambos deixaram o navio com a mesma rapidez e leveza com que tinham entrado.
— Havia um selo com três números, colado na lateral do cofre – relatou o arrombador. — Mas o segredo dos cofres deve ser de três dezenas. Coloquei a série invertida dos mesmos números paralela à primeira série, mas não deu certo. Então fiz novos pares invertendo a primeira parte e deixando a segunda na ordem em que estava. Aí, a porta se abriu! – explicou.

*

Tempestade! – murmurou o Capitão para o timoneiro, observando a rápida queda do barômetro. Com os olhos fixos no horizonte escuro, tinha consciência clara do que esperava o seu velho e pesado cargueiro nas próximas horas. Mas, lembrar-se de que estava a apenas 200 milhas de encontrar os piratas argelinos e receber sua comissão, e a visão fulgurante do almirantado que o esperava, fizeram uma onda de coragem lhe aquecer o peito. Já vencera tufões no Pacífico e no Caribe, e nunca perdera seu barco. Deu ordens ríspidas ao contramestre, ao timoneiro e ao maquinista. Seu orgulho não era tanto que se atrevesse a desafiar os Céus, mas, quando se sentia ameaçado no mar pela natureza enlouquecida, pensava em Deus como o adversário em um jogo perigoso que ele dominava com perícia, e no qual o outro lado sempre havia perdido a aposta. Não percebeu que alguém, vindo de seu gabinete, entrava na cabine pela sua retaguarda, e não como era de se esperar, por uma das entradas laterais.

*

Quando voltou a si, o crânio lhe doía horrivelmente. Viu-se deitado no chão, bem por baixo da roda do leme, que girava para um e outro lado, desgovernada. Não encontrou o seu boné. Sem ter onde se apoiar, pôs-se de pé com dificuldade. O cargueiro subia e descia como um peso morto que as ondas ora cobriam, ora erguiam para o céu, para deixá-lo outra vez sem sustentação afundar coberto de espuma. Torrentes escoavam pelo convés, e cada pancada da proa a cabecear o mar depois de cada vaga causava um barulho ensurdecedor e um estalar ameaçador dos cavernames de aço. Estava no centro de uma tempestade tropical. Olhando pela janela de vidro, não via mais que a chuva e a crista das ondas que já passavam pelo tombadilho. Caminhando como um bêbado, gritou pela tripulação. Não havia viv’alma a bordo, além dele próprio.

Vendo com dificuldade através da vidraça – ligou os limpadores elétricos mas isto pouco adiantou -, saiu para o passadiço frente à cabine, sob as rajadas do vento e da chuva, mal se equilibrando com o balanço lateral do barco desgovernado. Não viu nenhum dos botes salva-vidas. Apoiando-se à barra do peitoril, deu-se inteiramente conta do plano executado pelos marujos amotinados. Antes de fugir, haviam soltado as lonas das escotilhas dos porões de carga e deixado as pranchas de cobertura entreabertas, com o claro objetivo de inundá-los. Era necessário girar os cabrestantes para fechá-las e prender as lonas, antes que se desprendessem totalmente e fossem levadas pelas ondas e o vento. Foi quando a parte móvel do corrimão do passadiço, deixada maldosamente destrancada dias atrás por ele mesmo, cedeu. Ao perder o apoio, viu-se precipitado no espaço. O seu corpo, repicando na borda elevada da cobertura do porão, estendeu-se sem vida sobre o assoalho do convés, e foi logo coberto e carregado para o mar pela enxurrada das ondas que submergiam o pesado graneleiro.

*

O contra-mestre javanês, conseguindo por um instante erguer-se em meio aos companheiros no barco salva-vidas, viu o cargueiro desaparecer inteiro, como se fosse continuar viagem sob as águas. O pedido de socorro que havia feito, com as coordenadas precisas da posição do graneleiro, fora respondido por vários navios e o que estava mais próximo ele podia agora ver seu vulto negro já bem perto, vindo na sua direção em velocidade reduzida, para o resgate. Alertou os marujos no outro bote para aquela aproximação. No rosto molhado de cada um a água que escorria não escondia o riso de felicidade por se acharem todos salvos. De pé na proa, quando alcançou a crista de uma onda, os braços erguidos para saldar os salvadores, o contra-mestre javanês era a imagem olímpica de um deus vencedor.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 28-12-2008.

Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – O Capitão do terceiro Reich. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2008.