Hoje: 22-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Assim, por Breve de 17 de Abril de 1675, foi isento Vieira para sempre da jurisdição dos Inquisidores de Portugal e seus representantes, e sujeito unicamente à Congregação do Santo Ofício de Roma; conjuntamente absolvido de quaisquer censuras, interdito ou penas eclesiásticas em que se achasse incurso até então.
Retorno a Portugal e à Bahia. Em maio Vieira deixou a capital romana onde fora durante seis anos admirado e prestigiado. No caminho foi hospede do Grão Duque em Florença; de lá se passou a Gênova e embarcou para Marselha de onde seguiu por terra para Toulouse e lá embarcou pelo rio Garona até Bordéus. A rainha da Inglaterra, a portuguesa Dona Catarina, o convidara para dali seguir para Londres, mas Vieira, por cansaço ou por pressa de chegar a Portugal, não atendeu ao convite, desembarcando em Lisboa em Agosto.
Vieira permaneceu no reino por mais de cinco anos depois que, chamado pelo Príncipe, tornara a Lisboa. Em todo esse período somente uma vez pudera intervir de modo efetivo em negócios públicos, quando convocado em 1680 a participar na junta de Conselheiros do Estado e Ultramarino.
Com a idade avançada, pensa em retornar a sua província no Brasil. Recebeu ainda um chamado da rainha Cristina, encaminhado pelo Geral da companhia, para que retornasse a sua corte em Roma, que recusou, alegando idade e as doenças. Hesitava entre retornar ao Maranhão ou à Bahia. Partiu a 27 de janeiro de 1681 na companhia de outros missionários que iam para a Bahia.
Das primeiras notícias que recebeu de Portugal, chegado definitivamente ao Brasil, foi de uma troça de estudantes em Coimbra, simulando um auto de fé e que os estudantes e a ralé da cidade o queimaram em esfinge aos gritos de “Padre Vieira, vendido aos judeus”.
Não parece ter sido de tédio a vida de Vieira, após retornar ao Brasil. Logo que chegou, foi intenção sua viver retirado na quinta do Tanque, de propriedade dos Jesuítas nas vizinhanças da cidade. Seu propósito consagrar-se à ascese e à conclusão dos sermões, que ia reconstruindo de fragmentos e notas e da memória, e concluir outros trabalhos literários. Mas esse retiro não foi possível. Não podia desaparecer sem que a curiosidade o seguisse. Eram duques, marqueses, arcebispos, a solicitar aos irmãos jesuítas notícias de Vieira.
Logo está a trocar assiduamente cartas com amigos na Europa, enquanto trabalha na revisão dos seus sermões. É também involuntariamente envolvido num incidente político desagradável, relativo a seu irmão que vivia na Bahia, Bernardo Vieira Ravasco, e um dos filhos deste, Gonçalo Ravasco. Foi o assassinato do Alcaide, tocaiado à luz do dia e morto perto do Colégio por oito mascarados que em seguida ao crime refugiaram-se na casa dos jesuítas. Lá estava escondido também o referido sobrinho de Vieira, Gonçalo Ravasco, por uma briga que tivera com um meirinho. Daqui nasceu dizer-se que o homicídio do alcaide fora planejado no interior da residência, em conciliábulo a que tinham assistido o filho e o irmão de Antônio Vieira, versão logo aceita pelos inimigos dos jesuítas.
Vieira tinha a intenção de reunir seus sermões em 12 volumes, e já publicara 7. O trabalho exigia grande aplicação porque a maior parte das prédicas estava em notas algo desordenadas. A coleção consta de sermões pregados em diferentes épocas, remontando a antes de 1640 na Bahia.
Com as rendas de seus sermões publicados Vieira se mantinha e também a um secretário, e o restante empregava em socorrer as necessidades dos índios nas missões.
O livro que Vieira pensava seria sua grande obra, nunca saiu a lume: De regno Christi in terris consummato, ou por outro nome, Clavis prophetarum, em quatro livros. Era uma publicação aguardada com interesse. Meditada nos caminhos e rios da Amazônia, começada ao sair da Inquisição, continuada em Roma e Lisboa, era a ocupação em que mais tinha gosto. Por mais de trinta anos ele tinha burilado o texto, e continuava ainda a aprimorá-lo. Agora, perto de nonagenário, fisicamente inválido, possuía ainda clareza das idéias, a agudeza do verbo para concluí-la. Esta obra sumiu-se quase por completo, ficando apenas algumas copias mutiladas. Supõe-se que foi roubada por ocasião de sua morte.
Tendo a rainha Dona Maria Francisca Isabel de Saboia falecido, houve grandes homenagens na Bahia. Obedecendo a determinação ao Marques das Minas, o Padre Antonio Vieira fez um sermão, apesar da “falta de dentes e de voz e todos os outros achaques da velhice…”, contou ele em carta de agosto de 1684 ao marquês de Gouveia.
D. Pedro II, que ainda não tinha herdeiros, casou-se novamente, em dezembro de 1686, com Dona Maria Sofia Isabel de Neuburgo, filha do Eleitor Palatino Filipe Guilherme de Neuburgo, que lhe deu cinco filhos. Mais tarde, além dos sermões antigos, de que ia sucessivamente mandando os volumes para publicação em Lisboa, preparou Vieira entre 1691 e 1693 um tomo de sermões de São Francisco Xavier, por encargo da nova Rainha, particularmente devota do apóstolo a Índia.
Adoentado, em 1969 Vieira suspendeu sua correspondência com seus admiradores. Repetir-se-ia o acidente de 1673 em Roma: aos 85 anos, já trôpego, caiu de noite por um lance de escada de pedra. Além de ficar molestado em todos os membros, por muito tempo não pode segurar a pena.
Dois anos depois saia da imprensa o undécimo volume de sua coleção dos Sermões, oferecido à rainha Dona Catarina. O último volume, o duodécimo, foi acabado no ano de sua morte, em 1697, A mesma nau em que viajou o manuscrito trouxe a Lisboa a nova de ter falecido o autor.
Pensamento:
Vieira considerava-se filósofo, não só “filósofo natural”, mas “filósofo cristão”. Professor de retórica, compôs para seu uso um curso de filosofia. Seus conhecimentos de história e filosofia transparecem em milhares de comparações e metáforas nos seus sermões. Toda uma monografia seria pequena para considerar o que nos sermões de Vieira há de assuntos filosóficos.
O pensamento de Vieira é genuinamente moderno, apesar de viver na época em que, não só em Portugal como em boa parte da Europa, ainda domina o aristotelismo e a filosofia escolástica ensinada pelos jesuítas, e apesar de ser ele mesmo um padre jesuíta. Para comentar suas idéias vamos utilizar os mesmos trechos selecionados por Ivan Lins como os mais significativos da sua obra.
Contra a lógica e a autoridade aristotélicas. Rejeitava Vieira o princípio de autoridade própria da escolástica, sancionada pela Igreja e reforçada pelo poder real, para, em substituição, valorizar a experiência como caminho da certeza. No seu Primeiro Sermão do Terceiro Domingo do Advento que demonstra claramente sua postura filosófica moderna, realçando o valor da experiência contra o vazio da especulação filosófica aristotélica dedutiva. Diz Vieira: “Nenhuma coisa houve mais assentada na Antiguidade, que ser inabitada a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provaram, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse.” As viagens dos descobrimentos provaram ser errada a lógica dos aristotélicos, porque existiam de fato terras habitadas nos trópicos. A verdade foi provada pela experiência de buscar e de ver: “Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um dia de vista que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação”.
A propósito de sua postura filosófica, e para não deixar em ninguém qualquer dúvida de que Vieira se alinha com o pensamento dos filósofos modernos, basta ver a carga de acusações que lhe faz a Inquisição portuguesa, entre elas a de fazer uso de livros proibidos trazidos do estrangeiro. Ora, os livros proibidos em Portugal são principalmente os livros dos filósofos empiristas ingleses e de seus aderentes e comentaristas franceses.
Inclusive em seus erros Vieira está emparelhado aos filósofos de seu tempo, pois é uma característica do início da idade moderna a crença em certas forças ocultas, nas quais esses filósofos acreditavam e para cuja explicação queriam encontrar um caminho filosófico próprio, diferente tanto da superstição quanto de sua qualificação religiosa como forças demoníacas. Assim foi com Giordano Bruno, Campanella, e outros, não faltando sinais de propensões esotéricas no próprio Bacon e em Locke. Vieira parece tocado pelas profecias de Bandarra e as utilizou para o fim de inflamar o nacionalismo dos portugueses, e terá que explicar essa atitude aos seus inquisidores, no seu martírio perante o Santo Ofício. Sua crença nos malefícios dos cometas é a mesma que têm os grandes filósofos e matemáticos da época moderna. A respeito escreveu o opúsculo: Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Bahia: Juízo do cometa que nela foi visto em 27 de outubro de l695 e continua até hoje, 9 de novembro do mesmo ano.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 28-03-1997.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Padre Antônio Vieira. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 1997.