A Mulher da Ilha

Hoje: 19-11-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

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Alguns meses depois, apareceu novamente na Ilha a mulher do Coronel. Do cais de madeira onde desceu de sua esplêndida lancha branca, caminhou para o coqueiral, decidida a resolver com rapidez o assunto que a trazia ali. Já conhecia o caminho da choupana.

— A minha filha – disse a madame para a mulher – soube que o noivo dela havia morado com você, mas não deu maior importância a esse fato. “Coisas de homem”, ela pensou. Mas, quando lhe chegou aos ouvidos que você dera à luz uma criança loura que devia ser filha dele, então ela impôs uma condição: que somente se casaria se ele doasse recursos para a criança não passar fome, e ser bem educada. Ele concordou e prometeu que esta seria a primeira coisa que faria depois de se casarem, instituir para você uma pensão, para que mudasse de vida e cuidasse bem do menino. Vá à Vila e procure o gerente da agência bancária – ordenou.

Ela obedeceu.

Na agência bancária da firma Correia Ribeiro e Cia. Ltda., que dispunha de um telégrafo para comunicar-se com Salvador, o gerente confirmou que havia uma ordem recebida de um banco estrangeiro, o qual havia enviado também, pelo correio, um contrato para ela assinar.

Tudo isto que está aí é muito simples – disse o gerente, colocando a papelada diante dela. – Criaram um fundo para sua manutenção e educação da criança, porém não querem se dar a conhecer. Tenho aqui uma tradução, que veio junto. Você receberá uma pensão para deixar sua vida livre, alugar uma casa e educar a criança na Vila. Você concorda? – Não esperou que ela respondesse. — Assine aqui – disse ele, apontando um “x” no papel. Passarei um telegrama de confirmação, e lhe pagarei a primeira quantia. Mas, se os doadores tiverem notícia de que você não está cumprindo a sua parte, mandam o juiz tomar-lhe a criança e procurar pais adotivos para ela. E você não porá mais os pés na minha Agência!

*

Quando havia acontecido a primeira resposta ao seu desafio, ela sentira um terror que a fizera tremer. Mas agora, que via realizar-se o segundo milagre, não tinha mais medo algum. Estava certa de que havia um Poder que dispunha as coisas no mundo de modo claro e firme, e sentia-se eleita e privilegiada por Ele, mesmo depois de provocá-lo com seu desafio.

Sentiu-se também livre para cumprir ou não a sua parte. Mas não via dúvida em se tornar uma beata, conforme prometera ao desafiá-lo. Compraria um véu preto no armarinho de Dona Chiquinha, e ia logo procurar o padre para comprar um rosário de contas brancas como pérolas, e uma fita azul com uma grande medalha para usar ao peito. Porém, isto agora lhe parecia pouco e banal. Com sua triste experiência de se entregar sem desejo, sentia agora um desejo profundo de uma entrega verdadeira e total. Como entregar-se assim a Ele?

Subiu devagar a ladeira, cobrindo, como da outra vez, o rostinho da criança com um paninho leve. Em sua vida atribulada e frenética, nunca havia caminhado assim, em paz, sem medo de ser apedrejada ou expulsa, vestida com recato, não mais um objeto de excitação e prazer proibido. Mas este sentimento sofreu um abalo súbito.

Acocorado junto à parede do lado sombreado da igreja, um mendigo maltrapilho comia avidamente um pão com lingüiça, catando no chão as migalhas que lhe escapavam das mãos. Ela reconheceu que aquele era um dos que apareciam na ilha e que, por serem impotentes ou para não contaminarem as mulheres com suas chagas, queriam pagar para “apenas ver”. Somente uma de suas amigas, a mais alegre e humilde delas, aceitava tal proposta – “por pura piedade, sem nada cobrar”, dizia.

Então, ao desviar, nauseada, os olhos da figura do mendigo, o gesto fez que ela notasse, na encosta do mesmo lado, quase todo escondido pelo mato alto, um telhado amplo, enegrecido e falho de algumas telhas. Não se lembrava de ter visto aquela ruína, na vez anterior.

*

A igreja não parecia a mesma daquela rica celebração, alguns meses antes. Com suas paredes manchadas e úmidas, em meio ao arvoredo alto que protegia com sua sombra, alguns pés de cacau e um mato rasteiro, o templo parecia totalmente abandonado. Sentiu o coração bater a um ritmo estranho, ao entrar em seu interior sombrio. Não havia velas acesas e nem uma única flor. O altar nu, sem as belas alfaias da noite do casamento, tinha apenas uma pequenina chama acesa dentro de um copo vermelho, junto à portinhola do sacrário. Ela se aproximou para ver a lâmpadade perto, pois ela a intrigava. Foi quando ouviu, vinda da porta da sacristia, a voz do sacerdote:

— Trouxe o meu afilhado! – exclamou ele, acercando-se, sorrindo, para tocar a criança, que acordou sem chorar.

Sem responder, olhando absorta ao seu redor, ela perguntou:

— E as flores? As velas, a toalha branca, o tapete?… E as mulheres que varriam, e arrumavam os vasos? Não ajudam mais?

— Tudo que você viu no batizado da sua criança veio de fora, para o casamento da filha do Coronel, e levaram de volta no dia seguinte. As mulheres nem eram da Vila! São empregadas na fazenda do Coronel. Da Vila vêm algumas, à noite, descansar enquanto rezam. Sozinho, eu pouco posso fazer.

Ainda perplexa, lembrou-se das ruínas que vira na encosta.

— Que telhado é aquele em meio ao mato, abaixo da igreja?

— Foi a sede de uma pequena fazenda, propriedade da diocese. Quero vendê-la para custear as despesas da igreja e ajudar os pobres, que são muitos…

— Não faça isso, disse ela. Eu cuidarei daquela casa, se puder usá-la como casa de caridade.

Ante a surpresa do padre, mudo à sua frente, foi sentar-se para amamentar a criança, pois ela própria não sabia por que estava dizendo aquilo. Mas a idéia foi tomando forma em sua mente, diante dela desfilando as imagens de suas companhias, algumas maltrapilhas e alcoólatras, oferecendo-se a aleijados, doentes e bêbados como aquelas que ela costumava ver nas noites de sábado, perambulando entre os grupos de homens que conversavam e bebiam com suas parceiras nas barracas do coqueiral. Então ela tomou uma decisão:

— A casa servirá para uma escola para mulheres. Elas aprenderão a falar sem gritar, aprenderão que fumar e beber traz doenças, que a falta de banho causa feridas… em suma, a serem pessoas de boa aparência e educação.

Deu ao padre um instante para passar da surpresa à incredulidade: Ele permanecia de pé, junto ao altar com a candela vermelha.

— Mas… e o seu filho?

— Não vou cuidar de tudo sozinha. Tenho uma amiga, uma pessoa muito boa, que vai me ajudar, tenho certeza.

Suavizando a voz, revelou:

— O pai do meu filho mostrou-me que eu podia gozar de respeito, apesar da vida que levava. Para isso, eu precisava ter uma oportunidade de aprender e praticar as recomendações de polidez e da boa educação, ainda que fosse uma mulher pobre. É uma questão de saber se vestir, mesmo que pobremente; saber estar à mesa e comer e beber com cuidado e procedimentos certos… Tudo isto traz um charme que atrai a simpatia das outras pessoas, dizia ele. Então me lembrei que poderia haver uma escola que recebesse as mulheres por uma semana para aprenderem, sem qualquer compromisso, a ser “gente”. Poderíamos talvez encontrar um médico que as livrassem de suas coceiras… – ela se interrompeu, intrigada com a lâmpada do sacrário. — Por que essa luzinha no copo vermelho, padre?

O sacerdote voltou-se para a lâmpada. — É para lembrar que Ele está aqui, entre nós… – É uma pequena chama acesa para indicar a presença da verdadeira Luz!

Voltando-se para a mulher, o padre disse:

Gostei muito da idéia. Vamos levar seu projeto adiante, com a bênção do Senhor Jesus. Amanhã mando roçar em volta da casa. Esteja aqui para a missa das sete.

*

O padre mandou fazer uma faixa: “Escola Paroquial de Ensino Social para Mulheres”. Mas, todos os sinais de que a penitente havia abraçado uma vida nova não impediram que a malícia de boa parte dos paroquianos levantasse boatos sobre o relacionamento da mulher com o padre. “Eles trabalhavam com entusiasmo na reforma da casa da fazenda porque nela vão morar juntos!”. – E mais: “O que ela quer é trazer a colônia de mulheres perdidas da ilha para a cidade” As beatas da vila, revoltadas, passaram a assistir missa numa capelinha na parte baixa da cidade. Mas os curiosos enchiam a igreja aos domingos. Os mais devassos festejavam a idéia de não precisarem mais pegar jangadas para irem visitar suas preferidas no distante coqueiral. Sua arqui-inimiga, a mulher do Coronel, logo foi ao Foro ordenar ao juiz que determinasse a suspensão da obra. Aquela mulher não seria mais que uma cafetina tentando ocultar o seu negócio por trás da fachada de uma Escola feminina e deixava de merecer a pensão para sua subsistência e educação do filho bastardo paga pelo seu genro.

Cauteloso em tomar qualquer decisão, o juiz, já acostumado a lidar com a autoritária e maliciosa mulher do Coronel, decidiu verificar o que se passava. Na igreja, viu o padre com sua costumeira humildade celebrar a missa, como também era costume aos domingos pela manhã. Notou porém, maior concorrência dos fiéis. Após a missa foi recebido com mostras de grande respeito pelo vigário, que pareceu ansioso por lhe mostrar as obras na casa velha.

Simplesmente maravilhado com o que viu e com a idéia original daquele projeto educativo, o juiz, ainda em meio às pilhas de tijolos e montes de areia e saibro da obra, tranquilizou o padre e a autora do projeto, mas aconselhou-os a que evitassem confrontos com a poderosa mulher do coronel. Para maior garantia, aconselhou o Padre a mandar uma descrição do projeto ao Cardial Primaz da Bahia, por se tratar de escola paroquial. Precisavam definir quem seria o Diretor ou Diretora da Escola e como seriam chamadas as mulheres integrantes do projeto, e tudo isto constar em um Estatuto.

— Apesar de não pertencermos a uma ordem religiosa, poderemos nos chamar irmãs? perguntou a mentora do projeto.

— “Irmã” é uma designação aberta ao uso em qualquer grupo, atalhou o Padre.

— Então está resolvido, disse ela. O vigário será o Diretor Presidente da Organização, eu a Irmã Diretora da Escola, as demais terão seus títulos conforme suas funções, por exemplo: irmãs bibliotecária, quando tivermos uma biblioteca.

*

A mulher da ilha conhecia os poderes que tinha a mulher do coronel e sabia o quanto aquela mulher estava determinada a destruí-la. Mas também apreendera o que era uma “novena”, e quão poderosa era essa forma de oração. Passou a receitar novenas para tudo que fosse ameaça ou malefício e entendeu que era hora dela também recorrer aquele remédio. Convocou as companheiras do projeto e as amigas que já fizera na vila, para uma novena na intenção de que Deus afastasse aquela mulher maldosa do seu caminho. A novena passou a ser rezada na igreja todas as tardes.

A resposta do Primaz da Bahia, enviada do palácio cardinalício de Salvador, primeiro causou um susto, mas depois foi motivo de riso: “Falta indicação dos docentes. Providenciem!”. Que eram “docentes”? Onde comprar? Porém, o alívio e a expansão de alegria foi grande, quando o Padre explicou que se tratava dos mestres educadores que precisariam contratar para a escola. Realmente, como puderam se esquecer de que uma escola precisa de mestres?

Tudo pronto, chegou o dia em que receberiam sete detentas como primeiras matriculadas na Escola Paroquial Feminina de instrução Social. A Irmã Diretora (tratamento a que todos logo se acostumaram na Vila), levou as irmãs para o cais à espera de que a barca da prisão as desembarcasse na hora aprazada. Todas, silenciosas, as irmãs ajudaram as prisioneiras a desembarcarem e subirem para a carroça que as levaria ao Abrigo. Foi uma operação lenta, cercada de cuidados.

Dado o sinal de partida pela Diretora, ouviu-se um grito vindo dos lados do rio. “Um barco virado!” – Todas as atenções se voltaram para o casco branco que deslizava lentamente pelo meio da correnteza. A grande lancha parecia uma enorme barriga virada para cima com despudor, exibindo sua hélice de aço como uma figura obscena. Alguém nadou para a embarcação e amarrou-a a um dos pilares de madeira do cais. A polícia não demorou.

— Um acidente! – teorizou o Comissário de polícia.

— Um crime! – disse o Delegado, convicto. E estava certo, Alguém atirara na mulher e no seu companheiro, colocara-os no barco e – trabalho para no mínimo dez jagunços – o emborcaram. — O furo no casco não foi por bater em uma rocha. Foi aberto com uma machadinha, concluiu o delegado.

Os corpos foram logo identificados pelo populacho: eram o da mulher do Coronel e o do negrinho seu amante.

Com a sua primeira semana de funcionamento, a Escola tornou-se uma realidade, impulsionada por ventos muito favoráveis. O Coronel, que chorava a perda da mulher num acidente de barco fez – por sugestão do Delegado seu amigo –, uma grande doação em dinheiro em nome da sua ausente, pranteada, defunta, querida esposa, dinheiro que o Padre e a Irmã Diretora usaram para mobiliar a casa, comprar lençóis e mandar vir de Salvador preciosos livros para uma alentada e atualizada biblioteca.

Rubem Queiroz Cobra

NOTA: Este conto está em AS FILHAS ADOTIVAS de R. Q. Cobra. Edições COBRA PAGES, Brasília, 2005, 136 p., ISBN 85-905519-1-1.

Página lançada em 19-06-2003 e revisada em 20-06-2005, 24-04-2020 e 06-12-2020.

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Para citar este texto: Cobra, Rubem Queiroz – A mulher da Ilha. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2003.

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