Hoje: 30-10-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Fundamentos do querer. As descobertas da neurologia em geral, da psicofarmacologia em particular, ocorridas nos últimos anos do século passado, nos permitem teorizar sobre como e porque elegemos certos alvos do nosso querer, e a razão da atratividade que pessoas e objetos exercem sobre nós. Esta é uma questão complexa, que tentarei resumir em cinco itens principais.
Primeiro – as ideias se fazem a partir de um arranjo ou sistema associativo de fibras nervosas em nosso cérebro, e um determinado conhecimento pode ser varrido da memória pelo ataque e dano ao arranjo ou configuração associativa que o suporta;
Segundo – nossos sentimentos e nossa disposição para agir variam conforme à fisiologia das configurações associativas. Um reforço químico na fisiologia das configurações altera a intensidade emocional e o comportamento em relação às ideias que elas representam, de onde o efeito estimulante ou inibidor de certas drogas;
Terceiro – o movimento que cria a configuração associativa para um nova ideia é imanente ao próprio sistema nervoso o qual está sempre em crescimento a partir de matrizes associativas genéticas básicas. Esse movimento cria carências fisiológicas a serem satisfeitas, que se traduzem em desejo ou repulsa em relação a coisas e pessoas;
Quarto – os objetos de desejo ou repulsa (cuja posse ou afastamento permitirão ao sistema mudar sua fisiologia e lograr o reequilíbrio interno) são os que têm qualidades mínimas (infra-estímulos) para serem valorizados por objetivação de valor em um ou outro sentido. A objetivação é um processo de valorização que parte do sujeito e não da realidade das coisas.
Quinto – o comportamento responde a um impulso de ação respectiva ao objeto que está investido de valor. Toda a associatividade do sistema se desenvolve para levar o comportamento a esse objeto cujo alcance ou eliminação satisfaz o impulso natural da configuração, restaura sua química interna, e fecha o ciclo associativo (Cobra, 1997).
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Pretendo me ater a essas deduções que os fenômenos mentais permitem fazer, sem me aprofundar no que elas implicam para a filosofia dos valores. O quarto postulado, referente à objetivação, é uma evidência no processo mental porém é também uma disputada questão filosófica.
Os filósofos racionalistas acreditam que os valores são racionais e têm existência própria. Outros, ao contrário, consideram que os valores são sempre relativos, e são conferidos às coisas como sentimento, e é a isto que eles chamam objetivação. Por exemplo, o valor pode estar ligado à possibilidade de seu “alcance” (Cobra, op. cit., p. 73 ). Se o indivíduo não tem a intuição de que pode atingi-lo e consumar sua posse, automaticamente o objeto perde seu valor.
Porém, alguns racionalistas cometem seus deslizes. Na exposição de seu terceiro preceito moral, na III Parte do “Discurso”, Descartes, um racionalista, faz a observação, de que nossa vontade “naturalmente” busca somente aqueles objetos que o entendimento representa como de algum modo possível de serem alcançados. Isto me parece que é admitir que há algo de relativo no valor, que é, – pelo menos –, o seu alcance naturalmente percebido e não racionalmente deduzido.
Talvez pudéssemos conciliar as duas posições dizendo que determinar racionalmente o significado de valor de qualquer coisa é determinar o grau positivo ou negativo da resposta fisiológica que ela suscita no sistema associativo mental.
Sexualidade. A expressão “sexo” refere-se ao conjunto das características naturais que separam um grupo de indivíduos quanto ao seu papel no processo reprodutivo da sua espécie, e se caracteriza pela atividade própria dos órgãos genitais e por um sentimento específico, o que dá ao sexo a qualidade de emoção.
Por dedução lógica se pode dizer que somente é sexual o comportamento capaz de desencadear uma resposta genital. Porém o sexual não se reduz apenas ao genital, apesar de ter com ele uma relação essencial. A sexualidade trata do sexual na sua vinculação genital mas também no seu aspecto emocional, e é deste modo que o sexo é abordado na teoria psicanalítica (Dalbiez, 1947, vol. I, p. 110).
Porém, Freud considerou comportamentos sexuais mesmo certos comportamentos que a criança tem mas que não remetem a qualquer reação genital. Para isso considerou regiões do corpo que são sensíveis a afagos como erógenas e pertencentes à sexualidade, apesar de absolutamente não envolvidas na procriação. Feito isto, estendeu o conceito de sexualidade à incorporação de, praticamente, todos os interesses da pessoa, o que corresponde a todos os tipos de emoções do indivíduo e motivo único de todo o seu comportamento.
Prefiro supor que existe uma busca e um desejo de posse inespecíficos, que são fundamentais ao ser humano, e cujo equilíbrio básico está relacionado a uma carência de “ser bem”, e cuja base fisiológica aciona a busca de soluções através de atitudes afirmativas, que consistem principalmente em possuir e dominar.
O sucesso dessa busca e a satisfação desse desejo são causa de um sentimento também fundamental de autovalor, ligado a ser bem, a ser de modo completo, que tem por suporte uma química mental em equilíbrio. É um narcisismo ontológico, próprio do ser e, salvo a denominação que tomo por empréstimo, nada tem a ver com o narcisismo sexual na teoria da psicanálise, em que o indivíduo é apaixonado pelo próprio corpo.
Essa emoção primária, que exige a busca por um estar bem, a fim de ser bem, confere a qualidade positiva ou negativa a todas as outras emoções e com certeza corresponde a um núcleo biológico original do qual ramificam as matrizes associativas para as diversas modalidades de comportamentos instintuais, (alimentação, sexo, defesa, etc.) e culturais. Assim, a partir de certas estruturas primárias de neurônios que são inatas, desenvolve-se um sistema de matrizes associativas de grande complexidade cujos objetos também satisfazem ao padrão de busca do núcleo original.
Portanto o instinto sexual é secundário; vem primeiro um instinto geral de conservação total e completa, um estar bem marcado pelo sentimento de ser bem, e do qual o desejo sexual se torna parte. Consequentemente, a motivação primordial do comportamento humano não pode ser tomada como originária da matriz instintiva do comportamento sexual. Essa motivação pertence a um campo associativo anterior e é fundamental tanto para o contexto da sexualidade quanto para todos os outros contextos psicológicos. Igualmente, quanto à objetivação de valores, a sexualidade é uma objetivação de valor que não é apenas sexual, mas resultante da soma de uma tensão geral interna, ampliada com adição da tensão sexual. Por isso a prática sexual, além da gratificação que lhe é própria, também reafirma indiretamente nosso próprio valor perante nós mesmos e se torna importante para nossa autoestima.
Então, preciso fazer “um apelo à razão” para reconhecer que minha carência de ordem geral pode estar afetando para mais ou para menos o meu julgamento dos valores no campo específico da sexualidade.
Sexualismo. Utilizo essa expressão no sentido de um interesse que é puramente pelo sexo, quando a relação sexual não tem outro fim nem é parte de qualquer projeto fora do próprio comportamento sexual. O dicionário Webster’s define “sexualism” como “ênfase sobre o sexo ou a sexualidade como uma preocupação maior ”, que é o sentido com que emprego o termo.
O sexualismo representa um quadro de obsessão pelas formas e pela intimidade, em que se inserem o voyeurismo e o exibicionismo, variação de parceiros, troca de casais, sexo em grupo, estimulação pornográfica, etc. Recentemente essa condição tem sido reconhecida como uma forma de dependência semelhante à dependência por droga e álcool, e se organizam grupos de debate e mútua ajuda semelhantes aos grupos de apoio contra o alcoolismo.
É impossível à vítima do sexualismo uma união com uma parceira estável senão por conveniência, como modo de esconder sua depravação atrás de uma fachada respeitável. Mantendo a comparação com o consumo do álcool, existem os que o consomem socialmente e não são dependentes, e existem os alcoólatras, que têm a vida prejudicada pelo vício, e a cujo alcoolismo se pode comparar o sexualismo.
Fundamentos da atratividade. As pessoas ou objetos revestidos de valor na objetivação não são estímulos no sentido estrito que dão ao termo os psicólogos comportamentalistas (behavioristas). porque não são provocadores de respostas: eles são as respostas.
Para que seja um alvo para a objetivação, a coisa precisa dar alguns sinais de adequação mínima à finalidade de uma configuração associativa, sinais que chamo infra-estímulos (Cobra, op. cit., pp. 71-72). e que são de percepção subconsciente, a menos que o sujeito esteja treinado para identificá-los nos objetos que elege.
A psicologia da arte já identificou vários vetores físicos de captação inconsciente no processo da criação artística e da apreciação do belo. Recentemente se cogitou nos meios científicos que a simetria dos traços fisionômicos, em ambos os sexos, é responsável pela beleza facial. Suspeita-se que também a sequência de Fibonacci possa ter alguma influência estética importante. Esta constante está presente na sequência matemática descoberta por Leonardo Fibonacci ou Leonardo de Pisa (1170-1240), que é aproximadamente 1,6180. Os cientistas descobriram que muita coisa na natureza segue a sequência de Fibonacci: as espirais do girassol, o cone dos pinheiros, a espiral dos caracóis, a distribuição de folhas no caule das árvores, o tamanho dos chifres dos animais, etc… A ideia é que essas relações estejam presentes também entre os traços da figura humana perfeita, e em tudo que é esteticamente atraente para o homem (Koshy, 2001, p. 16).
É possível, em minha opinião, que, para o homem, os infra-estímulos sexuais que o atraem na mulher, ou seja, os elementos de maior interesse sexual na figura feminina, são os pontos de maior convergência de linhas anatômicas no corpo feminino. Para a mulher, parece ser o contrário: os infra-estímulos masculinos são linhas sugestivas de abrangência. A maior altura e a maior largura dos ombros do homem representam um arco protetor maior e este é, pelo menos, o padrão que se vê a mídia vinculado ao interesse da mulher na busca de um parceiro (Cobra, op. cit. p. 83 ).
No entanto, uma mesma obra de arte pode alcançar significados diferentes para diferentes espectadores que terão sentimentos diferentes, até mesmo antagônicos, em relação a ela. Portanto, apesar de todo o avanço nesse setor, existem infra-estímulos que permanecem como as qualitates occultae de que falaram alguns filósofos.
Como um viabilizador pode ter uma riqueza variada de infra-estímulos, na ausência dos designs mais ricos, os mais pobres, devido ao alcance em que estiverem, adquirirão igual eficácia para receber a objetivação de origem químico-associativa, donde o ditado popular: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 04-02-2002.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Filosofia do querer. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2002.