Documentação Colonial: Lembranças de uma Campanha

Hoje: 30-10-2024

Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br

O texto abaixo são trechos do livro DOCUMENTAÇÃO COLONIAL: LEMBRANÇA DE UMA CAMPANHA, por Maria José Távora Queiroz Cobra (Ed. Valci, Brasília, DF, 1987 – Introdução e Capítulos 4, 5 e 6), a respeito da documentação colonial restante no Brasil na década de 1980 e uma campanha envolvendo a estimulação e ajuda técnica às prefeituras e aos historiadores locais em um projeto nacional para sua preservação.

INTRODUÇÃO

Meu contacto com a documentação colonial começou pelos arquivos da Cúria da Arquidiocese de Mariana, Minas Gerais…Os livros e processos eclesiásticos, depois de microfilmados, receberam velatura e foram reencadernados por iniciativa do arcebispo Dom Oscar de Oliveira…

Interessando-me pelo assunto, visitei arquivos… Pude verificar, assim, que eram comuns as estórias de destruição irreparável de grandes acervos de arquivos coloniais. Por exemplo, me foi contado por uma funcionária que “sobraram” dois caminhões de livros e processos, desmantelados no transporte, na mudança do Arquivo do Estado da Bahia para o prédio que ocupou anteriormente na rua Senador Costa Pinto (sobre esse acervo, vide reportagem da VEJA de 31-10-79, p. 68 e seg.)…

Pareceu-me, também, notória a pouca sensibilidade dos restauradores de artes e edifícios do Patrimônio, para com os velhos códices. Soubemos que, ao ser reformado o prédio em que foi instalado o Museu e Arquivo da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em Mariana, os livros do primeiro cartório da cidade passaram alguns anos amontoados a um canto, chegando a serem cobertos pelo entulho das demoradas obras de restauração do velho prédio, disseram testemunhas do fato.

Vamos parar por aqui este desfiar de testemunhos, que poderia ser longo: a finalidade desse livrinho é falar do que ainda resta…

Com essa preocupação, entregamos uma carta, em agosto de 1980, ao Dr. Aloísio Magalhães, então presidente da Fundação Nacional Pró-Memória, além de expor-lhe pessoalmente, em audiência, o que havíamos visto não apenas em Minas, mas também em Pernambuco e na Bahia. Vivamente interessado no problema, Dr. Aloísio afirmou que entraria em contacto com a Diretora do Arquivo Nacional, e levaria a ela a nossa sugestão de um programa especial para a área da documentação colonial. Efetivamente, um ano depois, o Arquivo Nacional lançou um programa tendo por objeto a documentação colonial, constituindo, em julho de 1981, quando da implementação do seu projeto de modernização administrativa, o Grupo de Arranjo e Descrição da Documentação Colonial…

  1. REAÇÕES AO PROJETO

    Enquanto a Pró-Memória estudava demoradamente minha proposta, iniciei, eu própria, extensa pesquisa bibliográfica para o levantamento dos municípios ex-vilas ou freguesias coloniais. Esse levantamento permitiu-me trocar, logo em seguida, correspondência sobre o Projeto com cerca de 300 secretarias municipais de cultura. Por indicação destas, correspondi-me com mais de 200 historiadores locais, os quais me informaram, através de cartas, sobre as condições de conservação da documentação em seus municípios, muitos deles remetendo, junto com a respostas, exemplares de livros seus sobre a história de suas cidades. Esses livros foram por mim entregues à biblioteca da Universidade de Brasília, algum tempo depois.

  2. PORTUGAL COMO EXEMPLO

    Com o falecimento do Dr. Aloísio Magalhães em 1982, compreendi que haveria um hiato nas atividades da Fundação Nacional Pró-Memória, e que a implantação do projeto para a documentação colonial teria que esperar. Suspendi a troca de correspondência com as universidades, o que ocupava muito do meu tempo, para me dedicar integralmente à restauração de papeis e à encadernação artesanal, duas áreas que interessavam à preservação da documentação colonial. Neste sentido, seria sem dúvida muito útil e oportuno conhecer o que os laboratórios de Portugal haviam desenvolvido quanto às técnicas de restauro de documentos e de encadernação de época. Reservo parte das páginas seguintes às recordações de minha viagem a Lisboa, feita em busca de subsídios para um projeto no qual, na ocasião, depositava ainda grandes esperanças.

    Obtive uma licença de dois meses do LACOR, e uma carta do Ministério da Justiça para a embaixada do Brasil em Portugal, e a isto se resumiu o apoio oficial que recebi para a viagem. Na carta, solicitava-se ao embaixador brasileiro as necessárias articulações com as autoridades portuguesas visando permitir-me conhecer as principais instituições ocupadas com a preservação documental naquele país. Arquei pessoalmente com as despesas da viagem, inclusive com as taxas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, onde fiz estágio pago. Mas, devo dizer, a permanência em Lisboa foi tão agradável e o aprendizado tão estimulante que me senti recompensada por todo o esforço despendido.

    Meu estágio na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva teve por objetivo aprimorar meus conhecimentos na área de restauração de encadernações e douração de livros. A Fundação foi instituída por decreto-lei em 1953…

    A oficina de restauro, encadernação e douração de livros possui a mais completa coleção de ferros de dourar de toda a Europa. Conta com cerca de 2.000 ferros entre rodas e viradores com decorações, além de ferros isolados que são usados para compor desenhos maiores…

    BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA

    Acompanhada pelo Diretor Dr. Manuel Villaverde Cabral desde o ingresso no edifício, percorri em minha primeira visita a esta conhecida instituição todos os seus serviços. Mostrou-me Dr. Manuel, mais detidamente, aquelas áreas de maior interesse para o meu campo de trabalho, principalmente a oficina de encadernação, e as instalações de higienização, que contêm a câmara de fumigação a vácuo, cujos trabalhos são executados por firma especializada com acompanhamento dos técnicos da Biblioteca, e a seção de obras raras.

    ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

    Ir a Lisboa e não estar com o Diretor do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Dr. José Pereira da Costa, é perder a oportunidade de conhecer uma pessoa de escol, de impecável distinção. Já havíamos trocado correspondência relativa às minhas pesquisas, nos anos 70, e conhecê-lo pessoalmente só fez confirmar esta minha impressão já antiga. Ele foi meu cicerone nas intermináveis seções do Arquivo e colocou à minha disposição os funcionários responsáveis pela conservação e restauração do acervo, para todos os esclarecimentos que desejasse. Examinei detidamente antigos códices manuscritos em pergaminho e pude apreciar inigualáveis trabalhos executados em velino e ricamente iluminados…

    ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

    Dispõe este Arquivo de um bem montado laboratório de restauração de papeis…Seu Diretor, Dr. Isaú Santos, impressiona pela competência e absoluta dedicação com que dirige o Arquivo…

    Dentre os materiais usados em restauração no Arquivo Histórico Ultramarino destaca-se o chamado tecido Lamatec, derivado da madeira, branqueado e isento de ácidos, e revestido num só lado com adesivo aprovado para arquivo.

    … o Dr. Isaú Santos, Diretor do Arquivo Histórico Ultramarino, já era velho amigo, não apenas pela troca de correspondência que havíamos mantido, mas também pelo contacto nosso em Brasília, onde veio montar e apresentar, no Salão Negro do Congresso Nacional, uma exposição de documentos portugueses respeitantes ao Brasil. Este antigo relacionamento deixava-nos à vontade para discutir todos os assuntos da restauração, inclusive a política portuguesa e a política brasileira para essa área…

    FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

    O Museu mantido pela Fundação tem um rico acervo. A ocasião da minha visita coincidiu com a exposição Uma Janela para as Reservas, com destaque para a documentação gráfica, manuscritos e encadernações. Havia farto material, desde encadernações de origem persa em couro lavrado, dourado e pestana…

    A Fundação Gulbenkian é fruto da generosidade do milionário de origem armênia Calouste Sarkis Gulbenkian…

    Dos pontos que pude visitar em Lisboa, nenhum me emocionou mais que os locais que foram palco da tragédia que se abateu sobre a Casa dos Távora. Em um domingo, Dona Maria Dionísia e Dr. Antônio, além de me convidarem para um almoço especial em sua casa, levaram-me para visitar o Museu dos Coches e o local do martírio dos Távora, em uma rua próxima ao Palácio de Belém. Vi e fotografei o marco que assinala o local da execução da marquesa de Távora, na rua do Sal, assim chamada porque, após a chacina, foi espalhado sal nos terrenos dos palácios da família, para que nada pudesse ali vicejar. Sinto-me ligada a esses fatos por um elo emotivo de curiosidade. Meu pai, um Silveira Távora, nunca pode satisfazer nossa curiosidade a respeito do nosso ramo dos Távora, e aí está um campo para interessante pesquisa que desejo ainda experimentar fazer.

  3. ENFIM, UM PROGRAMA!

    A nova direção da Fundação Nacional Pró-Memória, longe de desprezar a idéia do Projeto da Documentação Colonial, no referente à urgência de medidas de preservação e às frentes de atuação que propunha, adotou-a, ampliou-a, estendeu-a a toda documentação brasileira de qualquer época. Criou o Pró-Documento: Programa Nacional de Preservação da Documentação Histórica…

    O Pró-Documento se propunha a fazer atuar toda a gigantesca estrutura do conjunto da Subsecretaria do Patrimônio Histórico Nacional-SPHAN com a Fundação Nacional Pró-Memória e o Instituto de História Social Brasileira-IHSOB. Já não era um Projeto, mas sim uma Política…

    Devo esclarecer ao professor universitário que eventualmente leia estas linhas, que conheci apenas a versão preliminar do Pró-Documento, e se não transcrevo aqui o seu conteúdo é exatamente por se tratar de programa ainda em estudo no momento em que redijo estas notas. Informações certamente poderão ser obtidas futuramente nas Diretorias da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-SPHAN, nos seguintes endereços…”