Hoje: 21-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
John Locke está entre os filósofos empiristas, assim chamados devido a abrirem espaço para a ciência junto à filosofia, valorizando a experiência como fonte de conhecimento. John Locke destaca-se pela sua teoria das ideias e pelo seu postulado da legitimidade da propriedade inserido na sua teoria social e política. Para ele, o direito de propriedade é a base da liberdade humana “porque todo homem tem uma propriedade que é sua própria pessoa”. O governo existe para proteger esse direito.
Locke estava interessado nos tópicos tradicionais da filosofia: o Eu, o Mundo, Deus e as bases do conhecimento. É contemporâneo de Thomas Hobbes, mas, ao contrário deste, é liberal e tem convicções parlamentaristas. Foi enorme a influência da obra de Locke. Suas teses estão na base das democracias liberais. No século XVIII, os iluministas franceses foram buscar em suas obras as principais ideias responsáveis pela Revolução Francesa. Montesquieu (1689-1775) inspirou-se em Locke para formular a teoria da separação dos três poderes. A mesma influencia encontra-se nos pensadores americanos que colaboraram para a declaração da independência americana em 1776.
Primeiros anos. John Locke nasceu na pequena cidade de Wrington, em Somerset, na região sudoeste da Inglaterra, a 29 de agosto de 1632, vindo a falecer em 1704. Foi criado em Pensford, nas proximidades de Bristol. Sua família era da linha puritana da religião anglicana. Seus pais, de origem modesta, foram John Locke, um pequeno proprietário e advogado que trabalhava como procurador e como funcionário do Juizado de Paz, e Agnes Locke, filha de um curtidor. Viviam em um chalé coberto de colmo num conjunto de moradias de famílias do mesmo nível da sua. Dos filhos do casal, John Locke era o mais velho de três, um morto na infância e outro, Thomas, cinco anos mais novo que o filósofo. Seu pai deu-lhe educação severa e correta, que Locke, adulto, reconheceu, votando-lhe respeito e afeição. Quanto à sua mãe, sabe-se apenas que era dez anos mais velha que o marido e provavelmente uma mulher bonita, a julgar por referências familiares escritas.
O período da infância e adolescência de Locke corresponde à fase ascendente da nova filosofia que irá culminar no Iluminismo. As descobertas de Galileu se tornam conhecidas, Campanella publica trabalhos em Paris e aparecem as primeiras publicações de Hobbes e de Descartes. É também o período da guerra civil na Inglaterra (1642-1646): quando puritanos e presbiterianos escoceses aliam-se contra o Rei Carlos I; Oliver Cromwell comanda os rebeldes. É uma fase de tensão para sua família, envolvida mais de perto no conflito porque o pai de Locke lutou contra a monarquia, como capitão de cavalaria, nas tropas vitoriosas do Parlamento. Condenado pelo Parlamento, Carlos I é executado em 1649. Seu filho e herdeiro, o príncipe de Gales (1630-1685), que depois seria Carlos II, logrou escapar para a França, protegido por súditos leais, refugiando-se em Paris.
Estudos. Após a vitória dos Parlamentaristas, um colega de armas e amigo de seu pai, o coronel Alexander Popham, tornou-se membro do Parlamento, em posição de indicar alunos para famosa Westminster School, controlada por um comitê do partido parlamentarista. Tendo 15 anos em 1647, Locke pode ser indicado e seu nome foi aceito.
Na Westminster School, em Londres, – o velho Colégio de São Pedro que Isabel I havia reformado quase um século antes, – Locke estudou principalmente grego e latim. Está ao final de seus estudos em Westminster em 1651, quando Hobbes publica “O Leviatã”, cuja tese mais tarde ele irá criticar. Neste ano Hobbes retorna de Paris, onde frequentava a corte inglesa no exílio.
Em 1652 Locke estava em condições de concorrer à escolha para estudar na Christ Church College, então o principal colégio em Oxford, o que dependia do bom desempenho escolar, de uma composição em Grego e de amigos influentes. Foi aprovado juntamente com cinco outros jovens. Seguiu para Oxford no final do ano; contava então dezenove anos. Como a maioria dos estudantes que depois se tornaram intelectuais ilustres na sua época, achou desinteressaste o curriculum de latim, retórica, gramática inglesa, filosofia moral, geometria, grego, lógica e metafísica, que era o ensino tradicional em seu tempo. Completou seus estudos de bacharelado em artes, assistido por um tutor, conforme o sistema no Christ Church College, no decurso de três anos e meio. Toda a comunicação com o tutor era em latim. Recebeu o grau de bacharel em 1656. Buscou complementar sua educação com a leitura de obras contemporâneas de filosofia, particularmente aquela que ganhava momento, a obra de Descartes. Mas, acima de tudo, interessou-se mais pela nova ciência experimental criada por Bacon (1561-1626) e lecionada em Oxford por John Wilkins, e adquiriu formação médica. Seu interesse pela medicina o aproxima de Richard Lower, que fez numerosas descobertas a respeito do coração e que foi o primeiro a efetuar uma transfusão de sangue.
Tanto o mundo da medicina como o da filosofia fascinam a Locke. O que escreveu nos anos seguintes, (1656-66), sua correspondência e seus livros preferidos indicam seus interesses, que eram as ciências naturais, por um lado, e a investigação social e política, por outro. Mas aquelas disciplinas básicas, no entanto, que constituíam o método escolástico, lhe foram úteis mais tarde, como filósofo. Em Junho de 1658, Locke fez jus ao M.A. Evidentemente ele conseguiu satisfazer os requisitos escolares porque foi contemplado com uma bolsa de estudante sênior em 1659 e, por ocasião do natal de 1660 foi eleito “Lecturer” (um cargo próprio dos colégios ingleses inferior ao de professor, equivalente a tutor, orientador ou instrutor de um grupo de alunos) de Grego no Christ Church.
O pai de Locke faleceu dois meses depois de sua nomeação. Deixou-lhe algumas terras e alguns chalés perto de Pensford, e este patrimônio haveria de suprir Locke com a renda para uma vida decente pelo resto de sua existência. Após o enterro do pai, Locke voltou para Oxford para exercer suas tarefas de tutor. Nos três ou quatro anos que se seguiram trabalhou no Colégio, onde também residia. Na ocasião parece que pensou em abraçar o sacerdócio, ou que sua bolsa assim o requeria, mas em 1666, obteve uma dispensa que lhe permitiu manter sua bolsa sem se ordenar, residindo em Christ Church College por mais de trinta anos, afastando-se apenas temporariamente para Londres ou em viagem ao estrangeiro. Perdeu essa bolsa por mandato real em 1684, quando os monarquistas se tornaram senhores da situação política no país.
O Protetorado de Cromwell durou de 1653 até a data em que morreu, em 1658. Com a morte de Cromwell, o temor da desintegração do país levou o Parlamento a chamar de volta à Inglaterra o herdeiro do trono, para a restauração da monarquia. Carlos II foi coroado em 1660 e em 1662 casou com Catarina de Bragança, filha de dom João IV. Este casamento garantiu importantes vantagens comerciais para a Inglaterra que em troca dava a Dom João IV o que ele mais desejava, que era a proteção contra a ameaça da Espanha de retomar seu domínio sobre Portugal. O envolvimento inicial de Locke com a política começa em 1660, quando era, contrariando a linha política paterna, um monarquista convicto. Nestes anos de 1660 e 1661 sua linha de pensamento era autoritária e dizia temer a anarquia. Alinhava-se com o pensamento de Hobbes, contra o qual mais tarde haveria de se voltar radicalmente. Escreveu contra a tolerância religiosa por essa época, tanto em Latim como em Inglês em resposta a Edward Bagshawe, que pensava que um governante deveria ter poder sobre as ações dos homens, porém devia deixá-los seguir seus próprios caminhos religiosos. Locke discordava de Bagshawe , acreditando que o magistrado devia ter poder até mesmo sobre a religião de seus súditos. Mais tarde suas convicções políticas, inclusive sua postura quanto à tolerância, haveriam mudar radicalmente.
Nas décadas seguintes Locke prosseguiu em seus estudos privados, e parte dos eventos sociais de que participava eram encontros em que discutia com amigos questões filosóficas e científicas. Foi o período em que Locke avançou seus estudos médicos e científicos assistindo aulas do fisiologista Thomas Willis (1621-1675), que tentava explicar o funcionamento do corpo por interações químicas, um renomado conhecedor do sistema nervoso, que foi professor em Oxford de 1660 a 1675. Nesse período colaborou com Robert Boyle (1627-1691, um dos fundadores da química moderna e seu amigo chegado, descobridor de que, a uma temperatura constante o volume de um gás é inversamente proporcional à pressão. Tanto quanto Locke, Boyle tinha preocupações religiosas, sustentando que o estudo científico da natureza era um dever religioso. Conduziu seus experimentos em Oxford e a partir de 1668 vivia em Londres. Ao final dessa fase inclui-se outro amigo, Thomas Sydenham (1624-1689), um eminente cientista médico, chamado “O Hipócrates Inglês” e que, pelo seu livro “Observações Médicas” publicado em 1676, tornou-se o fundador da medicina clínica. Locke escreveu então Essays on the Law of Nature, (“Ensaios sobre a Lei da Natureza”) em 1663-64, mas nunca publicou essa obra.
Locke foi eleito Censor de Filosofia Moral em 1663 e manteve o cargo por um ano, ao fim do qual iria deixar Christ Church. Seu irmão morreu aquele ano em Pensford e Locke decidiu passar algum tempo fora como diplomata, em lugar de continuar na sua posição acadêmica ou estudos científicos.
Missão diplomática. A experiência diplomática que teve Locke, apesar de curta, teve importante reflexo em sua filosofia. Ele foi o secretário da missão diplomática de Sir Walter Vane a Brandenburg em 1665. Foi sua primeira viagem ao continente. Lá, impressionou-o a tolerância entre as várias facções religiosas e escreveu a esse respeito uma carta para Boyle, ressaltando que aquela paz devia-se parte ao poder dos magistrados, parte à boa natureza e prudência do povo, que mantinha diferentes opiniões sem nenhum ódio secreto ou rancor. Efetivamente, o eleitorado de Brandenburg mantivera-se tanto quanto possível neutro na Guerra dos Trinta Anos, – entre católicos, calvinistas e luteranos, – sofrendo, no entanto, a invasão dos suecos. Quando Frederico Guilherme, o Grande Eleitor (1620-1688) assumiu o poder em 1640, iniciou um programa de reconstrução do principado incluindo desde obras militares de fortificação a obras civis como a construção de canais de navegação, e efetivou a união da Prússia ao eleitorado, o que aumentava consideravelmente seu poder e importância no contexto político europeu. A partir dessa experiência, Locke começou a rejeitar a visão de Hobbes que ele antes aceitava. Sua atuação na missão causou boa impressão a muitos na Inglaterra e no seu retorno em 1666 lhe foram oferecidas numerosas oportunidades em postos diplomáticos, inclusive de imediato na Espanha, os quais ele declinou devido ao seu interesse em medicina, retornando ao seu refúgio em Oxford.
Médico e Conselheiro Político. Como médico chamou a atenção de Lord Anthony Ashley Cooper (1621-1683) político parlamentarista, futuro primeiro conde de Shaftesbury. O conhecimento começou acidentalmente em 1666, por intermédio de Sydenham. Locke desejava permanecer em Oxford e obter o grau de Doutor em Medicina sem ter que frequentar todas as classes. Lord Ashley obteve do Secretário de Estado uma carta para o Christ Church College permitindo a Locke estudar sem as obrigações acadêmicas de aluno. Locke então deixou a tutoria ao final do ano. Na primavera seguinte, em 1667, o Lord o convidou para fazer parte da equipe de empregados de sua casa, servindo como médico da família. Locke aceitou e viajou para Londres.
Lord Ashley era um político parlamentarista, ousado e agressivo, oponente radical das medidas de Carlos II (1630-1685) que tentava fortalecer o absolutismo. Seus ideais políticos eram a monarquia constitucional, a sucessão do trono por um protestante, liberdades civis, tolerância religiosa, governo através do parlamento, e expansão da economia britânica. Como tais ideais eram afins com os defendidos por Locke, havia entre ambos amizade e um entendimento perfeito. Apesar de não se dar bem com o clima de Londres, o período junto a Ashley foi certamente o mais ativo da vida de Locke. Alem do Lord e de Thomas Sydenham, seu círculo de cientistas e intelectuais amigos incluía, entre outros, também John Mapletoft e James Tyrrell, este um colega médico de Sydenham e que era também um “divine” (teólogo).
Locke encontrava-se ainda com representantes da escola de humanistas cristãos, os Platônicos de Cambridge, intelectuais que, apesar de simpáticos à ciência empírica, opunham-se ao materialismo por considerá-lo falho em explicar o elemento racional na vida humana. Tendiam a ser liberais em política e religião, porém tanto quanto eles ensinavam um Platonismo que se apoiava na crença em ideias inatas, Locke não poderia segui-los; mas a sua tolerância, a ênfase deles na prática dos costumes como uma parte da vida religiosa, e sua rejeição ao Materialismo eram aspectos que Locke achava atraentes. Um destes humanistas, adepto da existência de ideias inatas, era Ralph Cudworth, cuja obra “Verdadeiro sistema intelectual do universo” influenciou consideravelmente o pensamento de Locke, e cuja filha haveria de hospedá-lo em seus últimos anos. O livro I do Ensaio de Locke é dedicado à crítica do inatismo defendido pelo amigo. A escola humanista estava muito de perto de uma outra que influenciou Locke nessa época, a do Latitudinarianismo, um grupo liberal dissidente da Igreja Anglicana. Para esse grupo, se um homem confessava Cristo, isto apenas deveria ser suficiente para habilitá-lo a ser membro da Igreja Cristã, e acordo em coisas não essenciais não deveria ser requerido, um grupo liberal dissidente da Igreja Anglicana. Esses movimentos prepararam Locke para a escola antidogmática e liberal de teologia que ele encontraria mais tarde na Holanda, uma escola em rebeldia contra a estreiteza do Calvinismo tradicional. Em 1667 escreveu um ensaio sobre a tolerância que seria a base para o futuro Letters on Toleration.
Os interesses de Locke afastaram-se por certo tempo da medicina. Em 1668 Benjamin Whitcote, o teólogo (“divine”) latitudinário líder da Cambridge School, vigário da St. Lawrence Jewry, em Londres, atraiu Locke para sua congregação. Esta professava uma forma de cristianismo que considerava a teologia como racional, e isto acendeu o interesse de Locke pela religião e as escrituras, sobre o que irá publicar um trabalho, mais tarde. Interessou-se também por Economia, preparando o trabalho que publicaria anos mais tarde com o título Some Considerations of the Lowering of Interest and Raising the Value of Money (“Algumas considerações sobre reduzir os juros e o aumentar o valor da moeda”). Porém retornou ao interesse médico quando Ashley adoeceu subtamente. Ele salvou a vida do estadista por meio de uma habilidosa cirurgia, quando este adoeceu em maio de 1668. Então Locke teve que por de lado qualquer projeto para se entregar inteiramente a dar-lhe cuidados médicos. Diagnosticou a doença como problema do fígado. Fez um cirurgião drenar um cisto, inserindo um tubo de prata. Ashley recuperou maravilhosamente e concluiu que devia sua vida a Locke.
Locke era conselheiro pessoal de Ashley não apenas em matéria médica mas em assuntos gerais. Fez os acertos para o casamento do herdeiro de Ashley com a filha do duque de Rutland, assistiu sua nora em 1671, no seu resguardo, e dirigiu a alimentação e a educação do recém nascido que viria a ser o III conde de Shaftesbury, o famoso autor de Characteristics of Man, Manners, Opinions, Times, obra que despertou grande interesse entre os intelectuais europeus, inclusive Kant. Assessorou Lord Ashley em vários assuntos políticos importantes e conviveu com os mais altos círculos intelectuais e políticos da época. Devido a Lord Ashley ter direitos de propriedade na Carolina, Estados Unidos, Locke participou da elaboração de uma constituição para aquele futuro estado americano. Nesta época começa também a redigir o que seria “O Ensaio sobre o Entendimento Humano” no que trabalhou por mais de 20 anos.
Nos anos passados em Londres Locke tornou-se também membro da Sociedade Real, onde se procedia a discussões, experiências e demonstrações científicas. A sociedade fora fundada cinco anos antes e como seu membro Locke estava em dia com os avanços científicos; foi eleito em 1668. No entanto, seus próprios aposentos eram uma extensão da Sociedade. Seus amigos certamente ansiavam por aquelas horas de alheamento das preocupações diárias em que, na mais cálida amizade, se reuniam nos aposentos de Locke para conversar sobre achados científicos e sobre questões filosóficas. O próprio Locke iniciava os debates e assim discutiu e anotou os pontos de vista sobre o conhecimento humano como rascunho do que 19 anos mais tarde seria o seu famoso “Ensaio”.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 24-05-1998.
Direitos reservados.
Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – John Locke. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 1998.