A Ilusão das Fórmulas Comportamentais

Hoje: 19-04-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

Na segunda metade da década de 50 e na primeira metade da década de 60, produziram-se muitas pesquisas relativas ao comportamento e às atividades cerebrais, as quais assentaram de vez as bases biológicas dos fenômenos mentais. São dessa época os estudos comparativos do comportamento animal, os estudos envolvendo estimulação e mapeamento de regiões do cérebro, experimentos com drogas, etc. Uma coleção de artigos relatando essas pesquisas, divulgados no Scientific Americam, editada em 1967, foi traduzida e publicada no Brasil (Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. Trad. de Lídia Aratangy, Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro, 1975).

Simultaneamente aos estudos em neurologia e psicofarmacologia da época, Burrhus Skinner desenvolveu sua teoria do reflexo condicionado, e Jean Piaget os testes de aptidão mental de cujos resultados ele deduziu a existência de matrizes biológicas para o raciocínio lógico. Estes dois pesquisadores propuseram suas fórmulas para explicar o comportamento humano.

Skinner criou a famosa fórmula S – R (estímulo resposta) e a teoria da educação por meio de reflexos condicionados. Para ele a mente era uma “caixa preta” sem maior interesse, porque o que contava eram as técnicas para criar um comportamento condicionado, que respondia a estímulos, e não qual o mecanismo na mente que o processava. A fórmula de Piaget, ao contrário, levava em conta justamente as funções mentais, com o argumento de que não podia ser ignorada a condição interna da mente, que permite a assimilação do aprendizado às suas estruturas.

Piaget, por meio de testes aplicados a crianças desde o nascimento, constatou que o pensamento lógico somente aparece como uma aptidão mental ao final da infância. A capacidade de raciocínio da criança se aperfeiçoa percorrendo estágios sucessivos que ele vinculou ao desenvolvimento do sistema nervoso. Concluiu que, se essa aptidão dependia do desenvolvimento orgânico do indivíduo, então o próprio raciocínio dependia de estruturas orgânicas ou genéticas. Criticando a fórmula de Skinner Piaget declarou em seu livro de 1970, L’Epistémologie Génétique (Presses Universitaires de France, coleção “Que sais-je?”, 1996) que a explicação behaviorista clássica da aprendizagem, expressa no binômio S-R, “estímulo-resposta”, era incompleta. Argumentou que, se um estímulo se apresenta e provoca uma resposta, isto só ocorre porque existe previamente uma estrutura que reconhece um significado no estímulo.

O fato fundamental de partida, afirma então Piaget, é a capacidade da mente de fornecer certas respostas. O esquema deve ser, portanto, S (A) R: algo somente é um estímulo “S” na medida em que for significativo, e esse algo somente será significativo na medida em que exista uma estrutura “A” que permita sua assimilação ao conhecimento como estímulo, e que produza ao mesmo tempo uma resposta “R”.

Piaget chegou a afirmar que, com a sua descoberta de uma base física do conhecimento, havia tirado a epistemologia da filosofia, e feito dela mais um ramo da ciência experimental. Mas esta afirmação me parece não corresponder à verdade, porque a base biológica, – cuja existência ele brilhantemente deduziu de suas observações –, serve ao pensamento, e não ao conhecimento. O pensamento, sim, se prende a uma rede física de neurônios, como foi demonstrado pelos fisiologistas do cérebro, seus contemporâneos. Porém o conhecimento, como consciência do pensamento e de outros objetos, não se viu até hoje que esteja ligado a qualquer parte isolada do cérebro.

A consciência tem qualidade estável, que se contrapõe à instabilidade e à confusão que pode reinar em nossos sentidos; estes podem lhe comunicar defeituosamente seus objetos. Os modos limitados pelos quais podemos conhecer, – as categorias propostas por Immanuel Kant e das quais Piaget também se lembrou na sua obra citada -, não limitam necessariamente nossa consciência: limitam os objetos que lhe podem ser apresentados.

Se o conhecimento, ou consciência, se dá como uma reverberação de todo o sistema associativo mental, – como querem alguns -, ou se tem lugar em um ponto fixo do cérebro, – como pensam outros- , é questão que não se logrou ainda resolver, e isto deixa a Epistemologia incólume como disciplina da Filosofia. Então, não parece aceitável, por enquanto, a expressão “epistemologia genética” ou “biológica” com que Jean Piaget batizou sua tese.

O pensamento e os sentimentos, são ambos objetos do conhecimento, – objetos da consciência –, e tanto um como o outro, sabe-se que estão relacionados a configurações associativas de neurônios. Piaget, como dito acima, estabeleceu a primeira dessas duas relações, a do pensamento com uma base biológica, ao constatar que algumas formas de raciocínio somente são possíveis depois que essa base física indispensável amadurece. Ao final de sua vida estava tentando resolver a relação dos sentimentos a esse mesmo sistema, mas faltavam em sua época os conhecimentos aos quais a ciência chegou somente no final do século em que ele viveu.

Em 1989 procurei conhecer o Dr. Conan Kornetsky, no Laboratory of Behavioral Pharmacology (Laboratório de Farmacologia Comportamental) da Escola de Medicina da Universidade de Boston, e saber a respeito das experiências que realizava, – objeto de um documentário exibido na Televisão brasileira -, em relação a sentimentos e à química correspondente, na fisiologia do cérebro. Fui por ele apresentado ao Dr. George Bain, de sua equipe, ambos com interesse em estimulação cerebral por diversas substâncias químicas. Os experimentos desses dois cientistas e de vários outros, nas últimas décadas do séxulo XX, identificaram as propriedades estimulantes de várias substâncias relacionadas ao humor e sentimentos das pessoas. Seus resultados nos obrigam a crer que, além da atividade em uma dada matriz associativa de produzir o pensamento lógico, algo na química dessa associação é responsável por um sentimento que é de aprovação e aceitação, ou de rejeição da “logicidade” do pensamento produzido.

Consequentemente, deve ocorrer um certo fechamento das estruturas associativas, no qual as ligações representam uma conclusão ou resultado final, a qual produz satisfação ou insatisfação. Isto dá um caráter intencional às estruturas do pensamento, ou seja, elas buscam um fechamento associativo, um produto final que satisfaz. A química e o sentimento mudam com a estrutura, porque a química é diferente em cada forma de combinação dos neurônios.

Algumas associações, se não todas, recebem, sem dúvida, reforço químico de outra origem, além da química gerada na sua própria estrutura. O desequilíbrio do metabolismo no organismo, por exemplo, afeta a condição fisiológica de certas matrizes associativas o que nos leva ao comportamento de busca de alimento. Os hormônios sexuais também sobrecarregam as matrizes geneticamente orientadas para o comportamento nessa área. Podemos dizer que nesses casos a carga acrescida de químicos aumenta a premência para a solução e fechamento da configuração através de um comportamento padrão que é geneticamente orientado para a satisfação.

A esta altura já podemos concluir que não é um estímulo “S” que provoca uma resposta “R”, mas sim que existe uma condição fisiológica alterada em uma dada associação de elementos na mente, a qual carece de um objeto necessário para viabilizar um comportamento exigido como conclusão e fechamento da configuração, e conseqüente reequilibro fisiológico com o respectivo sentimento de satisfação.

Volto aqui à fórmula já apresentada à p. 72 do meu Filosofia do Espírito (Ed. Valci, Brasília, 1997, 112p.), porém desdobrando-a de três para quatro elementos, a fim de fazê-la mais clara. Tomo uma letra para cada etapa do processo de motivação. Assim o processo, até a sua satisfação final, é representado pela sequência “D-C-V-E”, na qual “D” expressa a condição interna em desequilíbrio, com uma carência “C” (sentida como um desejo que pode ser tanto por um objeto conhecido, como ser inespecífico). Essa condição negativa “D” pede um comportamento de conclusão para supressão da carência “C”, comportamento que é aplicado sobre o objeto “V”. Este objeto será um “viabilizador” , o qual é objetivado como (tido como) adequado para a supressão da carência e para o fechamento da configuração associativa, reequilibrando sua fisiologia; “E” representa o estado de equilíbrio resultante do fechamento.

Caberiam aqui muitas considerações sobre o porque e o modo como um objeto se torna viabilizador para o fechamento de configurações associativas, principalmente à luz das experiências com animais realizadas por Konrad Lorenz (prêmio Nobel de Fisiologia em 1973) e Wallace Craig, relatadas na obra do primeiro (On Aggression, traduzido para o inglês por M. K. Wilson. Bantam Books, New York, 1971). Para o homem “V” representa os valores, de modo que, se perguntamos “que são valores?” estamos perguntando “que é ‘V’?”

Mas, se prosseguisse no caminho de tais considerações, eu estaria fugindo ao objeto desta página: um comentário sobre a ilusão das fórmulas comportamentais.

O ato de refletir consiste no esforço em ativar diferentes setores da mente por associação entre elementos comuns. Em uma reflexão, várias configurações que representem ideias aplicáveis ao mesmo objeto, se associarão. O equilíbrio fisiológico passará a ser então o balanço físico-químico (ou eletroquímico) em um conjunto de estruturas intercomunicantes, a fórmula “D-C-V-E” de cada estrutura afetada pelas demais. Deste modo, o resultado positivo com relação ao objeto, em uma, poderá compensar a frustração e desequilíbrio em outra que esteja carente em relação a seu próprio viabilizador.

Em uma situação de carência ( “D”), se o objeto viabilizador buscado não é encontrado, a mente sempre tenta estabelecer uma nova relação de ideias, que aceite um objeto viabilizador disponível, – em substituição a um indisponível –, e esta objetivação subconsciente pode levar a pessoa a agir, ou sentir, em relação a um objeto de modo para ela mesma incompreensível, e penso que, em alguns casos, isto corresponde ao que Sigmund Freud chamou, na teoria da psicanálise, uma compensação. Seja por não encontrar o objeto viabilizador adequado, ou porque – devido à intercomunicância –, a ação criará outro desequilíbrio em outro setor do sistema associativo, ou por não conseguir desviar a linha comportamental para um objeto de compensação, surgem as ambivalências, as indecisões, e as frustrações, que são causa das perturbações psicológicas.

Do mesmo modo, após refletir, a pessoa pode conscientemente encontrar uma espécie de “ideia remédio” que a consola, como na fábula da raposa e as uvas, de La Fontaine. O pior que pode acontecer, porém, é a objetivação extremada, ou seja, as ilusões e alucinações em que, devido à carência, um valor irreal é atribuído a um objeto para que se torne um viabilizador. Aí está a base de todas as chamadas perversões, e do engano em que se pode cair no juízo de valor a respeito de coisas e pessoas.

Mesmo desejos muito fortes, vinculados a apelos genéticos ou dos instintos aos quais não é oferecida resistência, se vinculam a variadas configurações associativas que criam objetivações distantes da realidade, de modo que o comportamento pode parecer inteiramente desajustado, impulsivo e cego a implicações e consequências, mas ainda assim existe uma rede associativa lógica que no subconsciente organiza a ação para o resultado buscado.

Portanto, acredito que se pode dizer, considerando a interação possível entre as configurações, que nenhuma estrutura associativa referente a um único conceito responde sozinha por um sentimento, propósito ou comportamento.

Avaliar riscos e possibilidades de êxito, ou simplesmente acertar um caminho direto para uma conquista, implica a formação de um largo complexo associativo. Haverá, portanto, no processo de associações de ideias, a nível tanto da reflexão consciente quanto do subconsciente, um número incontável de fórmulas “D-V-C-E” correspondentes às configurações interativas através de um ou mais elementos comuns. Os elementos associados estariam distribuídos em conjuntos nucleados (os vários conceitos particulares), nos quais mesmo o elo mais distante teria influência no sentimento vinculado a um dado conceito ou ideia final, ou influiria em um comportamento considerado. O comportamento responderia a um vasto complexo associativo. Na aplicação da fórmula a esse complexo teríamos que introduzir um símbolo para indicar o ponto de interferência das demais fórmulas, sendo cada uma correspondente a um processo idêntico de desequilíbrio ou de restauração de equilíbrio em sua própria área do complexo associativo.

A racionalidade do homem está em que, ante um viabilizador ou objeto de desejo, ele pode refletir sobre o seu valor real ou relativo, pode distinguí-lo como adequado moralmente ou não; mas pode também enganar-se. A reflexão, possível na medida em que estejam interligados vários setores da sua mente (e esta interligação associativa depende de um aprendizado variado e rico), pode levá-lo a evitar conscientemente o comportamento de um primeiro impulso, porque sua mente pode fazer fluir para a zona de carência os resultados positivos de outras áreas associativas, que levam à sua consciência outros objetos correspondentes a outros comportamentos, capazes de produzir uma acomodação fisiológico-associativa igualmente satisfatória ou, inclusive, mais ampla que a do seu primeiro impulso.

Portanto, diante desse complexo mecanismo de escolha, a possibilidade de se ter uma única fórmula que equacione o comportamento humano e faça que ele seja previsível, parece que é apenas uma ilusão. Somente quando o raciocínio é compreende dados conhecidos a priori, a resposta poderá ser previsível, assim como, se temos quatro laranjas, reais ou imaginárias, podemos dizer sem erro que duas mais duas são quatro.

Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 21-04-2003.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – A ilusão das fórmulas comportamentais. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2003.