Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
A noite estava fresca, o que me levou a descansar um pouco, após o jantar, em uma das confortáveis cadeiras de vime na varanda do pátio interno, de onde se podia observar o movimento no grande e iluminado hall de entrada da Casa de Retiro.
Alguns hóspedes, que saíam animados para um programa noturno, cruzaram com um grupo de moças loiras que acabavam de entrar com suas mochilas. Haviam chegado em um grande ônibus, branco e brilhante, do qual se via parte além da larga e alta porta de entrada. Irmã Corina, a tesoureira da Casa, vinha à frente delas com um molho de chaves. O motorista, um homem baixo, claro e de cabeça chata, fechava o cortejo, carregando com muito boa vontade e sorrisos – como se antecipasse o gozo de uma recompensa próxima – algumas sacolas mais pesadas.
Em sentido oposto, distante, ao final das arcadas da ala direita da varanda do jardim interno, de pé sob o último globo de luz amarelada, e envolvido pelo voo circular de algumas mariposas, via-se o vulto do alto e forte bispo americano, auxiliar do Primaz. Conversava com um sacerdote baixo e gordo, talvez seu secretário. Acima das arcadas, na varanda de colunas retas do claustro superior, ainda vi o grupo de moças passando sob a débil claridade das lâmpadas elétricas: notei que ocupariam apartamentos contíguos ao meu.
Foi quando outro hóspede, um homem alto, magro e pálido, sentou-se em uma das cadeiras de vime, ao meu lado. Usava terno escuro e gravata – no calorento Nordeste um sinal de que era um burocrata graduado. Disse que viera transferido do Rio para chefiar na Bahia o escritório da Reforma Agrária. Tinha a missão de acabar com a corrupção moral que o governo da Revolução queria combater.
― Já cortei a prática da propina. Ou pelo menos não será mais um hábito tão ostensivo – disse ele. – Nem gratificação! – completou. Mexia-se muito ao falar, e seu movimento fazia a cadeira ranger, como um eco de suas palavras.
― Mas gratificar é realmente um hábito por aqui – disse-lhe eu. – Na ideia que o povo faz, é uma recompensa justa, porque mesmo quando apenas cumpre com seu dever, o funcionário merece ser gratificado. Afinal, ele poderia usar seu direito de levantar dúvidas, de negar em primeira instância, de esgotar todos os prazos… Se ele não faz isto, é preciso gratificá-lo. Já a propina é diferente: seria pagá-lo para decidir em meu favor, quando os meus interesses contrariassem a Lei.
― O que é esperado como gratificação, já funciona como propina. Quem gratifica é compensado com a rapidez, enquanto outros ficam à espera ou perdem a vez.– contrapôs, levemente irritado, o burocrata, balançando a cadeira de vime. E acrescentou uma tese incomum que deu à nossa conversa um rumo no mínimo curioso:
― Acho que a imoralidade e a corrupção no Brasil têm raízes em nossa educação católica – falou. – Estamos habituados à ideia do pecado venial que a Igreja considera tolerável. Venial significa coisa pouca, que se perdoa facilmente – esclareceu como um catequista. – O purgatório é outro tranquilizante das consciências: um castigo passageiro!… – riu a zombar. O ranger do vime sublinhou alto o seu sarcasmo.
De umas poucas leituras minhas lembrei-me de que Pelagius pregava que todo pecado priva o homem da justiça e, portanto, é mortal; e Wyclif afirmava que não há nada nas Escrituras diferenciando pecado mortal de pecado venial.
O burocrata prosseguiu:
― Toda essa tolerância esvazia o papel de vigilância moral que a Igreja deve exercer sobre a sociedade. E ela também é vítima! Tesouros em arte sacra são roubados diariamente aí pelo interior – disse. – A arte religiosa do Brasil aparece em Nova Iorque, depois que o leiloeiro a recebe do traficante, que a recebe do ladrão, que a furta do Patrimônio da União, o qual hoje é dono do que era da Igreja; e a Igreja tirou das esmolas do povo para talhar e dourar seus santos…
Tive que concordar. Haviam me falado de um hoteleiro por nome Espínola, dono de um Hotel novo na Pituba, que havia transformado o seu salão de convenções em um grande depósito de imagens sacras, partes de púlpitos entalhados em madeira, e até um altar barroco inteiro. Justificou-se dizendo que, ao comprar objetos de arte roubados pelos ladrões, conservava essa riqueza no país. Sonhava encontrar uma das quatro imagens de Santo Antão que existiram no Brasil colonial, duas das quais ainda estão desaparecidas.
Confidenciando com certo alvoroço, o homem da Reforma Agrária cochichou:
― Dizem à boca pequena que o pintor Carybé fez fortuna com peças roubadas, e que tem uma valiosíssima coleção sacra em sua casa aqui em Brotas – e riu novamente, acompanhado do cacarejar do vime.
No entanto, me recordo de que naqueles dias já havia se tornado mais difícil um bom negócio. Ao passar por Belmonte alguns dias depois, eu tentaria comprar um anjo de mármore que as casas tinham na fachada, em cada ponta do telhado. Uma moradora tinha um para vender, mas por um preço exageradamente alto. Desisti.
Naquele instante passavam o padre e o Bispo Auxiliar. O prelado não se deteve; apenas o sacerdote que o acompanhava reuniu-se a nós. Não era secretário do bispo, como eu havia pensado, mas sim um capelão militar, e também não era gordo, mas musculoso. Carregaria com facilidade um fuzil sobre o ombro redondo que esticava a camisa preta com seu colarinho clerical.
― O senhor bispo está sempre de bom humor e otimista! – observou o sacerdote, sorrindo, sem, no entanto, revelar o motivo do seu comentário.
O capelão disse que fora chamado para interceder por um padre de Camaçari, o qual havia aderido às teses marxistas e estava na iminência de ser preso. Enquanto falava do que seria sua missão, observei-o um pouco mais. Tinha a tez muito clara e, contrastando com o corpo musculoso, as feições finas de um intelectual. Parecia representar tanto a brutalidade quanto a aspiração a um ideal humanista e, deste modo, era certamente a pessoa talhada para tratar de assuntos espinhosos entre a Igreja e os militares.
Sua opinião sobre o tema da nossa conversa foi, também, surpreendente.
― Eu acho que a corrupção no Brasil vem da impunidade e esta, por sua vez, resulta de uma influência marxista no Direito brasileiro – disse ele, obtendo com isso nosso silêncio de perplexidade.
― Eu explico – prosseguiu. – Antes do cristianismo, a punição dos crimes tinha sentido de vingança e era desproporcional ao delito. O cristianismo repudiou o castigo por vingança, mas os reis cristãos o adotaram como exemplo: a punição tinha que ser cruel para ser exemplar. O marxismo, porém, fez uma outra revolução no Direito. Em lugar de punir, educar! Cada indivíduo é uma peça de utilidade social que o Estado deve educar socialmente. Ora, o legislador, os sociólogos, os educadores brasileiros, sob influência dessa doutrina, defendem a tese de que o Estado, incompetente em educar e distribuir a riqueza, é o verdadeiro culpado pela criminalidade, e então ninguém é punido. A polícia, quando prende, fica desmoralizada. Mesmo os militares, que hoje são duros com os que ameaçam a segurança do Estado, não interferem quando se trata de crime comum.
― Perdão, padre, mas a Igreja também está sob essa mesma influência marxista – disse o homem da Reforma Agrária, com vivacidade. – O que mais caracteriza sua opção pelos pobres é isentá-los de culpa, apenas porque são pobres. Por que não ensina, simplesmente, a não furtar? Se fizesse uma campanha moral para que todos pagassem os impostos, a Igreja já poderia mudar a cara deste país. Se os funcionários e os políticos não buscassem tantas vantagens para si, o dinheiro para a Educação seria de fato empregado na educação… Eu nunca vi um padre dizer, do púlpito, que não se deve roubar! Ora, querer tirar os pobres da pobreza sem primeiro lhes ensinar os deveres morais significa que roubarão, invadirão terras, dilapidarão patrimônios… – e alteando a voz arrematou, sacudindo o corpo com o riso, em dueto com o vime:
― Pecados veniais! uma vez que os pecadores são pobres!…
O ataque do burocrata levou o padre a se acautelar. Ruborizado, assumiu automaticamente seu papel de conciliador, como se ouvisse o brado de ira de seu superior militar. A arma da conciliação, naquele momento, era a retirada. Disse que tinha alguns quilômetros de estrada a percorrer ainda naquela noite, até a sede do seu ministério, e se despediu amistosamente de nós. Também eu me desculpei: queria recolher-me mais cedo, preocupado com os meus compromissos para o dia seguinte.
Enquanto subia para o meu apartamento, ouvi o que pareceu ser o último rangido da poltrona de vime do burocrata.
Na varanda de cima, deparei-me com um quadro desconcertante: o motorista do ônibus de turismo em pé sobre uma cadeira espichava atrevidamente seu pescoço curto para ver, através da pequena janela redonda acima da porta, as moças se desnudarem no interior do quarto. E tão magnetizado estava o voyeur com o que podia ver que não fez caso de ouvir meus passos na varanda; eu entrei no meu apartamento sem que ele se voltasse para me olhar.
Impressionado com aquele flagrante, e ainda com os argumentos dos meus dois interlocutores nos ouvidos, ocorreu-me a ideia de que nem os intelectuais do Estado nem os intelectuais da Igreja consertariam o mundo se não aceitassem o óbvio. É o indivíduo mesmo, ainda que pobre e favelado, o culpado pelos seus crimes e pela corrupção geral. Aquele homem que ali violava a intimidade das hóspedes, o que tinha o seu ato a ver com a sua condição econômica?
Eu não podia, na época, deixar de dar razão ao homem da Reforma Agrária. Se os intelectuais da Igreja deixassem de lado suas teses socioeconômicas e sua facciosa e ressentida opção pelos pobres – pensei –, não mais pretendessem que a Igreja fosse o braço moral dos movimentos rebeldes, e simplesmente trabalhassem para que toda criança brasileira crescesse honesta e caridosa, aí então, com certeza, a esperança do Brasil estaria, sim, nos seus pequenos de hoje e cidadãos de amanhã.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 12-12-2003.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Pecados Veniais. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2003.