Liberalismo

Hoje: 03-12-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
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I – Definição

Em Filosofia Política, o que chamamos Liberalismo é a forma ao mesmo tempo racional e intuitiva de organização social em que prevalece a vontade da maioria quanto à coisa pública, e que está livre de qualquer fundamento filosófico ou religioso capaz de limitar ou impedir a liberdade individual e a igualdade de direitos, e no qual o desenvolvimento e o bem estar social dependem da divisão do trabalho, do direito de propriedade, da livre concorrência e do sentimento de fraternidade e responsabilidade filantrópica frente à diversidade de aptidões e de recursos dos indivíduos.

Em sua inteira expressão, o pensamento liberal contem um aspecto intuitivo, além do puramente racional, e esquecer essa particularidade – como, me parece, faz grande número de filósofos e cientistas políticos – implica em não compreender inteiramente a essência do Liberalismo.

Na antiguidade – na Grécia de alguns séculos antes de Cristo –, existiu um regime semelhante ao Liberalismo, pelo menos no que diz respeito à livre decisão do povo, através do voto da maioria, nas questões de interesse público. Porém foi nessa mesma Grécia, daquela mesma época, que a idéia rival do Liberalismo foi ensinada por Platão. Em sua obra A República ele argumenta que a maioria do povo é ignorante, e não sabe decidir racionalmente de acordo com a vontade geral de bem estar social. Por esse motivo, o voto deveria ser privilégio da elite de filósofos, homens esclarecidos que saberiam muito melhor o que seria o bem para todos. Embora não existissem as denominações Liberalismo (vontade livre da maioria) e Socialismo (vontade racional da minoria esclarecida), os germes dessas duas idéias opostas já estavam nessas duas posições políticas.

O Liberalismo parte do princípio de que o homem nasce livre, tem a propriedade dos bens que extrai da natureza ou adquire por via de seu mérito ou diligência e, quando plenamente maduro e consciente, pode fazer sua liberdade prevalecer sobre as reações primárias do próprio instinto e orientar sua vontade para a virtude. Uma pessoa madura e livre está à altura de perseguir sua felicidade a seu modo, porém respeitada uma escala de valores discutida e aprovada por todos, ou seja, ela deve reconhecer sua responsabilidade em relação ao seu próprio destino e ao objetivo da felicidade coletiva em sua comunidade ou nação. Será contraditório que alguém ou algum grupo tenha naturalmente poderes para cercear essa liberdade sem que parta do próprio indivíduo uma concordância para tal.

II – Os filósofos do “Contrato social”

A experiência de liberdade dos atenienses ficou esquecida por séculos. Durante a idade média, os monarcas cristãos se proclamavam com o Direito Divino para governar com poder absoluto sobre os seus súditos, os quais não tinham meios de fazer valer sua vontade salvo por via da luta armada. Este modo extremo de tentar coibir um poder discricionário e arbitrário era punido com a pena de tortura e morte, caso fracassasse. Se vencesse, pareceria uma vitória espúria e pecaminosa.

O primeiro filósofo a retirar uma pedra da base do poder absolutista por Direito Divino foi Hobbes.

Thomas Hobbes teorizou que os homens primitivos viviam em constantes guerras de rapina entre si, e eles teriam entrado em acordo para formar um governo que os protegesse, uns dos outros, pois o progresso não seria possível naquelas condições de guerra permanente. Em qualquer atividade, perdia-se o fruto do trabalho e, pior de tudo, havia o medo constante da morte violenta. O monarca precisava de poderes absolutos para proteger os homens de si mesmos, mas seria justa e perdoável a revolução que destituísse o monarca incapaz de manter a ordem. O ponto em que Hobbes é original está no fato de que, apesar de sustentar o absolutismo, dava esse poder como revogável, delegado pelos próprios homens, e não Direito Divino.

Logo outros filósofos levaram mais longe.a idéia de um Contrato Social como origem natural do governo, oposta à crença no Direito Divino dos reis. Assim como Hobbes, Locke, Hutcheson e Rousseau imaginaram sociedades primitivas cujo desenvolvimento natural haveria de conservar a liberdade do homem e seu anseio de trabalho e desenvolvimento solidário. A preocupação principal desses filósofos estava em separar a religião da política, e enfraquecer os argumentos religiosos que sustentavam governos absolutistas e tiranos. Porém, suas concepções de sociedade primitiva tinham por base apenas o conhecimento dos selvagens, dos quais davam notícias os grandes navegadores. Não dispunham da Teoria da Evolução nem dos resultados das investigações sistemáticas dos antropólogos, desenvolvidas no século XIX.

Uma voz de veemente protesto contra tal concepção, empírica e não dogmática, da origem natural do governo foi a de Sir Robert Filmer. Escreveu um livro em defesa do direito divino dos reis e a função patriarcal do monarca. Segundo ele, Deus havia dado a autoridade política diretamente ao rei e seus sucessores legítimos, e o rei governava de Direito com autoridade absoluta e discricionária, do mesmo modo que um pai era considerado então o chefe absoluto da família. O Rei responde perante Deus, mas não deve, na Terra, contas a ninguém.

John Locke (1632-1704) entrou em polêmica com Filmer, argumentando que um governo é legítimo apenas se tem o consentimento e aprovação dos governados. Locke é o primeiro a afirmar que o indivíduo possui o direito à liberdade e à propriedade. Estes direitos precederiam a criação de um governo, pois este último resultaria de uma convenção pela qual os indivíduos decidissem livremente a se associarem para melhor proteger seus direitos.

Hutcheson supunha, contrariamente a Hobbes, uma união fraterna entre os homens primitivos. Acreditava em uma “faculdade de sentimento moral” que ligaria toda a humanidade com benevolência e solidariedade. Somente com a fraternidade haveria liberdade. Os homens primitivamente estavam sujeitos apenas a Deus e às leis da natureza.

Jean-Jacques Rousseau fez igual exercício de imaginação no Discourse sur la Inequalité des homes, mas faz primeiramente uma crítica aos filósofos do Contrato Social que o precederam. Na opinião de Rousseau, eles haviam atribuído ao homem primitivo as virtudes e os vícios do homem moderno. Entre os selvagens não havia a propriedade, nem havia uma ideia de governo. Também a guerra de todos contra todos imaginada por Hobbes é coisa da civilização; o homem primitivo, ao contrário, vivia em paz e felicidade.

Na visão de Rousseau, o desenvolvimento humano passa por vários estágios a começar do mais primitivo, em que os homens se associam apenas para caçar, seguido pela fase de agregação permanente porém com pouca divisão do trabalho e propriedade, e finalmente o terceiro estágio, com acentuada divisão do trabalho e propriedade, o que permite surgir a agricultura e a metalurgia. A partir desse último estágio cresce a desigualdade de propriedade e outras formas de desigualdade social.

O pensamento de Rousseau, que já se assemelhava ao de Hutcheson quanto à bondade natural do homem primitivo, também se apossa da idéia de “vontade geral” latente em Platão. Aquele que conhece os caminhos racionais para o bem estar e o progresso social – finalidade da união dos homens e por isso objeto da “vontade geral” –, deve conduzir a sociedade a esse caminho, ainda que contrariando os sentimentos e a vontade da maioria, e por meio da força. A condenação à Igreja já não se faz por motivo de sua interferência política mas porque a religiosidade deve ter por objeto a “Deusa Razão”.

III – A Revolução Americana

Não importa as peculiaridades de cada teoria do contrato social, o fato é que a luta contra o poder absoluto e pelos princípios liberais que se esboçam, haveria de prosseguir e dar seus frutos em diversos países. A influência de Locke foi tão profunda na Revolução Americana pela independência quanto foi, pouco depois, a influência de Rousseau na Revolução Francesa. A influência de Locke, em sentido autenticamente liberal teve, porém, um sentido mais prático, que consistiu na redação de uma constituição, a qual definia os poderes do Estado e do cidadão. Por esse motivo Locke é considerado não só o pai do Liberalismo, mas também o pai do Constitucionalismo. Ele fez o rascunho da constituição do Estado de Luisiana, além de influir na Constituição de Filadélfia, de 1787, e na própria Carta Magna americana. A declaração da Independência foi redigida por Jefferson calcada quase literalmente na obra de Locke.

IV – A Revolução Francesa

Em França as sementes do liberalismo estão primeiro na resistência dos franceses ao domínio da Igreja sobre o Estado (uma posição rotulada “galicanismo” pela Igreja Católica). Este movimento contra a influencia da Igreja no governo toma o rumo do liberalismo quando é conhecido o pensamento de Locke. Suas ideias inspiraram as críticas à influência eclesiástica feitas acidamente por Voltaire e intelectuais como , Benjamim Constant e os enciclopedistas, entre os quais Rousseau, destacando-se o círculo constitucionalista e republicano liderado por Madame de Madame de Staël, ao final do século XVIII. Os princípios liberais finalmente manifestam-se com toda sua força na Revolução Francesa, Com ela é proclamado um Manifesto conhecido como Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em muitos de seus itens corresponde a uma declaração liberal. O lema da revolução é o lema liberal: Liberdade, Igualdade, e Fraternidade. Ao mesmo tempo que livres (Liberdade) os homens são iguais em seus direitos fundamentais (Igualdade) e ao mesmo tempo unidos e responsáveis uns pelos outros, comprometidos com o desenvolvimento e aperfeiçoamento social (Fraternidade). Porém, banida a ideia do Direito Divino, não é definitivamente rejeitado o poder absoluto.

Infiltrada do pensamento de Rousseau, a Declaração continha muito do próprio absolutismo que ela pretendia banir, o que permitiu aos jacobinos, em nome da “vontade geral”, mergulhar a França em um banho de sangue. Deste modo, após o entusiasmo liberal, instaura-se entre os revolucionários a guerra de todos contra todos; um terror nunca visto antes domina o povo diante das decisões arbitrárias e sangrentas dos novos tiranos. Depois do período do Terror, em que aqueles direitos foram tragicamente violados, o pensamento liberal volta com a pregação incansável de Benjamin Constant, o primeiro a definir as regras do Parlamentarismo.

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Rubem Queiroz Cobra

Página lançada em 15-10-2005.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Liberalismo. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2005.