Hoje: 21-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
As virtudes pregadas por Sócrates e Platão estão em relação direta com as partes da alma que Platão nomea como a parte racional, a parte irascível e a parte concupiscente. Mas, para os filósofos medievais, a alma, ou espírito, teria certas faculdades que lhe seriam imanentes: a inteligência, a vontade, o conhecimento, a memória, responsáveis diretamente pelo comportamento do homem. São Tomás analisa as relações entre o que chama “as duas grandes faculdades espirituais do homem”, a inteligência e a vontade na Suma Theologica (1, Q. 82, art. 4, ad primum). O filósofo italiano Tommaso Campanella, na mesma linha de Santo Agostinho, afirmou que os homens e, em graus diferentes todos os outros seres, inclusive Deus, são constituídos por três primalidades: potestas, sapientia, amor (Mondolfo, 1954). E no início do século XX, Freud, a julgar pelo seu conhecimento da filosofia e do teatro grego, aproveitou e renomeou na Psicanálise, – como Ego, Superego e Id, – as três partes da alma segundo a teoria platônica.
Faculdades do Espírito. É claro, nenhuma das teorias do passado poderia ter levado em conta aspectos físico-químicos das atividades mentais que somente nesta última década a ciência viria a demonstrar. A partir dessas novas descobertas, não se pode mais nomear as faculdades do espírito em relação direta e simples com tipos de sentimentos ou de comportamentos. Não importa o mistério aí envolvido, temos que pensar faculdades do espírito necessárias ao conhecimento, porém atuando em síntese com o comprovado “mecanismo fisiológico de pensar” que é o cérebro humano. Sobre quais seriam as faculdades do espírito nessa relação escrevi a página, portanto, a clássica estrutura trinitária da alma, que persiste para muitos filósofos da corrente dualista ainda hoje, me parece muito inadequada.
Apesar de atuarem na mente em síntese com a estrutura associativa, as faculdades ou aptidões que o espírito tem, quaisquer que sejam, se completam e se realizam necessariamente em si mesmas; se tivessem objetivos, se buscassem algo para se satisfazerem, constituiriam um sistema com um processo, como é próprio dos sistemas físicos. Portanto têm objeto, mas nenhum objetivo além de sua realização sobre seus objetos.
É seguindo nisto os passos dos filósofos que dão importância à introspecção que tento deduzir quais faculdades ou aptidões seriam necessários ao espírito para produzir nossas experiências de consciência, em síntese com a participação orgânica. Procuro chegar a alguma coisa que me permita sustentar o processo de interação corpo-espírito como eu o concebo e para isto faço algumas deduções que reconheço débeis e incompletas, mas que são satisfatórias para dar esse mínimo que me será útil.
A discriminação consistiria em poder o espírito conhecer, na mente, as diferentes totalidades ou as particularidades em que se fraciona a realidade. Me parece que nenhuma das formas de conhecimento seria possível se o espírito não tivesse uma faculdade anterior de discriminação. É a faculdade que permite o conhecimento das descontinuidades. Uma descontinuidade é algo que está entre as coisas, a separação dos objetos. Ela não pertence a um nem a outro dos objetos que separa. Ela está entre objetos que conhecemos, sem ser um objeto ela própria. Está na coisa em si que não conhecemos.
Como objetos dos sentidos as descontinuidades nos revelam a unidade e a pluralidade na coisa em si. Elas geram, em nossa mente, as descontinuidades naturais, as formas da representação dos objetos do mundo real. Transpostas aos objetos ideais que são as configurações associativas, o espírito tem essa capacidade de conhecê-las como experiência de consciência de superfícies e formas, a consciência distintamente de cada elo do pensamento, a consciência dos diversos sentimentos, de conceitos, a consciência das coisas como entes particulares, que é a discriminação, mesmo que sem conhecimento do que as coisas sejam, senão que ali estão vários objetos destacados.
No entanto, a aptidão para a discriminação parece que não bastaria para facultar o conhecimento pelo espírito. Ainda seria necessária a possibilidade de movimento em relação ao discriminado. Esse movimento deve ser uma dessas aptidões puras do espírito, cuja existência só se revela pela própria possibilidade da consciência das coisas, que são possíveis porque existe no espírito a faculdade de discriminação e de movimento.
Já colocavam os filósofos antigos, há movimento nas transformações. O movimento no conhecimento, em qualquer de suas formas, já nos obriga a aceitar uma alteração do espírito, o que pede um princípio de alterabilidade. O movimento depende da anterior discriminação e a alterabilidade depende, por sua vez, do movimento.
O movimento cognitivo é um impulso próprio ou faculdade do espírito de mover-se como conhecimento para os objetos da discriminação e isto implica ou supõe a possibilidade de escolha entre objetos. Que objetos são esses? Lembremos que nenhuma sequência ou objetivo – que são próprios dos sistemas físicos – poderão ser imputados às faculdades do espírito, as quais, como consequência, necessariamente se realizam em si mesmas.
Então vamos supor que o espírito é sensível à possibilidade ou não de seu próprio movimento no conhecer, e que tem a faculdade de comprazer-se na liberdade desse movimento no sentido de intimidade, na aquisitividade que é o conhecer e alterabilidade consequente do conhecimento e aprazimento. E isto é o que busca, e não objetos particulares. Não há sequência: na mesma alteração em que conhece o discriminado, tem seu movimento de aprofundamento da discriminação, e tem seu aprazimento.
Então o aprazimento para o espírito está na excelência da síntese de ambos o movimento contínuo e livre para a aquisitividade do conhecimento no sentido da intimidade da discriminação. O que apraz ao espírito é o progresso desse movimento do conhecimento no sentido da ideia mais íntima e completa, mais profunda, a verdade última. Na visão teológica, seria um progredir da intimidade que amplia a totalidade até uma fusão com o próprio Deus.
Mas esse ideal, o conhecimento pode alcançá-lo? O homem aprendeu principalmente neste último século que pode aumentar indefinidamente seu conhecimento, nivelando-o em totalidades sucessivas a partir do mais profundo grau de minúcias. Sabe que não vai exaurir nunca o que existe para conhecer, o que seria alcançar o absoluto, a síntese suprema de todos os particulares. Porém essa total intimidade, esse absoluto, como um ideal que se torna cada vez mais irresistível, apesar de inatingível, é o que guia o progresso contínuo do seu conhecimento. Como objetivo natural do espírito no conhecer, estabelece o valor da liberdade e da verdade para o seu aprazimento que é, na síntese mental, fundamento para o sentimento de excelência pessoal e a felicidade de cada um.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 06-12-2009.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Conhecimento, escolha e prazer. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2009.