Hoje: 21-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Introdução. Filósofo moralista que viveu no Brasil na segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII, Nuno Marques Pereira foi autor de um livro muito lido na época colonial, intitulado Compêndio Narrativo do Peregrino da América, em que se tratam vários discursos espirituais e morais, com muitas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do Brasil. Oferecido a Nossa Senhora da Vitória, Imperatriz do céu, Rainha do mundo e Senhora da Piedade, Mãe de Deus.
A edição geralmente disponível é Compêndio Narrativo do Peregrino da América, 6a. edição completada com a 2a. parte, uma publicação da Academia Brasileira de Letras, datada de 1939. A edição, das duas partes da obra reunidas em um só volume, contem estudos e notas por Varnhagen, Leite de Vasconcelos, Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Pedro Calmon.
VIDA. Afrânio Peixoto, ao fazer a apresentação da obra, nota que os autores divergem quanto a ser Nuno Marques Pereira nascido no Brasil ou em Portugal. Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, diz que era “natural da Villa de Cairú, distante quatorze léguas da Cidade da Bahia de Todos os Santos, Capital da América Portuguesa”. Porém, sua grande erudição ele não poderia tê-la adquirido no Brasil. Com certeza estudou em Portugal e muito provavelmente teria lá nascido, pois faz crer que seja estrangeiro não só por se qualificar como Peregrino, título de seu livro, como por afirmar: “Não merece pouca estimação, o que, desprezando os mimos e regalos de sua Pátria, busca as alheias, para nelas se qualificar com mais largas experiências”.
O livro todo é a narrativa da viagem do Peregrino pelo caminho das Minas.
Diz o Peregrino que se deliberou a ir às minas de São Paulo (atual estado de Minas Gerais), curioso, devido à fama de suas riquezas. Em nota ao fim do Capítulo I, o comentarista Pedro Calmon sugere que Nuno Pereira teria ido às Minas como fuga em razão de sua condenação pelo juiz de Camamu, em 1704. Cita Calmon, em nota à p. 36, vol. I, que se descobriu uma carta, na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, na qual o Governador geral do Brasil, D. Rodrigo da Costa, responde ao Juiz da Vila de Camamu, no litoral da Bahia, dizendo haver recebido sua comunicação. Nesta o juiz havia lhe avisado que três pessoas haveriam de procurá-lo para buscar o perdão de seus crimes. Um dos três nomes é o de Nuno Marques Pereira. O governador diz estar prevenido mas que ainda não o haviam procurado.
Me parece, no entanto, que esta viagem pode ter sido apenas fantástica. O Peregrino não se refere a nenhum lugar do Caminho da Bahia para as Minas, o que me faz crer que toda a sua jornada foi imaginária. Além de dizer que embarcou para Cachoeira, que era o início do Caminho, e que de lá foi ao Colégio de Belém, onde visita o túmulo do Arcebispo da Bahia, não fala mais senão de campinas, matos e serras, sem lhes dar nomes ou sugerir qualquer semelhança com a topografia e toponímia do Caminho Velho.
A carta transcrita por Calmon, de fins de 1704, não indica quais delitos Nuno Marques teria praticado. Permite conjecturar se foi ou não perdoado, e se o delito praticado o teria levado a uma espécie de catarse através de sua obra moralista. A carta, pelo menos, mostra que residiu em Camamu e que aquele seria o ano em que deixou a vila, mais provavelmente de mudança para Salvador.
Nuno Marques Pereira não teve recursos para publicar seu livro, o que só poderia ser feito em Portugal, e a custos certamente elevados. Solicitou o financiamento da obra a uma figura poderosa e rica, o português Mestre de Campo Manuel Nunes Viana, residente nas Minas, importante criador de gado e minerador, chefe político dos portugueses na disputa com os mestiços paulistas pelo controle das Minas de Ouro.
Aquele potentado, grande latifundiário e líder político, que praticamente governou Minas Gerais paralelamente com os governadores nas primeiras décadas da época do ouro, foi preso em 1725 pelo vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses em a seu pedido, lhe foi concedida por menagem a cidade da Bahia. Deve ter sido motivo de grande alvoroço sua chegada à cidade e de onde seguiria em julho daquele mesmo para Lisboa, autorizado que estava pelo Rei a ir a Portugal internar umas filhas em um Convento.
Portanto, Manuel Nunes Viana estava em Salvador em 28 de junho de 1725, e prestes a viajar para Lisboa, quando Marques Pereira lhe solicita patrocinar a edição do seu livro e possivelmente avistou-se pessoalmente com ele e deve lhe haver entregue em mãos a carta transcrita no livro, a qual data de 28 de junho, apenas alguns dias antes da partida do Mestre de Campo. Este me parece outro indício de que Nuno Marques Pereira não esteve nas Minas, o quanto só tardiamente lembrou-se de recorrer à ajuda de Manuel Nunes Viana
Manuel Nunes com certeza levou consigo para Lisboa o manuscrito do volumoso livro de Nuno Marques Pereira, o qual apareceu publicado três anos depois. O livro teve cinco edições sucessivas, em 1728, 1731, 1752, 1760 e 1765.
Aparentemente a obra, de grande tiragem, rendeu pouco ao seu autor, que ficou sem recursos para publicar a segunda parte, que por muitos anos foi copiada manualmente por interessados em lê-la e divulgá-la, do que resultaram muitos erros e muitas variações do texto original, segundo se lê nas notas introdutórias da edição da Academia. Em sua nota Preliminar à edição de 1939, Afrânio Peixoto não tem dúvidas em aceitar que a segunda parte é inédita. Diz que o manuscrito dessa segunda parte, apógrafo, inédito, que se tornou o II tomo da edição da Academia feita em 1939, foi buscada por João Lúcio de Azevedo na Biblioteca Nacional de Lisboa, a pedido seu. Pedro Calmon se ofereceu para fazer as anotações ao final dos capítulos, Rodolfo Garcia fez a nota biográfica.
No entanto essa Segunda Parte contem uma carta de agradecimento de Nuno Pereira ao rico cidadão da Bahia, Miguel de Passos Dias, que teria sido o patrocinador da publicação da segunda parte, como fora a primeira patrocinada por Manuel Nunes Viana, era alto comerciante, e dedicado também a afazeres sociais. Foi duas vezes vereador e, irmão desde 1717, foi por um ano (1730-1731) Provedor da Santa Casa da Misericórdia. Era informante do Santo Ofício (“familiar”), cavaleiro da Ordem de S. Tiago, e, em 1731, ministro da Ordem Terceira de S. Francisco. Esses títulos deveriam indicar que era branco e cristão velho, sem raça de judeu, porém naqueles anos, quando se tratava de comerciante, com muita probabilidade este seria da terceira ou quarta geração de cristãos novos, o que ninguém buscava averiguar muito a fundo, quando se tratava de benfeitor rico.
Nuno Pereira não foi sacerdote, mas homem muito piedoso. Ele próprio afirma: “Bem é verdade, que me dirão muitos, que escrever, e ainda em matérias espirituais, só incumbe a seus professores, e que eu o não sou” (p. 6, vol. I). Diz também que estudou direito, mas não se graduou. Também não se descobriu que fosse professor de filosofia na Bahia. Teria vivido pelo menos até 1733, data da parte inédita do Peregrino da América.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 10-04-2000.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Nuno Marques Pereira. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2000.