Hoje: 22-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Como dito, emprego o termo “mente” para designar o local onde a experiência de cons¬ciência se dá em função tanto das estruturas associativas no cérebro, quanto de certas faculdades do espírito. Porém, o fato de que um desses dois termos é um sistema biológico mapeável no próprio cérebro não facilita a determinação precisa desse local. Este é apenas um dos problemas do dualismo. Partes importantes do cérebro, removidas, não fizeram cessar a consciência, e aquela parte que, removida, cessa a vida, não é importante considerado o sistema associativo, e isto já fora apontado por Penfield (1959, op. cit.).
Platão já estava convencido de que a alma, ou espírito, estava localizada dentro da cabeça. Aristóteles, no entanto, insistia em que o espírito estava no coração. Os aristotélicos da idade média, contrariando o mestre, concordavam todos em que o cérebro sediava o espírito.
Descartes, no início do século XVII, afirmou que o espírito vivia no cérebro, porém era uma coisa imaterial, inteiramente separada de qualquer base física. Com essa sua concepção dualista radical e anti-escolástica da existência da substância extensa, separada da substância pensante, Descartes suscita a questão magna da Filosofia do Espírito: Como explicar essa comunicação e a mútua influência que se dá no homem, entre o que é material e o imaterial, entre corpo e espírito?
O problema da interrelação corpo-espírito não é reconhecido por Berkeley; ele nega a existência da substância material. Nossas vivências, Deus as põe em nós que somos puro espírito; não têm correspondência com qualquer mundo físico.
A primeira solução é a do próprio Descartes: O sistema nervoso consiste em cordeis que puxam a glândula pineal; as vibrações desta são percebidas pela alma. Curiosamente, ainda hoje não se sabe que finalidade cumpre a glândula pineal, mas o problema permanece, porque nessa, como em qualquer outra forma de interacionismo, é impossível compreender como a comunicação se dá entre uma substancia e outra , sem a possibilidade de existir algo comum entre elas.
A segunda solução é a de Spinoza: Há apenas uma substância que é Deus. Essa substância tem duas faces, dois atributos: a extensão cartesiana e o pensa¬mento cartesiano. É uma solução semelhante à que dá Berkeley: dois atributos da mesmo substância, dois aspectos da mesma realidade que coincide com Deus.
A terceira hipótese pertence à corrente ocasionalista, é a hipótese de Malebranche. Deus estaria atento a cada minú¬cia, e aquilo que chamamos causas na física são ocasiões em que Deus tem que intervir para harmonia de todo o universo.
O ocasionalismo sempre foi combatido por invocar a intervenção maquinal de Deus em cada série de eventos naturais. Não há nenhuma influência da mente sobre o corpo ou do corpo sobre a mente, não existe operação causal senão que Deus é a única causa, intervém para produzir a coincidência da vontade da alma com as ações do corpo. Assim, quando uma pessoa deseja, por exemplo, mover um dedo, isto serve como ocasião para Deus mover-lhe o dedo; quando um objeto aparece subitamente em seu campo de visão, isto serve de ocasião para Deus produzir uma percepção visual na sua mente. Malebranche disse que se diferenciava de Spinoza porque este havia dito que Deus estava no universo, e ele dizia que o universo estava em Deus.
A quarta hipótese consiste no modo de paralelismo proposto por Leibniz: o homem, como todo o universo, é constituído de partículas finíssimas e indivisíveis, as mônadas. Seguindo cada mônada sua própria lei, resulta a harmonia universal. Corpo e espírito existem como mônadas materiais e espirituais que não se comunicam porém atuam paralela e simultaneamente, em uma perfeita harmonia que foi preestabelecida por Deus desde o momento da criação. São como dois relógios que marcarão sempre horas iguais. Nunca avançarão nem se atrasarão um em relação ao outro. Não há também qualquer relação entre eles, nem o relojoeiro os está constantemente a acertar uns pelos outros: isto seria um milagre perpétuo, o que lhe parece absurdo.
A solução proposta por Leibniz nunca foi popular, nem as demais, e possivelmente não haverá nunca alguma que o seja. Porque o que acontece não é uma relação de influência mas de transformação substancial. A fronteira entre o espiritual e o material é transposta a cada momento, seja por algo que vem do corpo para o espírito, seja de algo que vai do espírito materializar-se no corpo.
A associação entre os pontos da rede associativa é um processo, e portanto não pertence ao espírito e sim ao ser orgânico do homem. O produto desse processamento, no entanto, transcende o físico, perde a substância material, perde a extensão e torna-se pontual, adquire um estado de outra natureza, como um modo de consciência. E mais, o que se passa na mente não segue em um sentido só, como se, nas experiências de consciência, o espírito fizesse apenas a leitura dos sinais físicos presentes na mente. A ciência nos revela hoje que o caminho inverso também se dá, ou seja, aquelas vivências que consideramos imateriais, inteiramente pertencentes ao mundo espiritual, também se trasladam ao mundo físico e nele ficam gravadas, materialmente.
Na mente do homem dá-se, portanto, essa coisa incompreensível: em um sentido, algumas modificações físicas e químicas em células inter associadas criam o pensamento e o sentimento no seu espírito e, em sentido contrário, as vivências de seu espírito ordenam as proteínas em um tecido associativo no seu cérebro. É como se, ao mesmo tempo que eu lesse a página de um livro, nessa página fossem aparecendo impressas, por acréscimo, as minhas divagações e sentimentos sobre o texto da leitura.
Após o estado de consciência, uma configuração associativa tem, por esse motivo, propriedades de conjunto que excedem à simples soma das pro¬priedades das unidades originalmente associadas. O que lhe é incorporado pode até mesmo perturbar sua relação matricial natural.
O que, pois, dizer desse problema de incompatibilidade das partes, da influencia do corpo sobre a o espírito e da influencia do espírito sobre o corpo senão que uma coisa produzida em um se transforma e se transubstancia em natureza do outro e que nessa transubstanciação está, e permanece, o mistério da interação corpo-espírito? E o uso da expressão “transubstanciação” nem sequer é inteiramente uma novidade no contexto filosófico, pois está na solução filosófica para o mistério da Eucaristia, dogma fundamental da teologia cristã.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 06-12-2009.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Problemas do Dualismo. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2009.