Hoje: 19-11-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Na primeira década do terceiro milênio, a sede do município ainda era uma cidade pobre, e seria totalmente desprovida dos bens da modernidade se não contasse com a telefonia celular, instalada por interesse dos políticos de hoje, e também uma estação de linha férrea, interesse dos políticos de ontem . De suas ruas sem pavimentação levantava-se uma poeira branca asfixiante; o esgoto corria para o rio em valetas ou se acumulava em poças fétidas. À noite, a luz dependia de um motor de giro variável, que fazia a iluminação das casas oscilar entre fraca e forte a todo momento. O abastecimento de água dependia de uma pequena fonte e, havendo seca, de caminhões-pipa.
Três senadores da República que o povo chamava “Coronéis” – títulos herdados dos avós, Coronéis da Guarda Nacional –, moravam com suas famílias em fazendas próximas. Os três eram inimigos entre si – a ponto de assassinarem parentes da família rival. Quando vinham de férias parlamentares ou em fins de semana, evitavam encontrar-se. Mas, naquele ano, surpreenderam a todos por chegarem de Brasília como três amigos inseparáveis. A qualquer lugar que fossem, iam os três, juntos.
Intrigado com esse fato o delegado, desconfiado, passou a observá-los aparecendo como que casualmente onde pudesse encontrá-los; e eles, por sua vez, haviam combinado tratar o delegado sempre com mostras de grande apreço.
—Qual a sua opinião? – perguntou o delegado ao farmacêutico, um espanhol muito estimado entre os moradores do bairro. – Eu os tenho observado, e não parecem tão amigos assim, que não pudessem dispensar esse chamego de estarem sempre juntos.
—Talvez a necessidade de se vigiarem, por pressuposto que tenham cometido juntos algum crimine – para que uno de elos non traicione los otros – ponderou o espanhol.
*
A ostentação de amizade levou à formação de certos hábitos, antes impensáveis: vinham se encontrar na farmácia todas as tardes, fosse para adquirir algum artigo ou remédio, fosse para saber quem andava doente na cidade, ou simplesmente para conversar com o delegado, o promotor, ou quem mais da elite social lá estivesse.
Depois seguiam para a cantina do grego Teócrito, onde jantavam comidas gregas afrodisíacas preparadas por Dona Perséfone, e bebiam vinho branco importado, de uvas cultivadas no solo vulcânico de Santorini. Seguiam depois para o Cabaré do padre Segretti, onde se encontravam com suas damas favoritas, e bebiam até a madrugada.
Uma tarde em que, além dos três Coronéis, estava apenas o delegado, o farmacêutico anunciou: “—Já tenho o Viagra para vender. E para que ninguém fique constrangido de vir à farmácia – completou sorrindo com seus grandes dentes desalinhados e escurecidos pela nódoa dos cigarros –, irei pessoalmente entregar a quem telefonar, no local combinado, e guardarei sigilo. – por falta de tato, enquanto falava o farmacêutico parecia dirigir-se aos senadores.
Ouviu-se o riso baixinho de alguns matutos que haviam se juntado na porta da farmácia, curiosos em ver os coronéis e escutar o que falavam. Inebriavam-se com o perfume que exalavam, com o luxo de seus ternos azul-marinhos, camisas brancas, as indefectíveis gravatas vermelha, e sapatos pretos de verniz. A fala deles sempre lhes rendia algum motivo para fuxicos.
O riso dos rapazes desconcertou os senadores. Porém, um olhar severo do delegado foi suficiente para dispersar os desocupados. Percebendo que cometera um erro ao falar do estimulante, o farmacêutico apressou-se em buscar a garrafa do Xerez que escondia atrás dos remédios para oferecer a visitantes ilustres. Recusaram.
Na cantina do Grego, desinibidos pelo vinho, em dado momento admitiram que, aquilo que desejavam mesmo era conversar sobre o Viagra, e entre eles criou-se a expectativa de qual tocaria primeiro no assunto.
—Não acredito que o espanhol guarde segredo sobre quem lhe comprar as pílulas – disse o Coronel Malvino, limpando os lábios com um leve toque do guardanapo, e sugando ruidosamente entre os dentes, para limpar uma cárie. —Como há um tabu sobre o uso da pílula – e você nem pode mencionar o nome dessa droga –, acho que ele quer é vendê-la para depois chantagear o comprador.
—Segredo de pedra sobre o assunto, somente um padre faria, porque confessores são obrigados a guardar os segredos da confissão. E não fazem moca de ninguém – disse o Coronel Santinho.
Mas, e a coragem para pedir isso ao vigário padre Fidelino Bonato? Quem teria? O Coronel Santinho se ofereceu. Achava que o sacerdote tinha simpatia por ele, apesar de que sempre lhe fazia promessas falsas de ajuda para a Igreja.
—Talvez, se eu voltar a lhe prometer a verba para construir o salão paroquial que ele deseja, e sugerir que, em troca, adquira o produto na farmácia, ele aceite a barganha – disse o Coronel Senador.
*
Tal como esperava, o Coronel Santinho recebeu do sacerdote as três cartelas de Viagra, e mais o troco do dinheiro dado para a compra. Convocou os dois colegas a se encontrarem com ele na praça e lá, à sombra de uma árvore, fez a entrega das cartelas do remédio. O Coronel Malvino fez um remarque: “Não preciso de nenhuma droga!… Simples curiosidade!” –, mas estava visivelmente ansioso.
Sempre o mais afoito, o Coronel Malvino pegou a sua cartela, deu as costas aos dois colegas, e partiu com grande pressa rumo à casa de sua amante. Pelo caminho foi ingerindo em seco as quatro pílulas azuis da cartela. Chegou suado à casa da mulher, e plenamente preparado para exibir a sua preciosa dádiva da deusa Eros. A amante mal escondeu seu aborrecimento com a visita – ainda não era sequer meio dia.
Ao final trágico, já havia anoitecido. O problema surgiu quando o Coronel, extenuado, não conseguiu desfazer-se dos efeitos extraordinários da droga que tomara em excesso. Começou a preocupar-se, e alarmou-se quando começou a sentir dores pelo corpo. Apesar de ser noite, a mulher, que até ali não entendera o que acontecia, vestiu-se, e foi chamar a parteira, mulher do farmacêutico. Entre dores e contorções, o Coronel suplicou que o levassem logo para o hospital na Capital.
—Demoraram a trazê-lo… Muito tarde para operar – disse o médico. —O remédio será fazer uma prótese.
O Coronel Malvino lembrou-se de que, se não tivesse desviado a verba orçamentária federal destinada à construção do hospital municipal, teria sido socorrido com rapidez, perto de casa.
*
O filho do farmacêutico vira o padre comprar a droga afrodisíaca e contou aos colegas. As professoras se assustaram com o reboliço que se armou no pátio da escola, e logo ficaram a par do escândalo. Em poucas horas espalhou-se no bairro a história de que o padre usava Viagra. Essa notícia causou indignação contra o sacerdote na comunidade. Belinha, a cuidadora da casa paroquial, se entregava a práticas libidinosas com seu namorado, à noite, atrás da igreja. Então, se o padre havia comprado a droga, era porque ele também desfrutava dos carinhos de sua empregada.
Um grupo de moleques, por simples diversão e gozo da maldade, se juntara frente à Igreja e, aos gritos, hostilizava o vigário com apupos e xingamentos. Muitos curiosos, que se compraziam em observar a sanha dos garotos, contribuíram para formar uma pequena multidão ululante, a vaiar o sacerdote.
Ao buscar passagem, o Coronel Santinho mandou o chofer deixar de buzinar, e parar o carro. Intrépido, e confiante devido à sua condição de senador, desceu para dirigir-se ao povo do alto da escadaria da igreja. Com um discurso pacificador, tentou apaziguar os moleques, que jogavam pedras nos vitrais. Porém, um adolescente mais exaltado pegou no chão de terra a metade de um tijolo, e arremessou-a certeira contra a cabeça do orador.
Quando o Coronel Santinho voltou a si no hospital da Capital, soube do médico que ficaria internado alguns dias, em observação. Depois tentariam trazer o osso quebrado à sua posição normal, para eliminar o pequeno afundamento sofrido com a pedrada.
Ao saber do fato, o vigário pensou: “Faz tempo que o senador não cumpre sua promessa de trazer uma verba para construção do salão social da igreja. La haverá uma biblioteca. Esse moleque que lhe acertou a cabeça com o pedaço de tijolo não faria isso, se tivesse nas mãos um livro para ler…”
*
O Coronel Heitor desejava ocultar da esposa o uso do estimulante, para fazê-la pensar que o seu vigor masculino fosse natural. Esperou a noite e se preparou para surpreende-la. Porém, para seu grande constrangimento, a mulher o repeliu, e se pôs a chorar, em franco desespero.
—Eu não quero mais isso! Já passei da idade! Peço-lhe que não me incomode mais. Por que Deus fez a mulher diferente do homem? – lamentou, enquanto enxugava os olhos com a manga da camisola, e procurava dominar os soluços e se controlar. O marido, motivado como estava, tentou forçá-la grosseiramente. Ela reagiu mordendo-lhe a orelha, e a dor e o sangue abundante o dissuadiram da tentativa. Irado, o Coronel gritou:
—Eu mato você, sua cadela. Você é uma mulher morta!
Enquanto o Coronel corria furioso ao banheiro, buscando uma toalha para estancar o sangue, a mulher pegou a mauser que ele deixava à noite na gaveta do criado, retirou as balas e as escondeu na última gaveta do seu guarda-roupa. Repôs a arma no lugar, e foi para o quarto da filha; trancou a porta e foi dormir na cama reservada para as amigas que visitavam a garota.
*
Multiplicaram-se na cidade as reuniões para discutir como agir com o padre obsceno. Finalmente os homens de bem decidiram contratar dois ou três ônibus aos domingos, para que os paroquianos fossem assistir missa na igreja de um distrito próximo. Foi decidido também que os presidentes das irmandades enviariam uma carta ao bispo denunciando o comportamento do pároco.
Por represália da população, em razão do farmacêutico haver vendido Viagra ao padre, a farmácia agora estava sempre vazia. Abatido devido aos prejuízos, à tarde o espanhol bebia sozinho seu próprio xerez. Decidiu que o melhor modo de acabar com aquela situação seria contar ao delegado o que sabia, para inocentar o padre. Mandou o filho avisar ao delegado que tinha algo importante a lhe dizer.
Quando o delegado chegou, o espanhol contou lhe o que havia acontecido ao coronel Malvino, socorrido por sua mulher em casa da amante. Na ocasião, apavorado, o senador havia confessado ter tomado o afrodisíaco adquirido para si e seus colegas, com a ajuda do vigário.
Aquela revelação deixou o caso ainda mais intrigante para o delegado. O fato dos coronéis comprarem juntos o viagra significava – tanto quanto um pacto de sangue ou um juramento sobre a Bíblia –, uma prova de lealdade inquebrantável entre eles, com respeito a algum segredo de extrema gravidade que guardassem em comum, tal como o próprio farmacêutico suspeitara, ao ver os três sempre juntos. Quando descobrisse o crime, o delegado pensava em chantageá-los, e vender caro o seu silêncio. A partir de então não pensou em outra coisa senão em um polpudo resgate. Os roubos, estupros, as desavenças entre vizinhos, e tudo mais que lhe competia investigar, deixaram de interessá-lo.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 30-09-2017 e revisada en 14-10-2018.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Mistério da Tomada de Três Pinos. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2018.