Hoje: 03-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
O leitor de revistas e o espectador que assiste a documentários na televisão têm conhecimento de tudo de mais importante que a ciência tem descoberto em relação ao nosso cérebro. Por isso, é quase do conhecimento geral das pessoas que tudo que pensamos e sentimos, e também nossos movimentos, dependem de um sistema de ligações entre neurônios em nosso cérebro, principalmente nos lobos anteriores, onde o ordenamento do raciocínio tem lugar.
Os neurônios armazenam nossas experiências de sons, imagens, e de tudo mais que chega à mente através dos sentidos, ao longo de nossa vida. E da associação entre eles resultam a formação de conceitos e o pensamento. O sistema traz seu núcleo básico moldado segundo componentes genéticos, e depende da experiência e do aprendizado para se expandir em cada categoria de comportamento, e acrescentar variações associativas às matrizes originais.
Emoções básicas como o medo têm origem na amígdala ou cingulado anterior, e emoções que dependem da experiência cultural têm origem na zona prefrontal, área que pertence à última fase de desenvolvimento do cérebro humano.
Assim, a partir de certas estruturas primárias de neurônios, desenvolve-se um sistema de matrizes associativas de grande complexidade. Ao mesmo tempo, algumas outras estruturas estão envolvidas que transferem para o hipotálamo e o sistema límbico, os estímulos para provocar respostas fisiológicas, e ao sistema motor a codificação para o movimento adequado (Milner, 1970). São 1,5 x 1010 neurônios de variados tipos, que conectam entre si através de sinapses, sem se soldar propriamente uns aos outros, cada neurônio recebendo sinais através de cerca de 104 sinapses (Widrow e Lehr, 1990). Com esta complexidade, não é de admirar que o cérebro do homem seja considerado o mais complexo aparelho biológico que existe sobre a terra e que os cientistas estejam tentando tomá-lo como modelo na construção dos computadores.
Porém, as concepções quanto ao relacionamento entre o desenvolvimento do conhecimento e o desenvolvimento do cérebro não são assim tão recentes. O biólogo, psicólogo e filósofo Jean Piaget (1896-1980), fez importantes pesquisas nesse campo, na primeira metade do século XX. A consciência da importância de suas descobertas influiu em sua própria vida. A magnitude do problema impressionou-o, e levou-o sucessivamente ao estudo de Psicologia e da Filosofia.
Piaget cunhou para si mesmo o título “epistemólogo genético”, refletindo sua crença de que o desenvolvimento do conhecimento na criança é biologicamente determinado de forma ordenada através de uma sequência de estágios identificáveis, de forma semelhante ao crescimento físico. Esta comprovação teve repercussões significativas na área educacional. O impacto de sua obra se estendeu além da Educação, despertando agudo interesse entre os psicólogos, os evolucionistas e ultimamente entre os neurologistas, principalmente aqueles com tendência filosófica para o exame das relações corpo espírito.
Piaget mostrou que o próprio pensamento lógico, fundamento da razão, dependia de estruturas biológicas previamente dadas. Era sua tese que tais estruturas ‒ integradas ao processo de crescimento da criança ‒, se aperfeiçoavam por “auto-regulações orgânicas”, em esquemas sucessivamente mais complexos.
Mas a inexplicável, porém comprovada, relação entre as aptidões crescentes do raciocínio, e o desenvolvimento físico foi esquecida pelos pedagogos e psicólogos, para os quais Piaget havia apenas cronometrado o desenvolvimento cognitivo de modo abstrato, em profundidade e detalhe como até então não havia sido feito. Porém, esta relação ‒ entre conhecimento e algumas estruturas físicas que lhe da existência ‒ é o principal achado de Piaget e é aquele para o qual hoje se voltam as atenções dos neurofisiologistas que estudam o cérebro humano.
Kant já havia dito que nosso conhecimento está limitado a algumas categorias que são aquilo que nós podemos perceber ou atribuir às coisas. Piaget refere-se às categorias propostas por Kant como algo que tem muito a ver com os “esquemas” que descobriu, os quais habilitam a mente a certos julgamentos. Porém o próprio Kant fora precedido por Leibniz, que supunha existir na mente alguma estrutura coordenadora do raciocínio. Essa estrutura seria responsável pelas ideias que Descartes havia considerado “ideias inatas”.
Efetivamente, Descartes, analisando suas próprias experiências, havia concluído que algumas ideias eram instáveis e obscuras, facilmente atingíveis pela incerteza, e que outras, ao contrário, apresentavam-se na mente com grande clareza. As ideias necessárias para o raciocínio matemático apresentam-se ao espírito com nitidez e estabilidade, e são imunes à dúvida: – A figura triangular, o retângulo, os número, etc., eram concebidos por todos da mesma maneira, como ideias iguais e exatas, o que parecia demonstrar que independiam de aprendizado e que eram herdadas.
Para Leibniz essas ideias não seriam propriamente inatas, como queria Descartes, mas geradas em estruturas inatas específicas. No prefácio aos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, ele compara ‒ como exemplo ‒, a geração das ideias a um bloco de mármore que tem veios. Os veios sugerem veladamente a figura de Hércules que seria de algum modo como que inata, ainda que fosse sempre necessário o trabalho de talha para eliminar o que impede sua completa revelação. Do mesmo modo, segundo ele, as ideias corresponderiam a inclinações e disposições inatas em nossa mente que contribuem para sua geração.
O ponto de vista de Piaget é precisamente este, de que a organização perceptual é fisicamente genética, sendo inerente a matrizes biológicas que constituem a estrutura fundamental do pensamento. Essas matrizes se formam controladas exclusivamente por códigos genéticos (Como visto, ele se intitulava “epistemólogo genético”) Como tudo o mais no organismo humano, as propensões intelectuais do indivíduo estariam gravadas como ordens minuciosas em seu código genético para suas sucessivas etapas de desenvolvimento.
Dando um escopo maior à sua tese, Piaget se interessa pelas observações de Lorenz de que, nos animais, o comportamento segue padrões fixos por força de determinantes internas, embora possam tomar objetos externos que são estranhos ao padrão normal. A esse respeito Lorenz cita uma experiência de Wallace Craig (1918): um pombo macho, afastado da fêmea, corteja um pombo empalhado, um pedaço de pano, e até mesmo o canto vazio da sua gaiola (Lorenz, 1971, p.49).
Quer dizer que algo está disposto para certos procedimentos vitais, e que o sistema pode se “auto-regular” adaptando-se a condições excepcionais. Verificamos que no comportamento do homem também se combinam várias exigências de um sistema interno e alvos para cada comportamento específico. As matrizes incorporam alvos e estratégias conforme o comportamento que lhes é afeto.
Esses alvos vão se substituindo durante a evolução endócrina e social do indivíduo, como nas fases observadas por Freud. Neste processo de incorporação, existe a possibilidade de introdução de guias e alvos falsos resultando comportamentos anormais.
Na interpretação que faço de seu pensamento, Piaget também afirma que as “Matrizes genéticas” do pensamento lógico estão igualmente sujeitas a uma evolução que as aperfeiçoa por força tanto do desenvolvimento interno quanto da experiência. Mas ele não acreditava no crescimento físico das matrizes genéticas após uma certa idade. Dai por diante elas “assimilavam” as experiências em sua própria estrutura.
As pesquisas que tornaram célebre o cirurgião americano Wilder Penfield nos anos 50 (Penfield e Roberts, 1959), demonstraram que nenhuma informação, ideia ou emoção se perde em toda a vida do indivíduo. Então, o cérebro, para toda essa capacidade de armazenar dados, está, de algum modo, em contínua expansão ou tem uma rede associativa ociosa à espera de impressões? Se bem que está demonstrado que o sistema nervoso para de crescer, no entanto a primeira hipótese, a de que ele sofre acréscimos permanentes de alguma natureza, parece necessária, a fim de que, cada novo segmento de informação que se acrescenta, possa entrar em correta associação com os segmentos existentes e nunca se alterar, nunca ceder o seu lugar para novo registro, com a permanência que afirma Penfield.
Mas o que a ciência mostrou, depois de avançar espetacularmente no campo da engenharia genética e da neurofisiologia, vai além do que Piaget ousou especular. O conhecimento e o cérebro hoje não se relacionam por esquemas gerais mas por uma interação detalhada entre o pensamento e várias redes de neurônios, e os cientistas investigam suas associações.
Para mim as matrizes genéticas do conhecimento impõem uma sintaxe de organização (como no desenvolvimento de um raciocínio lógico) mas elas não estão envolvidas na geração de um conceito como peças associáveis.
Considerando todos esses fatos penso que podemos falar de um “sistema associativo” que contem os registros físicos de toda nossa memória, e está organizado em matrizes sintáxicas que são as linhas mestras de nosso pensamento e de nossas emoções.
O crescimento de alguma forma de ramificação associativa, guiado por sintaxes radicadas nas matrizes associativas herdadas, seria indispensável para explicar a própria associatividade como processo sempre renovado demandando sempre novas ligações entre conceitos durante toda a vida do indivíduo. Os anatomistas já constataram que, efetivamente, o cérebro de um intelectual contem um número maior de fibras associativas que o de um homem inculto, e que existe uma propensão hereditária que faz certos indivíduos se distinguirem pela inteligência em um dado setor.
As pesquisas prosseguem. Os neurofisiologistas progridem a partir da experimentação com neurônios isolados ou redes de neurônios e os biólogos moleculares estão começando a mapear relacionando comportamento anormal a estruturas específicas de DNA. Neste quadro se insere também a teoria inatista da linguagem, uma especulação quanto à existência de um núcleo linguístico fixo, inato, compreendendo certas estruturas necessárias à linguagem, como a relação do sujeito com o predicado.
Tais centros conteriam de antemão as formas essenciais da língua e da razão, ou seja, estariam estruturados geneticamente tal como o comprovou Piaget para as estruturas lógicas.
Então, é o homem um ser inteiramente determinado, reduzido inteiramente ao físico, sem liberdade? Eu acredito que o homem tem liberdade total, porém condicionada a que ele saiba como encontrá-la, porque nele algo está predisposto para que não a tenha.
Ao contrário do que ditam os existencialistas, existe uma essência, um projeto humano que será herdado e está, portanto, posto anteriormente à existência do indivíduo como uma ameaça à sua liberdade. O objetivo da Filosofia do Espírito é esclarecer os pormenores dessas novas questões e o papel do educador é o de mostrar como lidar com uma herança biológica escravizante, a fim de chegar a uma verdadeira liberdade, a qual está condicionada justamente ao conhecimento de como lidar com esse mecanismo que se lhe opõe.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 06-12-2009.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Onde, a Liberdade?. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2009.