Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
O bispo chamou o padre ao palácio da Diocese, na Capital, para que se explicasse perante o representante da Congregação para a Doutrina da Fé – este ditaria a pena, se houvesse castigo a aplicar. Mas era tão claro que o vigário não fizera nada de errado que ele não recebeu nenhuma reprimenda.
—E o que posso fazer?– perguntou o bispo. —Se os fieis não se reconciliarem com o senhor em um mês, terei que solicitar sua transferência… Gostaria de ir para a Bahia?
Isto o Padre não desejava. A igreja vazia feria seu coração, mas acreditava que em pouco tempo o povo reconheceria sua retidão, e então o templo voltaria a se encher de fieis, como antes – mas sentia-se a beira do pânico. Ocorreu-lhe então a lembrança de um amigo, bom e inteligente, e que fora seu colega de ordenação sacerdotal, o padre Segretti. Decidiu ir visitá-lo no distrito de São Francisco, onde era vigário, a duas horas de trem da sede do município. Expor-lhe-ia a situação em que estava, e lhe pediria conselhos.
À noite, foi à estação pegar o trem noturno. Recomendou a Belinha que trancasse bem as portas e fosse dormir na casa dos pais, e se algum paroquiano perguntasse por ele – o que ele sabia ser pouco provável –, dissesse que as missas estariam suspensas por dois dias.
À luz das estrelas, pelo caminho de seixos rolados, caminhou entre as fagulhas que as pedrinhas que chutava produziam.
O Agente, de pé na plataforma da estação às escuras, tinha pendurada em sua mão uma lanterna de querosene que iluminava o chão e suas calças de brim cor bege, e criava sombras em seu rosto. O pároco foi recebido por ele com mostras de atenção e respeito que não esperava: “Finge não saber dos boatos” – pensou o padre.
O agente informou-o de que o trem sofrera um descarrilamento – o que era comum acontecer – e passaria rumo ao norte com muito atraso. As lâmpadas da plataforma reacenderam, num espasmo de luz, seguido da sua incerta e habitual oscilação.
*
O Padre Fidelino Bonnato resolveu ariscar-se na estrada usando o seu jipe, presente que lhe dera a comunidade, vinte anos atrás. O jipe descansava debaixo da casa, ao lado da escada para a porta da cozinha. A porta estava aberta – Belinha com certeza fora buscar o namorado. Apanhou a chave e os documentos do veículo e tomando assento ao volante, seguiu para encontrar a estrada federal.
Como São Francisco era distante, acordou o vigia do posto de gasolina na saída da cidade para abastecer o jipe, e fazer outros aprestos indispensáveis para a viagem. O rapaz, sonolento, fazia o trabalho com lentidão, atrasando sua partida. Mas aconselhou-o a tomar por um atalho de terra, pouco adiante na federal, para encurtar a distancia até o distrito.
*
Já era manhã, quando, vencidas apenas umas poucas dezenas de quilômetros, apareceram uns casebres à margem da estrada de terra. Um pau roliço, apoiado em forquilhas de cada lado da estrada, impedia a passagem de veículos. Um índio musculoso, com uma pena de arara espetada em uma tira vermelha presa ao redor da cabeça, veio a passos lentos, com o aprumo de uma autoridade, e disse ao Padre: “Cinquenta Reais para passar”.
Com o rosto mostrando seu aborrecimento, o padre passou os olhos pela redondeza, ao mesmo tempo que se perguntava quem poderia ter direito a cobrar pedágio naquela estradinha apenas carroçável. Mas havia um barraco de um lado, com índios armados encostados preguiçosamente à sua parede, e uma grota de pedras afiadas, do outro. Sem dúvida o melhor era pagar o pedágio e continuar viagem.
—Dispensa-me de pagar essa taxa – arriscou o Padre. —Só tenho dinheiro para a gasolina de volta.
—Quem pensa que é? Todos que passam pagam, inclusive os Coronéis, quando vêm aqui farrear com as mulheres. É isso que o senhor também quer?
—Vou para São Francisco de Paula, encontrar-me com o vigário, padre Segretti.
As feições duras do índio, marcadas por alguns vincos profundos e escuros –como se ele já tivesse nascido pintado para a guerra–, suavizaram um pouco.
—Bem, se quer encontrar Dom Segretti, não precisa passar pela barreira nem ir a São Francisco. Deixe o jipe aqui. Aquela mulher mora com ele, é a mulher dele. Acompanha a mulher.
Dito isto o índio deu as costas ao padre e caminhou com a mesma dignidade da vinda, de volta ao lugar onde estivera antes. O padre, atônito com o que acabara de ouvir, acompanhou-o com os olhos, antes de descer do jipe.
*
Uma índia de pele azeitonada, cabelos longos e negros, olhos puxados, caminhava descalça pela rua de terra, afastando-se da estrada. Levava uma bandeja suspensa à altura do ombro, sobre a mão direita espalmada. Certamente o paninho branco sobre a bandeja escondia algum quitute para o café da manhã. Ela ouvira o que o índio dissera ao padre, e retardou um pouco os passos, até que passaram a caminhar juntos. Vestia com desmazelo um vestido de chita que não estava habituada a usar, e que não lhe cobria um dos seios. —Me chamam Índia Maria – disse ela, sorrindo para o padre.
Onde havia a carcaça de uma Kombi velha, do lado oposto às casas, começava um caminho para o alto do morro. Um crioulinho pequeno e magrinho passou por eles e subiu o morro correndo para avisar Dom Segretti de que um amigo seu, de camisa preta com um colarinho branco, estava vindo para vê-lo. Dom Segretti, curioso, saiu para a varanda, de onde podia ver parte do caminho. Reconheceu o amigo ainda longe, e seus olhos se encheram de lágrimas. Era Fidelino Bonnato , um colega que permanecera leal ao sacerdócio, e vivia naquele mundo místico e fascinante da Fé! Ele, ao contrário, saíra daquele universo seguro e maravilhoso por uma porta que se abria para o vazio.
Ainda com os olhos úmidos, Dom Segretti abraçou o ex-colega longamente, apertando-o contra o peito e vibrando-lhe palmadas nas costas, como se o amigo ali estivesse para salvá-lo, trazendo-lhe a compreensão, a compaixão e o perdão.
*
A mesa do café da manhã estava posta, apenas aguardando o pão que a índia agora, com uma das mãos, colocava com cuidado em uma cestinha diante deles, enquanto com a outra tentava endireitar o vestido sobre o ombro. Só então o padre Fidelino deu-se conta de quanto ela era bonita.
Padre Segretti, recomposto em seu modo confiante e objetivo, confessou ao amigo, sem rebuços, disposto a nada esconder, que não acreditava mais na Igreja, e que havia deixado a batina. Não estava ali passando férias como poderia parecer, mas era o dono do negócio montado naquele ponto da estrada, que lhe rendia, além do que apurava na barreira do pedágio, também os lucros de uma grande e bem construída boate, para além das casas, à qual acorriam os homens ricos das vizinhanças, para encontros ocultos com mulheres, e bebedeiras.
—Gosto de ser chamado “Dom Segretti”. Pode me chamar assim, sem qualquer receio.
Enquanto o ex-padre falava, moças índias se juntavam à janela. A claridade que entrava por cima de suas cabeças impedia o padre Fidelino de ver com nitidez os seus rostos, mas aquela visão difusa as fazia ainda mais belas. “O mundo de Segretti – pensou ele –, era certamente um daqueles enigmas que Deus coloca: deixa que o mal se cubra de esplendor!”
—Vamos conversar na varanda – convidou Dom Segretti. —A vista de lá é magnífica.
Dom Segretti indagou do amigo sobre os motivos da sua viagem, e ficou lisonjeado com o que ouviu.
—Estou em risco de perder minha paróquia. Preciso dos conselhos de alguém, e me lembrei de quanto você é inteligente e amigo.
—Ora, ora!… Obrigado! – Mas, o que aconteceu?
—Um paroquiano pediu-me para comprar o Viagra para ele e dois amigos seus: por serem homens públicos, não podiam se expor a serem ridicularizados pelo povo… Alguém me viu efetuar a compra e entende u que era para o meu próprio uso. Espalhou-se essa interpretação descabida, boato que gerou um grande escândalo na cidade.
—Ah! “Ele e dois amigos”, “homens públicos”? Só podem ser os “Três pinos”, os três Coronéis Santinho, Malvino e Heitor, senadores! Há muitos anos que frequentam minha boate… – antes separadamente, mas agora, juntos. Andam muito felizes e estão muito ricos.
—Porque os chama “Os três pinos”?
—Eu explico: estiveram aqui na noite do sábado, e começaram uma festa com o propósito, segundo o coronel Santinho, de levantar o astral do coronel Heitor, que andava muito deprimido. A casa já estava cheia. Pagaram uma rodada de cachaça para todos, e a boate virou um inferno festivo! Mas o homenageado continuava triste e isolado em sua mesa, no fundo do salão. Uma mulher viu lágrimas em seus olhos e me culpou por não socorrê-lo. Fui até ele. —“Somos amigos desde que abri essa boate, Coronel. Me diga, o que o aflige?” Ele foi direto ao assunto: —“É por causa da minha mulher, Dom Segretti. A Rosinha não me deixa mais dormir com ela. Seria fácil aceitar se eu não gostasse dela. Mas eu gosto. Guardei um bom dinheiro na Suíça para gastar com ela em passeios, quando eu me aposentar do Senado. Foi por ela que entrei na comissão secreta das…”
Dom Segretti interrompeu o que dizia. A Índia Maria chegou na varanda e sentou-se no seu colo, sem malícia, com a liberdade da sua ingenuidade indígena. Embaraçado, ele a fez levantar-se e mandou que se retirasse da varanda. Amuada por se ver repelida, ela não obedeceu: se pôs de cócoras ao lado do amante, os grossos e bem torneados joelhos apontados juntos para o padre Fidelino. Mas o cenho franzido de Dom Segretti a fez erguer-se e voltar para dentro da casa.
— Você falava de uma comissão secreta – lembrou o padre Fidelino.
—Ah…sim! Perguntei ao Coronel que comissão era. Ele ficou sério; parou de babar, enxugou os lábios e os olhos com um guardanapo, desengrolou a fala… Pareceu até que o efeito do álcool tinha cessado: —“O Santinho – que entende muito de Igreja –, disse que, você, Dom Segretti, querendo ou não, será sempre padre. Vou lhe contar o segredo para você saber o quanto eu fiz para ter o amor de Rosinha. Mas não se esqueça que será segredo de confissão”.
O Coronel Heitor, em sua “confissão” de bêbado apaixonado pela mulher, revelou que o Centro Secreto de Inteligência do Partido criou um projeto que tornava obrigatória a tomada elétrica de três pinos. O povo teria que comprar esse novo tipo de tomada, ou comprar adaptadores, gerando grande lucro para a indústria de material elétrico. Em contrapartida, os industriais pagariam secretamente gordas propinas aos políticos.
A medida legal provisória editada pelo governo deu à indústria apenas dez dias para se adaptarem, tamanha era a pressa que havia em se por a mão no dinheiro. Ficou proibida a fabricação da tomada mista que as casas brasileiras tinham nas paredes, que aceitava na mesma peça tanto os pinos chatos americanos – os do meu barbeador –, quanto o tipo redondo, brasileiro e europeu. Parece que o projeto visava, na verdade, a venda de adaptadores, uma vez que seria impossível reformar todas as casas e os milhões de apartamentos, Brasil afora, para trocar as tomadas de suas paredes
“Eu fui encarregado da articulação com os industriais, fixando com eles a propina para o partido. Sei que o Coronel Santinho recebeu a incumbência de fazer a maquiagem legal, nacional e internacional, de modo a tornar obrigatórias as mudanças na linha de produção. Ao grupo do Coronel Malvino coube promover encontros e seminários, e a indispensável propaganda enganosa que convenceu o povo de que as tomadas de três pinos eram mais seguras” – disse o Coronel a dom Segretti. “Eu via com clareza os propósitos malévolos da Lei, mas colaborei e mandei para o Credit Suisse a minha parte, sempre pensando em Rosinha.”
Dom Segretti continuou:
—Não houve um único imóvel no Brasil que não tivesse sido invadido pelos adaptadores para ligar as tomadas de três pinos – o neutro numa posição maliciosamente diferente dos furos das tomadas de parede em uso. Todo mundo tem ferro elétrico de passar roupa, não é?.
—Nunca foram boas pessoas – disse o Padre Fidelino. Já me prometeram ajuda para a construção de um galpão para festas e conferências junto à igreja, e nunca consegui um centavo deles. O dinheiro que recebem para saneamento da cidade e para a merenda escolar se evapora e o esgoto continua a correr nas ruas e as crianças ganham apenas cuscuz de fubá como refeição – lamentou o sacerdote.
—Vou dar um jeito neles… vou pensar como. Talvez chantageando-os com a ameaça de dizer ao povo do município, através dos jornais, quem na verdade são esses três senadores!… – e você vai ganhar o seu salão de festas, pode acreditar! Eu lhe prometo!
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 30-09-2018 e revisada em 14-10-2019.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – O Mistério da Tomada de Três Pinos. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2019.