Hoje: 21-12-2024
Página escrita por Rubem Queiroz Cobra
Site original: www.cobra.pages.nom.br
Faltam-me quase completamente informações sobre a origem e a formação acadêmica do professor Juan Carlos Goñi. Diligências que fiz junto à Escola em que lecionou, buscando informações sobre ele, não surtiram efeito. Não tenho, pois, elementos para uma biografia sua, com um mínimo satisfatório de informações. Mas, como eu o conheci, e nos confrontamos no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Geologia em Florianópolis, não poderia deixar de incluí-lo em minhas Memórias.
Apenas três referências posso fazer a respeito do Professor Juan Carlos Goñi. Uma, a um episódio contado pelo então diretor do Curso de Geologia do Rio Grande do Sul, em uma sua entrevista publicada no Site http://www.museumin.ufrgs.br/MemIrajaPinto.htm. Outra, é a afirmação de um ex-aluno seu, de que o Prof. Juan Goñi era uruguaio, lecionava Mineralogia e Petrografia, havia estudado na França, e “inclusive sua esposa era francesa”. A terceira é a impressão que me causou sua figura.
Na mencionada entrevista do Professor Irajá Damiani Pinto para o Prof. Ruy Paulo Philipp em 10 de julho de 2003, no endereço citado, aquele diz muito pouco sobre Goñi. São suas palavras: “Eu convidei para dar aula um uruguaio, o prof. Juan Goñi, que tinha feito o curso na França, era um excelente mineralogista, extremamente competente, mas um tremendo esquerdista. Às 5 horas da manhã ele já estava no Chatozinho tomando mate com os alunos e catequizando-os”. Diz mais que teve grande dificuldade para convencer os alunos – obviamente influenciados por Goñi –, a aceitarem os professores americanos. Lembrou-lhes que a rejeição radical aos americanos por parte dos alunos da Escola do Recife – também criada pela CAGE-Campanha de Formação de Geólogos – tivera como consequência a Escola deixar de receber do governo americano equipamentos indispensáveis para o ensino, e era melhor que isso não se repetisse com a Escola de Porto Alegre.
Essas breves referências bastam para se perceber que o prof. Goñi instrumentalizava seu magistério de geologia como meio para sua atividade política marxista e antiamericana.
Quanto a mim, o professor Goñi devia saber que eu fora assistente do americano Robert Reeves no mapeamento do Quadrilátero Ferrífero. Por coincidência Reeves, terminado o mapeamento patrocinado pelo United States Geological Survey em Minas Gerais (no qual eu estive engajado, pago pela Cia. Belgo Mineira), fora transferido para a cooperação americana ao Curso de Geologia de Porto Alegre, e era colega de Goñi. Reeves teria mencionado meu nome, que figurava como co-autor, junto ao seu, em um dos mapas geológicos do Quadrilátero, mapas que o U.S.G.S. havia disponibilizado para as aulas práticas nos Cursos de Geologia do Brasil. Devia igualmente saber que eu havia sido assistente em Geologia de Campo e Geologia Estrutural do professor John Thomas Stark, na Escola de Geologia do Recife. Talvez o seu noticiado antiamericanismo é que o tenha levado a cegamente me ridicularizar no Congresso de Geologia de Florianópolis, e também – considerada sua proeminência no conclave –, fosse igualmente a razão de os professores americanos da sua Escola se manterem silenciosos durante as sessões, ocupando as últimas filas de assentos do salão.
Se o professor Goñi tinha uma obsessão pelo marxismo e o antiamericanismo, com certeza não era menor a sua paixão pelo processo de formação de migmatitos. Fez um aparte à minha palestra no congresso de Florianópolis, para afirmar– sem conhecer o local por mim mapeado – que aquilo que eu tomava como uma intrusão de rocha ígnea em um granito não passaria de uma mancha em forma de dique, constituída de biotita e outros minerais básicos escuros, comuns em migmatitos.
Nessa época, a migmatização era um assunto já superado em discussões de congressos geológicos, mas Goñi havia empolgado seus alunos com a questão, apresentando-a como novidade, a julgar pelos ruidosas aplausos que estes, também presentes ao encontro, deram ao mestre ao final do erudito aparte que me fez.
Eu sabia muito bem distinguir uma coisa de outra, e não cometeria o erro primário que o professor Goñi com tanta convicção me atribuía. Minha exposição era sobre uma região – o Noroeste do Ceará –, onde visíveis e claras formas intrusivas de magma atravessavam a sequência sedimentar, e uma delas cortava também, com a mesma evidência, um granito róseo, de textura granular homogênea, entre média e grossa, no lado ocidental da Serra da Meruoca.
Estava presente à minha exposição o Dr. Kurien Jacob, ex-diretor do Serviço Geológico da Índia e Consultor Técnico da UNESCO, que me levara a mapear aquela região, e acompanhava o meu trabalho. Mas infelizmente, Dr. Jacob não pode vir em meu apoio, porque não compreendia o português. Mostrava-se atônito com os risos e apupos que me fizeram os alunos do professor Goñi, mas somente depois ficou sabendo o que havia acontecido. Ele próprio estava decepcionado com o fato de não ter sido chamado na sua vez de apresentar um sumario sobre a atuação da UNESCO no Nordeste, em razão do trabalho ser em inglês.
Diante do tumulto levantado, seria pior tentar convencer aquele grupo, e preferi abreviar a exposição e voltar ao meu lugar na plateia. No caminho ouvi um dos estudantes gaúchos mais exaltados conclamar os colegas a que, nos futuros congressos da SBG, fossem barradas as inscrições de “trabalhos ruins”. Isto, dito para que eu ouvisse.
Era impressionante o reinado de autoridade daquele mestre, os seus acólitos segurando-lhe as pontas do seu manto de glória. Naqueles tempos era fácil se fazer rei – em meio ao atraso geral do país em qualquer ramo do saber em que se desejasse brilhar. O professor Goñi era hábil em se promover no seu circulo, não importa que fosse totalmente desconhecido fora dele.
O resto da tarde foi para mim de perplexidade e desencanto, e um certo terror, pensando que coisas insanas como aquela poderiam, no futuro, novamente me vitimar em minha vida profissional.
Porém, no mesmo dia, à noite, um bem humorado gesto de solidariedade me comoveu. Ao jantar com Ivan Tinoco e João Dália Filho no hotel, casualmente demonstrei admiração pelo formato original de um pequeno paliteiro de louça, sobre a mesa. Quando, após o jantar, descemos para o andar em que tínhamos nossos apartamentos, o Dália surpreendeu-me. Tirou do bolso o paliteiro de porcelana, e me presenteou com ele. Obviamente, condoído do meu estado de espírito, tentava me reconfortar um pouco – uma das sete obras de misericórdia espirituais… De fato, me fez novamente sorrir.
Passados alguns meses, enquanto eu prosseguia o meu gratificante e inédito mapeamento do Noroeste do Ceará, achava-me em Sobral, almoçando no restaurante Crepúsculo, e lá apareceu o professor Goñi. Estava, sem dúvida, à procura do seu migmatito. Sentou-se a uma das mesas. Embora ele estivesse a me olhar, com um olhar ressabiado, preferi ignorá-lo. Mas, guardo até hoje, como uma relíquia, o pequeno paliteiro triangular de porcelana branca.
Rubem Queiroz Cobra
Página lançada em 01-03-2011 e atualizada em 10-08-2020.
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Para citar este texto: Cobra, Rubem Q. – Um tremendo esquerdista. Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2020.